O TRABALHO COM OS GÊNEROS TEXTUAIS ACADÊMICOS EM SALA DE AULA: DESENVOLVIMENTO E TRANSFERÊNCIA DE CAPACIDADES DE LINGUAGEM

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Transcrição:

DIAS, A. P. S.; LOUSADA, E. G. O trabalho com os gêneros textuais acadêmicos em sala de aula: desenvolvimento e transparência de capacidades de linguagem. Diálogo das Letras, Pau dos Ferros, v. 7, n. 2, p. 10-25, maio/ago. 2018. O TRABALHO COM OS GÊNEROS TEXTUAIS ACADÊMICOS EM SALA DE AULA: DESENVOLVIMENTO E TRANSFERÊNCIA DE CAPACIDADES DE LINGUAGEM THE WORK WITH ACADEMIC TEXTUAL GENRES IN CLASSROOM: DEVELOPMENT AND TRANSFER OF LINGUISTIC CAPACITIES Ana Paula Silva Dias 1 Eliane Gouvêa Lousada 2 Resumo: Devido ao processo de internacionalização vivido pelas principais instituições de ensino superior brasileiras, que teve início por volta dos anos de 2011, é cada vez mais comum que estudantes tenham que produzir textos que circulam no contexto acadêmico em língua estrangeira. No entanto, pesquisas mostram que grande parte dos estudantes não domina esses gêneros e que, ao mesmo tempo, não há, na maioria das universidades, cursos e/ou formações sobre a produção de gêneros acadêmicos em língua materna e estrangeira. Este artigo tem como objetivo apresentar os resultados de análise realizada, a partir de dados de um curso de escrita acadêmica, sobre a transferência de capacidades de linguagem (DOLZ; PASQUIER; BRONCKART, 1993) do gênero résumé para o gênero note de lecture. Apoiamo-nos nos conceitos do Interacionismo Sociodiscursivo para a análise de textos (BRONCKART, 1999) e nos estudos voltados para a didatização dos gêneros (SCHNEUWLY; DOLZ, 2004; DOLZ, 2016), assim como, nas questões de letramento acadêmico (KLEIMAN, 2004). Palavras-chave: Gênero textual acadêmico; Capacidades de linguagem; Modelo didático. Abstract: Due to the internationalization process experienced by the main Brazilian universities, which began around 2011, it is increasingly common that students write texts to be read in the academic context in a foreign language. However, researches have shown that a large number of students are not prepared to write those genres and that, at the same time, in most universities there are not courses on the production of academic genres in the mother tongue, neither in foreign language. This paper has as goal to present the results of analysis made through the data of an academic writing course about the transfer of linguistic abilities (DOLZ; PASQUIER; BRONCKART, 1993) fo the genre résumé to the genre note de lecture. We seek for support in the concepts of the Sociodiscursive Interactionism for the analysis of texts (BRONCKART, 1999) and on the studies that focus the use of genres for teaching (SCHNEUWLY; DOLZ, 2004; DOLZ, 2016), as well as the studies related to academic literacies (KLEIMAN, 2004). Keywords: Academic Textual Genre; Linguistic Capacities; Didactic Model. 1 Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos, Literários e Tradutológicos em Francês do Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), Campus Butantã, SP. Brasil, e-mail: ana9.pauladias@gmail.com 2 Docente do Departamento de Letras Modernas Francês da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), Campus Butantã, SP. Doutora em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). São Paulo, Brasil, e-mail: elianelousada@uol.com.br 10

