VIOLÊNCIA CONJUGAL: continuar porquê?

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Transcrição:

VIOLÊNCIA CONJUGAL: continuar porquê? Anne Caroline Favacho FONTOURA¹ Tamara Levy Valente de Carvalho da SILVA 2 Teresa Cristina Martins KOBAYASHI 3 ¹ Graduanda de Psicologia da Faculdade Estácio de Macapá. e-mail: annecal_@hotmail.com. 2 Graduanda de Psicologia da Faculdade Estácio de Macapá. e-mail: tamaralevy@live.com. 3 Professora Mestre Orientadora da Faculdade Estácio de Macapá. e-mail: kteresacristina@gmail.com. RESUMO: O presente trabalho busca apresentar por meio de pesquisa qualitativa através de pesquisa bibliográfica alguma resposta para a antiga questão: Porque a mulher continua em um relacionamento violento? Para esta pergunta existe um universo de respostas que vem sendo construído há um longo tempo, portanto, o esforço empregado nesta pesquisa apresenta alguns fatores, pela via da abordagem psicodinâmica, que levam a mulher a permanecer neste relacionamento, partindo da perspectiva da constituição do sujeito de Freud ao conceito da devastação de Lacan. E como resultados obtidos podese observar que esses fatores ultrapassam questões financeiras, sociais e culturais, estes fatores psíquicos se iniciam na constituição do sujeito/feminino, mais precisamente na relação mãe e filha que ao se repetir, causa influencia na escolha de seu parceiro. Desta forma, quando a mulher estabelece uma relação amorosa nela emerge a relação primitiva herdada da mãe, e quando nesta relação ocorre violência, a mulher tem neste ato uma expressão de amor, uma outra face do amor, a devastação. Diante destas afirmativas, o trabalho tem como objetivo colaborar para uma melhor compreensão da mulher vítima de violência conjugal, fornecendo subsídios ao profissional em psicologia, buscando auxiliá-lo no atendimento clínico. Palavras-chave: Devastação. Psicanálise. Violência Conjugal. Mulher. Psicologia ABSTRACT: This study aims to present through qualitative research using bibliographical literature an answer to an old question: Why a woman continues in a violent relationship? To this question there is an universe of responses that has been built for a long time, so the effort put in this research presents some factors, by means of psychodynamic approach, that leads a woman to stay in this relationship from the perspective of the constitution of the Freud's subject by the concept of the devastation of Lacan. With the results obtained, it can be seen that these factors outweigh financial, social and cultural issues; these psychological factors begin in the constitution of the subject / female, specifically the mother-daughter relationship that when it repeats itself it influences the choice of the daughter s partner. Thus, when a woman engages in a relationship, it brings out in herself the primitive relationship inherited from the mother, and when there is violence in this relationship, the woman has in this act an expression of love, another face of love, the devastation. Given these statements, this work aims to contribute to a better understanding of women who are victims of domestic violence, providing support to professionals in psychology who help these victims. Keywords: Devastation; Psychoanalysis; Conjugal violence. Woman. Psychology. 64