1 Introdução A produção escrita em língua materna na universidade tem sido foco de pesquisas desenvolvidas sobre a utilização de gêneros em contexto universitário; citamos, como exemplo, alguns dos trabalhos desenvolvidos sobre o português como língua materna: (MACHADO; LOUSADA; ABREU-TARDELLI, 2004a, 2004b, 2005, 2007; MUNIZ- OLIVEIRA, 2005, 2006; MUNIZ-OLIVIERA; BARRICELLI, 2009; KLEIMAN, 2012; PEREIRA, 2012; PEREIRA; BASÍLIO, 2014). As pesquisas realizadas têm demostrado que a grande maioria dos alunos em nível universitário tem dificuldade quanto à produção de determinados gêneros que circulam no contexto universitário e que, na maioria das universidades brasileiras, não ocorre o ensino da produção de gêneros acadêmicos. As autoras Pereira e Basílio (2014) afirmam que: A realidade das grades curriculares dos cursos de Licenciatura em Letras, normalmente comprometidas com uma grande demanda de disciplinas de conteúdo teórico, tem reservado pouco tempo ao trabalho com a produção textual, tanto na perspectiva do saber-fazer, voltado para o ensinoaprendizagem dos alunos do curso, quanto na perspectiva da transposição didática, esta última voltada para os estudantes da educação básica, futuros alunos dos licenciados. (p. 230). Com o ingresso nas universidades é comum que os alunos tenham que produzir textos que são pedidos nesse contexto, no entanto, também é comum que não haja uma explicação de como tais textos devem ser produzidos. Segundo as autoras Pereira e Basílio, aos alunos recém-ingressos no meio acadêmico é exigida a proficiência na escrita dos gêneros pedidos nesse contexto sem que isso lhes tenha sido ensinado, uma vez que, egressos do ensino médio, em sua maioria, não dominam esses gêneros que pertencem a um ambiente que ainda desconhecem (PEREIRA; BASÍLIO, 2014). Diante de tal realidade, é possível afirmar que a dificuldade que a maioria dos alunos tem em produzir gêneros acadêmicos possa ser justificada pela falta de ensino sistemático desses gêneros, pois o aluno se depara frequentemente com a obrigação de saber escrever algo que nunca lhe foi ensinado (MACHADO; LOUSADA; ABREU-TARDELLI, 2005b, p. 91). Para os autores Schneuwly e Dolz (2004): Tudo se passa como se a capacidade de produzir textos fosse um saber que a escola deve encorajar, para facilitar a aprendizagem, mas que nasce e se 11

desenvolve fundamentalmente de maneira espontânea, sem que pudéssemos ensiná-las sistematicamente. (p. 50). Entre os anos de 2011 e 2013, aproximadamente, as principais universidades brasileiras viveram um grande contexto de internacionalização; nesse período, o número de bolsas e incentivos para que os alunos realizassem parte de seus estudos em um país estrangeiro era considerável (LOUSADA; ROCHA; GUIMARÃES-SANTOS, 2015). Diante de tal contexto, o domínio dos gêneros acadêmicos passou a ser cada vez mais importante para nossos estudantes, que precisam produzi-los não apenas em sua língua materna (LM), mas também em língua estrangeira (LE). No entanto, assim como acontece em LM, não há, na maioria das universidades brasileiras, cursos sobre a produção de gêneros acadêmicos em LE. Preocupados em resolver essa questão, pesquisadores têm criado iniciativas institucionais em diversas universidades que visam a resolver tal problema. Uma das iniciativas criadas foi a elaboração de um curso de escrita acadêmica intitulado Gêneros textuais acadêmicos: produção de textos orais e escritos em francês para participação no contexto universitário, que foi oferecido pela primeira vez no ano de 2015, no contexto de nossa pesquisa de mestrado 3, no âmbito dos Cursos Extracurriculares de Francês da Faculdade de Letras da Universidade de São Paulo. Nesse curso, trabalhamos com a produção de dois gêneros em língua francesa, o résumé e a note de lecture, por meio de duas sequências didáticas, com o objetivo de que os alunos participantes pudessem desenvolver as capacidades de linguagem necessárias para a produção de tais gêneros, de modo a contribuir com os estudos realizados sobre ensino-aprendizagem de gêneros que circulam no contexto acadêmico. Um dos objetivos de nossa pesquisa era o de verificar se, ao produzirem o gênero résumé, os alunos participantes do curso poderiam desenvolver capacidades de linguagem que pudessem transferir para a produção do gênero note de lecture. Apresentamos, neste artigo, um recorte de nossa pesquisa (DIAS, 2017), expondo os resultados obtidos em relação à análise da transferência das capacidades de linguagem do gênero résumé para o gênero note de lecture. A escolha por esses gêneros se deu, principalmente, por princípios didáticos, uma vez que nosso interesse era de que os alunos desenvolvessem as capacidades de linguagem 3 DIAS, A. P. S. O desenvolvimento da produção escrita de alunos de francês a partir do trabalho com os gêneros acadêmicos résumé e note de lecture. 2017. 163 f. Dissertação (Mestrado) Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017. 12

necessárias para a produção de dois gêneros que circulam no meio acadêmico e que compartilham a mesma operação linguageira: o ato de resumir. Consideramos também o fato de os gêneros résumé e note de lecture serem geralmente requisitados no contexto acadêmico e de muitos alunos terem dificuldades quanto à sua produção, além disso, através do trabalho com esses gêneros é possível desenvolver capacidades de linguagem que podem ser utilizadas na produção de outros gêneros também requisitados nesse contexto. Por fim, tínhamos por objetivo analisar o desenvolvimento, pelos alunos, de capacidades de linguagem transversais, que pudessem ser desenvolvidas a partir das atividades elaboradas para trabalhar o résumé e que fossem utilizadas na produção da note de lecture. Para realizar nossa pesquisa, embasamo-nos no referencial teórico do Interacionismo Sociodiscursivo (BRONCKART, 1999) e nos conceitos de didatização dos gêneros para o ensino-aprendizagem de línguas (SCHNEUWLY; DOLZ, 2004), que serão apresentados a seguir junto às demais teorias que fundamentam nossa pesquisa. 2 Fundamentação teórica O Interacionismo Social é um posicionamento epistemológico que defende que a conduta humana não é determinada apenas por fatores biológicos e comportamentais, pois, para o Interacionismo Social, o meio sócio-histórico cultural tem influência no desenvolvimento de capacidades especificamente humanas. Vygotski (1927[1999]), um dos autores cuja teoria fundamenta o Interacionismo Social, acreditava que o homem desenvolveu, ao longo do processo sócio-histórico e através de sua relação com seu meio social, capacidades especificamente humanas, o que ele chamou de funções psicológicas superiores. Para o autor, a relação do homem com seu meio sócio-histórico não se dá de maneira direta, mas é mediada por instrumentos e signos. O instrumento é necessariamente um objeto físico com o qual o homem é capaz de agir na natureza. O signo, também denominado como instrumento psicológico, auxilia o homem em suas atividades psíquicas, internas (REGO, 2014). O instrumento psicológico permite ao homem que aja voluntariamente sobre suas atividades psíquicas, tornando possível, assim, a formação das funções psicológicas superiores (FRIEDRICH, 2012). Os instrumentos psicológicos podem auxiliar o homem a resolver problemas ou desenvolver atividades que ele não consegue de maneira autônoma. Desse modo, os 13

instrumentos agem no que Vygotski (1934[1997]) chamou de zona de desenvolvimento próximo, que pode ser definida como uma etapa do desenvolvimento na qual o homem só é capaz de resolver certos problemas em colaboração. Isso indica que as funções psicológicas necessárias para resolver tais problemas ainda estão em maturação, logo, se obtiver ajuda, o aluno conseguirá resolvê-los. O Interacionismo Sociodiscursivo (ISD) foi elaborado por pesquisadores de Genebra e pretende realizar apenas uma parte do Interacionismo Social; segundo Bronckart, ele visa a demonstrar o papel fundador da linguagem, sobretudo do funcionamento discursivo, no desenvolvimento humano (BRONCKART, 2005, p. 6, tradução nossa) 4. Os pesquisadores da Escola de Genebra criaram um modelo de análise do ISD, segundo o qual a análise de um texto deve levar em conta sua estrutura interna, mas, sobretudo, o contexto em que foi produzido. Antes de apresentar tal modelo, abordaremos as noções de texto e gênero textual. Produzimos textos por meio dos quais interagimos em nosso meio social; segundo Bronckart (2005), os textos são os correspondentes empíricos das atividades linguageiras e são considerados unidades comunicativas globais. De acordo com o modelo de análise do ISD, é preciso analisar a estrutura interna dos textos, tais como seus elementos linguísticos, sua organização interna, mas devemos analisar, primeiramente, o contexto físico e sociossubjetivo no qual foram produzidos, pois os elementos que compõem sua estrutura interna são mobilizados em função de seu contexto de produção. Para Bronckart (1999), existem espécies de texto que guardam semelhanças contextuais, discursivas e linguísticodiscursivas; dizemos, assim, que textos que apresentam características comuns pertencem a um mesmo gênero. A noção de gênero nasce na Antiguidade, sendo retomada mais tarde por Voloshinov (1929) que a discute a partir de outro quadro teórico e epistemológico. Para esse autor, os gêneros constituem as formas materiais precisas da expressão da psicologia do corpo social. Ele sustenta uma concepção descendente, partindo das interações sociais, passando pelo conteúdo temático e chegando às unidades linguísticas (Voloshinov, 1929). A partir da análise de textos pertencentes a um mesmo gênero, é possível chegar às características desse gênero, saber como ele se organiza; ao compreendermos como um determinado gênero se organiza podemos nos apropriar dele e utilizá-lo em nosso meio social. 4 «vise à démontrer le rôle fondateur du langage, et notamment du fonctionnement discursif, dans le développement humain» (BRONCKART, 2005, p. 6). 14