INTRODUÇÃO Violência pode ser definida como qualquer comportamento que causa intencionalmente dano ou intimidação moral a outro. Esse comportamento pode invadir desde a autonomia, integridade física, psicológica e até mesmo a vida do outro. A caracterização da violência pode variar em relação a diferentes contextos sociais, gerando situações onde o que é considerado violência para uma sociedade nem sempre o será para outra, levando-nos a compreender que o fenômeno da violência varia de acordo com a cultura de um determinado tempo ou lugar. Independente destes contextos, a História nos confirma que a violência encontra-se enraizada na história da humanidade, sendo percebida como um fenômeno cotidiano inserido desde um âmbito público até o espaço doméstico, que em tese deveria ser um refúgio frente a toda forma de agressão. A violência em suas diferentes manifestações tem suas raízes na discriminação e as mulheres de uma forma geral são os sujeitos sociais que mais a tem sentido (SOUZA;CASSAB 2010). A violência doméstica e conjugal é a espécie de violência contra a mulher que ocorre predominantemente, no ambiente doméstico e dentro dos relacionamentos conjugais heterossexuais e quase sempre é cíclica. Durante toda sua vida o ser humano tem a necessidade intrínseca de construir vínculos amorosos, estabelecendo relacionamentos duradouros. Assim, a presença da violência dentro destes relacionamentos amorosos, é algo inesperado, porém frequente (LIMA; WERLANG, 2011). Segundo pesquisas recentes, os altos índices de violência entre casais heterossexuais no país, revela a necessidade de atenção aos números crescentes. De acordo com a pesquisa realizada pela Secretaria de Política para as Mulheres - SPM dos atendimentos realizados pela Central de atendimento à mulher pelo telefone 180, aponta que em 2014, do total de 52.957 relatos de violência contra a mulher, 27.369 corresponderam a relatos de violência física (51,68%), 16.846 de violência psicológica (31,81%), 5.126 de violência moral (9,68%), 1.028 de violência patrimonial (1,94%), 1.517 de violência sexual (2,86%), 931 de cárcere privado (1,76%). Ressaltando que 80% dos casos, a violência foi cometida por homens com quem as vítimas têm ou tiveram algum vínculo afetivo: atuais ou ex-companheiros, cônjuges, namorados ou amantes das vítimas (SPM, 2014). O Amapá apresenta altos índices, e segundo a pesquisa do SPM, em 2014 a cada cem mil habitantes, 83 mulheres foram vítimas de alguma forma de violência. O estado do Amapá está em 5º lugar no ranking nacional de violência contra mulher, 65

mostrando assim, a gravidade da situação tendo em vista que em 2014 o número de habitantes era de 715.000. No balanço do primeiro semestre de 2015, a Central de atendimento à mulher realizou 364.627 atendimentos, o que em média foram 60.771 atendimentos/mês, e 2.025 atendimentos ao dia. Do total de 32.248 relatos de violência contra a mulher, 16.499 foram relatos de violência física (51,16%); 9.971 relatos de violência psicológica (30,92%); 2.300 relatos de violência moral (7,13%); 629 relatos de violência patrimonial (1,95%); 1.308 relatos de violência sexual (4,06%); 1.365 relatos de cárcere privado (4,23%); e 176 relatos de tráfico de pessoas (0,55%). Nesta pesquisa notou-se um aumento dos relatos de violências nas relações familiares (5%) e nas relações externas (que incluem vizinhos, amigos, colegas de trabalho); embora ainda prevaleçam os relatos de violência nas relações heteroafetivas (70,71% dos relatos). A violência conjugal é um tema importante a ser discutido e estudado. Porque a mulher continua em um relacionamento violento? Considerando este importante questionamento, sobre a permanência neste tipo de relacionamento, esta resposta parece ir além dos fatores econômicos e sociais. Investigaremos elaborações psíquicas vivenciadas na relação primitiva entre mãe e ¹ Devastação: originária de amor e ódio na relação com a mãe, posteriormente surge na relação entre a mulher e seu parceiro amoroso (SOUZA, 2011). 66 filha, podem trazer respostas para este questionamento a partir da teoria psicodinâmica que Lacan nomeou de devastação 1, que está intimamente ligado a escolha amora. DISCUSSÃO A Constituição Subjetiva do Sujeito: O complexo de Édipo e a Devastação O Édipo é uma fase no desenvolvimento sexual fálico que toda criança irá vivenciar. Segundo Freud durante o Édipo a criança está ligada afetivamente ao genitor do sexo oposto, enquanto na relação com o de mesmo sexo predomina a hostilidade (FREUD 1931. p. 204). Antes do complexo de Édipo se iniciar na menina, a mesma vivencia um período em que nutre um desejo incestuoso de possuir a mãe, ao qual Freud denomina de pré-édipo. Nesta etapa a menina tem a mãe como objeto amoroso. Quando se vê desprovida do pênis, e descobre que sua mãe se encontra na mesma posição, a menina se decepciona, atribuindo à mãe ódio por sua incompletude e desprovimento de poder, voltando-se para o pai, detentor do falo e que poderá restituí-la, tornando-a completa (FREUD, 1931). É neste momento que o Édipo propriamente dito se inicia, dividindo-se em três fases. A primeira fase é a fantasia da dor