Bronckart (1999) emprega a nomenclatura gênero de texto, por defender que os textos se organizam em gêneros. Ao produzirmos um texto de um gênero específico mobilizamos três capacidades de linguagem: a capacidade de ação, associada ao contexto de produção; a capacidade discursiva, associada à estrutura interna do texto; e a capacidade linguístico-discursiva, associada aos elementos linguísticos do texto (DOLZ; PASQUIER; BRONCKART, 1993). Com base no ISD, podemos entender os gêneros: não apenas como um instrumento através do qual nos comunicamos, mas, sobretudo, como um instrumento psicológico que permite o desenvolvimento de capacidades de linguagem. Quando o aluno compreende a organização e o funcionamento de um texto, ele pode desenvolver as capacidades de linguagem necessárias para a sua produção; tais capacidades podem ser usadas para a produção desse texto de um gênero específico, mas também para a produção de textos de outros gêneros para os quais as mesmas capacidades desenvolvidas são igualmente necessárias. (DIAS, 2017, p. 35). Passaremos, agora, para o modelo de análise de textos do ISD. Tal modelo analisa o contexto de produção de um texto e sua arquitetura interna; como dissemos acima, o contexto mobiliza os elementos internos do texto, logo a análise deve começar por ele. É preciso analisar o contexto físico e sociossubjetivo no qual o texto foi produzido, levando em conta, portanto, parâmetros como: quem o escreveu e qual seu papel social, para qual público o texto está destinado, quando foi e com qual objetivo, em qual local físico e social, entre outros. Com relação à arquitetura interna do texto, três são os níveis que o constituem e são, justamente, esses níveis que devem ser analisados, a saber: a infraestrutura geral do texto, que compreende o plano global dos conteúdos temáticos, os tipos de discurso e as sequências textuais; os mecanismos de textualização, que abarcam a conexão, a coesão verbal e a coesão nominal; e os mecanismos enunciativos, que são compostos pelas modalizações e pelas vozes (BRONCKART, 1999). Ao analisar textos pertencentes a um mesmo gênero, com base em De Pietro e Schneuwly (2003), é possível chegarmos ao modelo didático (SCHNEUWLY; DOLZ, 2004) desse gênero, que compreende suas dimensões ensináveis (DE PIETRO J-F; ERARD S.; KANEMAN-POUGATCH M, 1996/1997). Para chegar a esse modelo é preciso analisar uma quantidade considerável de textos do gênero em questão, acrescentando aos resultados dessa análise o que dizem os experts a respeito dele, bem como, pesquisas já desenvolvidas em torno dele. Diante dos resultados obtidos cabe ao pesquisador escolher com quais dimensões 15

deseja trabalhar, em função de seus objetivos de ensino e de seu público alvo, uma vez escolhidas, uma sequência didática (SCHNEUWLY; DOLZ, 2004) pode ser elaborada para trabalhar tais dimensões em sala de aula. Algumas etapas compõem a sequência didática (SCHNEUWLY; DOLZ, 2004). A primeira delas é a apresentação da situação, em que a tarefa de expressão oral ou escrita a ser realizada é detalhada aos alunos; é nessa etapa que uma construção da situação de comunicação é realizada por eles. A segunda etapa é a de produção inicial, em que os alunos devem realizar uma primeira produção do gênero trabalhado; nessa etapa, o professor poderá obter informações sobre os conhecimentos prévios dos alunos a respeito do gênero e sobre as capacidades que ainda é preciso desenvolver e que serão abordadas na etapa seguinte. A etapa dos módulos é aquela em que atividades sobre as dimensões ensináveis, que não são dominadas pelos alunos, são desenvolvidas por eles; o objetivo é que, por meio delas, seja possível desenvolver as capacidades de linguagem necessárias para a produção do gênero em questão. A última etapa é a da produção final; nela os alunos podem pôr em prática os conhecimentos adquiridos ao longo dos módulos (SCHNEUWLY; DOLZ, 2004). Outra base teórica importante para nossa pesquisa é a que discute o letramento acadêmico. Kleiman (2004, p. 19) define letramento como um conjunto de práticas sociais que usam a escrita, enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia, em contextos específicos, para objetivos específicos. Existem vários letramentos que atendem aos diferentes contextos existentes, dentre eles há o letramento acadêmico, definido por Silva e Lousada (2014, p. 84) como as práticas sociais que se valem da escrita no meio acadêmico, sendo objetos de apropriação da esfera universitária. Muitas pesquisas têm sido feitas sobre o letramento acadêmico e sobre as produções realizadas por estudantes universitários nesse contexto. No entanto, vemos os adjetivos acadêmico e universitário sendo usados comumente como equivalentes em algumas situações e como diferentes em outras. De modo a resolver tal questão, os pesquisadores Lousada e Dezutter (2016) propuseram uma classificação dos textos produzidos no contexto universitário em duas esferas cuja classificação foi definida levanto em conta a dos estudos universitários e a da carreira acadêmica. Para definir essa classificação, eles levaram em conta duas questões: o objetivo dos textos produzidos, bem como, o estatuto de quem os produziu, como podemos ver na figura 1, a seguir: 16

Figura 1: Letramento acadêmico: gêneros textuais produzidos nesse contexto. Fonte: Lousada; Dezutter, (2016). Observa-se que, segundo a classificação elaborada por Lousada e Dezutter (2016), na esfera dos estudos universitários temos o estudante de graduação, que produz textos de formação, através dos quais é avaliado por um professor. Além disso, temos yzgf6fc7uny hbgv4refbfos textos de formação profissional, que permitem ao estudante o aprendizado de uma profissão. Na esfera da carreira acadêmica, temos o professor-pesquisador, que produz textos profissionais que permitem a avaliação da pesquisa dos pares e a contribuição para o funcionamento da vida acadêmica. Há também os textos científicos, cujo objetivo é a divulgação da própria pesquisa e o compartilhamento dos conhecimentos desenvolvidos nela. Nessa mesma esfera temos o estudante de pós-graduação, que produz textos científicos para divulgação de sua pesquisa, mas também textos científicos que têm como objetivo sua formação como pesquisador (LOUSADA; DEZUTTER, 2016). Em nossa pesquisa de mestrado (DIAS, 2017), desenvolvemos um estudo sobre os gêneros produzidos pelos alunos na esfera universitária e que eram necessários para o intercâmbio em universidades francófonas. 17