da privação, pois o apêndice visível do menino mostra para ela que sua onipotência vaginal e clitoridiana se torna nula frente ao órgão visível do menino. Agora o falo está no outro. Na segunda fase a menina se volta para o pai, o grande detentor do falo e solicita a ele que lhe dê o falo, mas ele se recusa a dar e a menina constata que nunca o terá. Neste momento a inveja transforma-se em desejo, pois não busca mais possuir o falo e sim ocupar o seu lugar para o pai. A partir deste momento a menina se identifica com a mãe enquanto mulher desejada e modelo de feminilidade. A última fase é caracterizada pela resolução do Édipo. Após a recusa do pai, a menina o dessexualiza. Esta passa a ter na figura do pai seu exemplo e torna-se mulher, parte em busca do seu parceiro. Ela deixa a idealização do falo, e descobre a vagina e o útero e passa a desejar um filho do amado (NASIO, 2007). Para Freud o feminino é uma parte obscura, onde o translado das ligações afetivas do objeto materno para o paterno constitui o teor principal do desenvolvimento da feminilidade. A mulher na obra freudiana é um impasse, a compreensão do feminino passa a ser representada pela inveja do falo, assumindo uma função central e catalisadora daquilo que vem a ser a feminilidade (FORTES, 2007). Lacan, relendo Freud, dá um passo à frente do Édipo freudiano, dando ênfase na relação da menina com a mãe, como a parte central da feminilidade. Quando a filha descobre a mãe castrada, esta a responsabiliza pela sua falta de pênis e não a perdoa por essa desvantagem. A poderosa ligação entre mãe e filha termina em ódio, e a menina se volta ao pai. Freud ao falar da transição da menina ao objeto paterno faz referência a uma catástrofe evitada, "a transição para o objeto paterno é realizada com o auxílio das tendências passivas, na medida em que escaparam à catástrofe", (FREUD, 1931). No texto sexualidade feminina, Freud relata que a relação pré-edípica tenha sido subestimada, que esta relação havia se desenvolvido de forma bastante rica, que o levou a uma nova concepção da sexualidade feminina "Assim, a fase pré-edípica da mulher assume uma importância que até agora não lhe havíamos atribuído. (FREUD, 1931, p. 204) As descobertas freudianas no campo da sexualidade, são utilizadas como pilares na psicanálise e usadas como base pelos os autores contemporâneos a Freud. O pré-édipo e Édipo freudiano abre novos caminhos da sexualidade feminina, como o conceito de devastação citada por Lacan. Lacan usa o termo em Francês ravagé, fazendo referência a catástrofe citada por Freud no texto sexualidade feminina, 67

ambas se referem aos laços estabelecidos entre a menina e sua mãe, os quais a psicanálise reconheceu como parte da subjetividade feminina (DRUMMONT, 2006). Ravagé, traduzida como devastação, pode ser definida ainda como arrasar, destruir ou arrebentar. Para Lacan, esta é uma experiência subjetiva que aparece primeiramente entre mãe e filha, e posteriormente na relação entre a mulher e seu parceiro amoroso e no modo de lidar com seu próprio corpo (SOUZA, 2011). Lacan situa a devastação no campo do desejo do Outro. A menina se vê no lugar do objeto de gozo da mãe, sendo a mãe o Outro primordial. Esta percepção de ocupar a posição de objeto castrado do qual a mãe goza, faz a filha gozar da mãe. A devastação é um fenômeno psíquico que surge quando a menina situa a mãe como responsável pela sua falta e como suposta de gozar disso (SILVA, 2008). Como se dá a escolha amorosa Partindo de Freud, a escolha do parceiro tem suas raízes na relação Préedipiana com a mãe: [...] muitas mulheres escolhem o marido conforme o modelo do pai, ou o põem no lugar no pai, mas repetem com ele, no casamento, a má relação com a mãe. Ele deveria herdar a relação com o pai; mas, na realidade, herda aquela com a mãe. (FREUD 1933, p. 208). É nesta relação pré-edipiana, que Lacan nos mostra onde se inicia a devastação. Quando a mulher estabelece uma relação amorosa, nela emerge a relação primitiva herdada da mãe. Neste novo relacionamento, o homem pode se inscrever como devastação para a mulher, o que Miller define como um engano de amor. Deste modo, a mulher encontra neste homem-devastação aquilo que precisa para existir como objeto, mesmo sendo um objeto rebotalho (MILLER apud DUMMONT, 2011). O encontro com o homem-devastação é deparar-se com a falta deixada pela na ausência do falo que a mãe ao não foi capaz de oferecer, deparando-se com sua incompletude, impossível de preencher. Dupim e Besset (2011) afirmam que na devastação existe uma demanda de amor infinita, na qual não há limites para as concessões que cada uma faz para o homem, onde o importante é ser amada, mesmo como um objeto/dejeto. Ser devastada significa uma pilhagem que se estende a tudo, que não termina, não conhece limites. É neste cenário que pode surgir o homem-devastação a uma mulher. Quando tratamos de relacionamentos amorosos pela perspectiva psicodinâmica, podemos nos remeter a Lacan, que em seu 68