3 Metodologia O curso Gêneros textuais acadêmicos: produção de textos orais e escritos em francês para participação no contexto universitário foi realizado em julho de 2015, no âmbito do Serviço de Cultura e Extensão da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e pela Área de Estudos Linguísticos, Literários e Tradutológicos do Departamento de Letras Modernas da FFLCH. Os cursos oferecidos nesse contexto têm por objetivo o ensino-aprendizagem de francês como língua estrangeira, assim como, a formação de professores desse idioma e a aplicação de pesquisas voltadas ao ensino do francês. No curso, que ocorreu na Faculdade de Letras da USP, foram aplicadas as sequências didáticas elaboradas em nossa pesquisa de mestrado para trabalhar com os gêneros résumé e note de lecture. Organizado em doze módulos, o curso trabalhou com 6 gêneros no total, além do résumé e da note de lecture, previamente escolhidos em função de nossa pesquisa. Além disso, os alunos puderam escolher outros gêneros com os quais gostariam de trabalhar, assim, os gêneros artigo científico, resumo para congresso e para artigo científico e apresentação oral também foram trabalhados. Apresentamos, a seguir, o quadro dos módulos e conteúdos do curso: Quadro 1: Módulos e conteúdos do curso 5. Módulo Gênero Objetivos Dados 1 Introdução aos Tomar consciência da esfera dos estudos - Não houve gêneros da esfera universitários e da esfera da carreira coleta de acadêmica acadêmica (LOUSADA; DEZUTTER, 2016). dados. 2 Compreender o contexto de produção de um - Produções résumé. iniciais e finais dos Résumé (produção inicial) gêneros 3 Refletir sobre o ato de resumir (sumarização); résumé e identificar a organização interna de um note de résumé. lecture; 5 As sequências didáticas referentes aos 4 gêneros trabalhados no curso que não faziam parte de nossa pesquisa foram elaboradas pela professora que ministrou o curso, pois ela já havia trabalhado com tais gêneros em suas pesquisas de iniciação científica e mestrado. 18

4 Reconhecer as ideias globais de um texto; identificar e produzir retomadas nominais. (produção final) - Gravações das aulas. - Anotações sobre as aulas. - sinopse. 5 Tomar consciência do contexto de produção de uma note de lecture. (produção inicial) 6 Identificar as formas de apreciação em uma note de lecture. 7 Note de lecture Compreender a organização interna de uma note de lecture. 8 Refletir sobre as formas de inserção de vozes nas notes de lecture. (produção final) 9 Resumo para congresso e para artigo científico Identificar as características dos resumos científicos. 10 Apresentação oral Comparar comunicações orais; identificar as características do gênero. - Não houve coleta de dados. 11 Artigo científico Aprender as características do artigo científico. 12 Apresentação oral dos participantes Elaborar uma apresentação oral em francês. Fonte: Elaboração própria dos autores. Os alunos preencheram um formulário, no primeiro dia do curso, que nos forneceu informações sobre seus interesses, formação e objetivos em relação ao curso. Munidos dessas informações e daquelas provenientes de um curso piloto, oferecido em fevereiro do mesmo ano, pudemos adaptar as atividades de nossas sequências didáticas e escolher com quais dimensões ensináveis de cada gênero iríamos trabalhar. Tivemos quinze inscritos no curso, onze participantes, mas apenas oito que fizeram todas as atividades, tendo entregado a produção inicial (PI) e a produção final (PF). Dessa forma, consideramos apenas os textos dos 19

oito alunos para as análises, já que visávamos a comparar as produções escritas iniciais e finais. Entre os participantes, havia graduandos e pós-graduandos de diferentes áreas, como Letras, História, Psicologia, Direito, Artes e Rádio e TV. A faixa etária dos alunos variava ente 20 e 59 anos. Antes de elaborarmos a sequência didática (SCHNEUWLY; DOLZ, 2004), construímos o modelo didático (SCHNEUWLY; DOLZ, 2004) dos gêneros résumé e note de lecture. Para tanto, analisamos 20 résumés e 20 notes de lecture, levando em conta pesquisas já realizadas sobre eles, bem como, o que dizem os especialistas. Os résumés foram selecionados em sites de livrarias e de resumos de obras literárias. Nosso objetivo na pesquisa era o de trabalhar com o processo de sumarização de livros, tarefa normalmente requisitada na universidade, logo, recorremos aos résumés produzidos na mídia, pois esse é um meio acessível ao qual a maioria dos alunos recorre para buscar exemplos de gêneros que precisam produzir. As notes de lecture foram selecionadas em revistas científicas produzidas em língua francesa. Os alunos participantes do curso realizaram a produção inicial e final dos gêneros résumé e note de lecture, que foram analisadas segundo o modelo de análise do Interacionismo Sociodiscursivo proposto por Bronckart (1999). A seguir, apresentaremos os resultados de análise obtidos com relação à transferência de capacidades de linguagem do gênero résumé para o gênero note de lecture. 4 Análise da transferência de capacidades de linguagem e discussão dos resultados Das dimensões ensináveis trabalhadas em nossa sequência didática do gênero résumé, acreditamos que duas podem ter sido desenvolvidas pelos alunos e transferidas para a produção do gênero note de lecture. Trata-se das dimensões ligadas às capacidades linguístico-discursivas da coesão nominal: a retomada nominal para evitar repetições no texto e o ato de resumir. Dos quinze alunos inscritos, apenas onze continuaram o curso, já que ele foi oferecido durante as férias escolares e com carga horária intensiva. Buscando dar maior dinamismo às aulas, propusemos aos alunos que trabalhassem em grupos em várias atividades para a produção de textos. Porém, os alunos não estavam presentes em todas as aulas, o que teve como consequência o fato de que nem todos entregaram as produções iniciais e finais dos gêneros résumé e note de lecture. Sendo assim, tivemos que fazer uma seleção dos alunos 20

cujas produções escritas poderíamos analisar. Como resultado, embora tenha sido possível analisar as produções de muitos alunos quanto à produção de um dos gêneros isoladamente (résumé ou note de lecture), ao considerarmos a transferência das capacidades de linguagem de um gênero ao outro, observamos que apenas as produções textuais de quatro alunos podiam ser analisadas. Em outras palavras, a seleção ocorreu, pois, para a análise da transferência das capacidades de linguagem do gênero résumé ao gênero note de lecture foi necessário selecionar os alunos que tinham realizado a produção integral das atividades e dos textos iniciais e finais de ambos os gêneros. Dessa forma, selecionamos os alunos Cecília, Pilar, Miguel e Lucas 6, pois apenas esses alunos realizaram a produção inicial e final do gênero résumé e do gênero note de lecture. As produções do résumé foram realizadas em duplas. Embora um dos alunos, Lucas, não tenha realizado a produção inicial, decidimos considerá-lo em nossa análise já que ele tinha realizado a produção final com o colega Miguel. Com relação à capacidade linguístico-discursiva de retomada nominal, dizemos que tal dimensão foi trabalhada na sequência didática do gênero résumé nas seguintes atividades: 2, 3, 4 e 5 da parte II do módulo 4. Essa dimensão não foi trabalhada na sequência didática da note de lecture, mas, apesar disso, apareceu nas produções finais desse gênero. Pudemos perceber que já na produção inicial da note de lecture, os alunos empregam elementos de retomada nominal, característica também esperada nesse gênero, e que apareceu de modo ainda mais considerável nas produções finais desse gênero. Vemos, portanto, que os alunos utilizam essa dimensão em suas notes de lecture, sem que isso tenha sido trabalhado na sequência didática para trabalhar esse gênero. Sendo assim, levantamos a hipótese de que os alunos tenham desenvolvido essa capacidade no trabalho com a sequência didática do résumé e a tenham transferido para a produção da note de lecture, gênero no qual ela também é necessária. No que diz respeito à capacidade linguístico-discursiva referente ao ato de resumir, podemos afirmar que ela também foi trabalhada na sequência didática do gênero résumé, nas atividades 1, 2, 3 e 4 da parte II do módulo 2; nas atividades 1, 2, 3, 4 e 5 da parte I do módulo 3 e nas atividades 2, 3 e 4 da parte I do módulo 4. Tal dimensão não foi trabalhada na sequência didática do gênero note de lecture, na qual havia apenas duas atividades em que os alunos deveriam identificá-la como característica do gênero. No entanto, os alunos Cecília e 6 Nomes fictícios, empregados na dissertação de mestrado (DIAS, 2017). 21