Seminário 8, descreve o amor como uma falta, o sujeito da falta. Ao se referir ao homem, escreve: O homem é para uma mulher, tudo o que vocês quiserem, uma aflição pior do que um sinthoma... tratase mesmo de uma devastação (LACAN, 1985, p. 98). Relação de violência com o objeto amoroso Lacan descreve o gozo feminino no lugar do objeto do Outro. A mulher goza em uma posição fálica na fantasia do homem, onde o desejo do Outro é fundamental em relação ao seu próprio desejo. É neste momento que a violência surge como expressão de amor para a mulher: Ela goza na devastação, e na ausência do amor, existe a devastação (MIRANDA; RAMOS, 2014). Nesta relação amorosa a mulher tem no ato de violência uma expressão de amor. Segundo Miller, a devastação é descrita como sendo a outra face do amor, ou seja, um gozo que substitui a resposta do amor (MILLER apud DUMMONT, 2011). Para Lacan a mulher não é totalmente determinada pela função fálica, ela é não toda assujeitada à ordem simbólica. Ela pode experimentar tanto o gozo fálico, inscrito no registro simbólico, quanto um outro tipo de gozo, o gozo do Outro, que é o gozo que o sujeito supõe no Outro, sendo o próprio Outro, igualmente, um ser suposto, um ponto de felicidade absoluta e impossível. Este Outro que não se pode ver nem escutar, que Lacan o descreve na ordem do simbólico (NASIO, 1993). Dias (2008) descreve esse gozo do Outro/gozo suplementar como sem limites, infinito. O autor também o define este gozo como fora do registro fálico, portanto, fora da linguagem e somente abordável pela via lógica, no entanto pode ser experimentado pela mulher sem que nada saiba dele. Na relação amorosa com o homemdevastação a violência pode surgir como um engano de uma expressão de amor, caracterizando a violência conjugal. É neste momento que surge a grande dúvida, porque a mulher continua neste relacionamento violento? No cenário social, a violência conjugal ainda carrega velhos estigmas, representados iconicamente nos ditos populares: 'em briga de marido e mulher ninguém mete a colher', ou que 'ela apanha porque gosta'. Deixando de considerar por um momento os inúmeros casos de violência doméstica que não chegam à testemunho público, os demais que são visíveis ainda são percebidos pela sociedade apenas de maneira superficial. Dentre as muitas tentativas de explicar o ciclo da violência, encontramos por exemplo a que se sustenta na ideia da repetição do comportamento violento experimentado na infância, assim como inúmeros outras linhas de estudo, tanto sociológicas quanto psicológicas. 69

Diferente destas perspectivas o desenvolvimento deste estudo nos encaminha a compreender a manutenção deste ciclo de violência conjugal como uma relação de violência da mulher com o objeto amoroso. Quando a mulher, em busca do próprio gozo, tenta ocupar o lugar no gozo do Outro (homem, parceiro amoroso), ela permanece como vítima da violência, repetindo a relação vivida com a mãe na relação primitiva do préédipo. A violência sofrida é recebida como uma resposta de amor substituindo o gozo que toma forma de devastação. (DUMMONT, 2011). Segundo Lacan, a perda desse amor pode trazer a uma despersonalização ou uma ameaça de autodesaparecimento. É no gozo do outro que ela existe, buscando uma identificação feminina que se revela impossível, pois o homem se apresenta a ela como tudo aquilo que ela precisa para existir como objeto. É neste engano que ela permanece, ao ter o corpo marcado pela violência a mulher a recebe como significado de amor. CONSIDERAÇÕES FINAIS pública que corrompe a integridade física e psíquica da mulher vítima de violência, configurando uma flagrante violação aos direitos humanos. A psicologia não deve se furtar em buscar discutir esta questão. Assim, por meio deste estudo, foram identificados alguns fatores que levam estas mulheres que sofrem violência conjugal a continuarem em uma relação de caráter problemático, não obstante existirem vários elementos que contribuem para que a mesma não permaneça neste papel de vítima. A identificação destes fatores contribui: Com os órgãos responsáveis pela proteção das mulheres, na melhor compreensão e atendimento das mesmas; no atendimento clínico, fornecendo subsídios para o trabalho do profissional em psicologia; e no âmbito acadêmico, como incentivo ao avanço de pesquisas sobre o tema. REFERÊNCIAS DIAS, Maria das Graças Leite Villela; Do gozo fálico ao gozo do Outro; Ágora Rio de Janeiro v. XI n. 2 253-266; jul/dez 2008. DRUMMOND, Cristina; Devastação; Opção Lacaniana online nova série; Ano 2 ; Número 6 ISSN 2177-2673; novembro, 2011. O tema da violência conjugal ainda permanece atual nestes dias, infelizmente. Estudos acerca deste tema promovem à visibilidade dimensões da vida normalmente ocultas e profundamente dolorosas. Trata-se claramente de uma questão social e de saúde DUPIM Gabriella ;BESSET Vera Lopes; Devastação: um nome para dor de amor; Opção Lacaniana online nova série ISSN 2177-2673 Ano 2 ; Número 6 novembro 2011 FORTES, Isabel; Marguerite Duras e a escritura do feminino; Psychê; Ano XI nº 21 p. 161-174; São Paulo; jul-dez/2007. 70

FREUD; Sigmund; obras completas, Sobre a Sexualidade Feminina ; volume 18 Companhia das Letras ;1930-1936. 3 ; Sigmund; obras completas, Novas conferências introdutórias à psicanálise; volume 18 Companhia das Letras ;1930-1936. GIL, Antonio Carlos; Métodos e técnicas de pesquisa social / Antonio Carlos Gil. - 5º. ed. - São Paulo : Atlas, 2010. LACAN, Jaques. (1972-1973). O seminário, livro 20: mais ainda. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985., Jaques. (1975-1976). O seminário, livro 23: O sinthoma. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. SOUZA, Hugo Leonardo; CASSAB, Latif Antônia; Feridas que não curam: Anais do I Simpósio sobre Estudos de Gênero e Políticas Públicas, ISSN 2177-8248 Universidade Estadual de Londrina, junho de 2010. SOUZA, Tharso Peixoto Santos e; O lugar do desejo feminino frente à violência; Reverso, Belo Horizonte ;ano 33 ; n. 62 p. 85 92 ; Set. 2011. SPM; Secretaria de Políticas Públicas para as Mulheres; Balanço 2014, Central de atendimento a mulher 180; Brasília, 2014. ; Secretaria de Políticas Públicas para as Mulheres; Balanço 1 semestre de 2015, Central de atendimento a mulher 180; Brasília, 2015., Jaques, (1901-1981) O seminário, livro 8: a transferência 1960-1961 / Jacques Lacan; Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2010. LIMA, Gabriela Quadros de ; WERLANG, Blanca Susana Guevara; Mulheres que sofrem violência doméstica: contribuições da psicanálise; Psicologia em Estudo, Maringá, v. 16, n. 4, p. 511-520, out./dez. 2011. MIRANDA, Cássio Eduardo Soares; RAMOS, Juliana Souza; Uma mulher é espancada : a violência doméstica contra a mulher a luz da psicanálise; ECOS Estudos Contemporâneos da Subjetividade; Volume4; Número1, 2014. NASIO, Juan-David ; Édipo: o complexo do qual nenhuma criança escapa; tradução, André Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 2007., Juan-David; Cinco lições sobre a teoria de Jacques Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993. SILVA, Aline Miranda da; A devastação e o feminino ; Psyche São Paulo v.12 n.22 ;São Paulo jun. 2008. 71