Miguel 7 apresentam tal aspecto já na produção inicial da note de lecture e os quatro estudantes a empregam em suas produções finais para falar das partes em que a obra se divide ou para resumir a história do livro resenhado. Vemos que, mais uma vez, os alunos utilizam na produção da note de lecture uma característica que não fora trabalhada na sequência didática desse gênero. Sendo assim, levantamos a hipótese de que os alunos desenvolveram tal capacidade através das atividades da sequência didática do gênero résumé e que a transferiram para a produção do gênero note de lecture, no qual tal capacidade também é necessária. Vemos, assim, que os alunos desenvolveram as capacidades de linguagem de retomada nominal e do ato de resumir através do trabalho com a sequência didática do gênero résumé e que, ao realizarem a produção inicial e final da note de lecture, também empregaram tais capacidades que não foram trabalhadas na sequência didática elaborada especificamente para o ensino desse gênero. Nossos resultados reforçam o que dizem Dolz e Schneuwly (2004), que através do trabalho com um gênero específico, é possível desenvolver capacidades de linguagem que podem ser utilizadas na produção de tal gênero, mas também na produção de outros gêneros em que tais capacidades também sejam necessárias. Nesse sentido, podemos dizer que o gênero résumé funcionou como um megainstrumento (SCHNEUWLY; DOLZ, 2004), uma vez que permitiu o desenvolvimento de capacidades de linguagem que foram transferidas para a produção de outro gênero, a note de lecture. As capacidades desenvolvidas através do trabalho com o résumé só puderam ser transferidas porque se tornaram instrumentos psicológicos, que foram utilizados pelos alunos na produção de outro gênero. 5 Conclusão O trabalho com os gêneros textuais acadêmicos nas universidades é de extrema importância na formação de nossos estudantes universitários, é preciso que eles aprendam suas características e sejam capazes de produzi-los quando necessário. Para isso, é importante que cursos e formações sejam criados e oferecidos no contexto universitário e acadêmico. Como afirmam os autores Schneuwly e Dolz (2004) e como acabamos de demonstrar neste artigo, através do trabalho com um gênero específico, é possível desenvolver as capacidades de linguagem pertinentes para redigir determinados textos; uma vez desenvolvidas essas 7 Nomes fictícios, empregados na dissertação de mestrado (DIAS, 2017). 22

capacidades, o estudante pode utilizá-las para produzir outros gêneros para os quais elas também sejam requisitadas. Podemos dizer que os alunos participantes do curso, em sua maioria, desenvolveram as capacidades de linguagem trabalhadas nas sequências didáticas e poderão produzir tais gêneros se adaptando aos contextos em que eles lhes forem pedidos. É possível afirmar, ainda, que as capacidades desenvolvidas no trabalho com os gêneros textuais em francês podem ser transferidas para a elaboração de gêneros em português que contenham as mesmas características. Os próprios alunos participantes do curso relataram isso, ao afirmar que o curso os estava ajudando a produzir, em português, textos pedidos no contexto acadêmico. Vemos, portanto, a importância e necessidade de se trabalhar a produção de gêneros acadêmicos na universidade, de modo a oferecer aos estudantes as ferramentas necessárias para que possam realizar as produções que lhes são exigidas nesse contexto. Referências BRONCKART, J-P. Atividade de linguagem, textos e discursos. Por um interacionismo sociodiscursivo. São Paulo: EDUC, 1999. BRONCKART, J.-P. Les différentes facettes de l'interactionnisme socio-discursif. In: Calidoscopio, 2005, n 3, p. 149-159. Disponível em: https://archiveouverte.unige.ch/unige:37301 DE PIETRO J-F; ERARD S. ; KANEMAN-POUGATCH M. Un modèle didactique du «débat» : de l objet social à la pratique scolaire. Enjeux, n. 39/ 40, p. 100-129, 1996/1997. DE PIETRO J-F; SCHNEUWLY, B. Le modèle didactique du genre: um concept de l ingénierie didactiques. IRDP NeuchÂtel et Université de Genève. Les Cahiers Théodile, n. 3, p. 27-52, 2003. DIAS, A. P. S. O desenvolvimento da produção escrita de alunos de francês a partir do trabalho com os gêneros acadêmicos résumé e note de lecture. 2017. 163 f. Dissertação (Mestrado) Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017. DOLZ, J; PASQUIER, A; BRONCKART, J-P. L acquisition des discours: émergence d une compétence ou apprentissage de capacités langagières? Études de Linguistique Appliquée, nº 92, p. 23-37, 1993. DOLZ, J. As atividades e os exercícios de língua: uma reflexão sobre a engenharia didática. Delta, n. 32.1, 2016. 23

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