ANAIS DO XV CONGRESSO NACIONAL DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIA



Documentos relacionados
CAMPOS LEXICOS DOS FALARES RURAIS DE GOIÁS, MATO GROSSO, MINAS GERAIS E SÃO PAULO.

SAÚDE E EDUCAÇÃO INFANTIL Uma análise sobre as práticas pedagógicas nas escolas.

Cadernos do CNLF, Vol. XVI, Nº 04, t. 3, pág. 2451

GÍRIA, UMA ALIADA AO ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA PARA ESTRANGEIROS Emerson Salino (PUC-SP) João Hilton (PUC/SP)

ORÉADES NÚCLEO DE GEOPROCESSAMENTO RELATÓRIO DE ATIVIDADES

A IMPRENSA E A QUESTÃO INDÍGENA NO BRASIL

A LUTA PELA TERRA NO SUL DE MINAS: CONFLITOS AGRÁRIOS NO MUNICÍPIO DE CAMPO DO MEIO (MG)

1 O número concreto. Como surgiu o número? Contando objetos com outros objetos Construindo o conceito de número

Aula 3 de 4 Versão Aluno

ORIENTAÇÕES SOBRE O CONTEÚDO DO PROJETO

Bloco de Recuperação Paralela DISCIPLINA: Ciências

ATIVIDADE DE ESTUDOS SOCIAIS 3ª S SÉRIES A-B-C-D

Como redigir o projeto de pesquisa? Identificação

O que são Direitos Humanos?

---- ibeu ---- ÍNDICE DE BEM-ESTAR URBANO

DIMENSÕES DO TRABAHO INFANTIL NO MUNICÍPIO DE PRESIDENTE PRUDENTE: O ENVOLVIMENTO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES EM SITUAÇÕES DE TRABALHO PRECOCE

Prova bimestral. história. 4 o Bimestre 3 o ano. 1. Leia o texto e responda.

Apresentação. Cultura, Poder e Decisão na Empresa Familiar no Brasil

Exercícios de Revisão RECUPERAÇÃO FINAL/ º ANO

FERNANDA ROTEIRO DE ESTUDOS DE RECUPERAÇÃO E REVISÃO

As Escolas Famílias Agrícolas do Território Rural da Serra do Brigadeiro

1 Introdução. 1.1 Apresentação do tema

ALVES 1,1, Paulo Roberto Rodrigues BATISTA 1,2, Jacinto de Luna SOUZA 1,3, Mileny dos Santos

FORMAÇÃO DO TERRITÓRIO BRASILEIRO

Pesquisa Pantanal. Job: 13/0528

Prova bimestral 4 o ANO 2 o BIMESTRE

SIGNIFICADOS ATRIBUÍDOS ÀS AÇÕES DE FORMAÇÃO CONTINUADA DA REDE MUNICIPAL DE ENSINO DO RECIFE/PE

Plano de Monitoramento dos Impactos Sociais do Projeto de Carbono no Corredor de Biodiversidade Emas-Taquari

ESTUDO DE CUSTOS E FORMAÇÃO DE PREÇO PARA EMPREENDIMENTOS DA ECONOMIA SOLIDÁRIA. Palavras-Chave: Custos, Formação de Preço, Economia Solidária

ALFABETIZAÇÃO DE ESTUDANTES SURDOS: UMA ANÁLISE DE ATIVIDADES DO ENSINO REGULAR

MARKETING DE RELACIONAMENTO UMA FERRAMENTA PARA AS INSTITUIÇÕES DE ENSINO SUPERIOR: ESTUDO SOBRE PORTAL INSTITUCIONAL

LINGUAGEM, LÍNGUA, LINGÜÍSTICA MARGARIDA PETTER

Análise e Desenvolvimento de Sistemas ADS Programação Orientada a Obejeto POO 3º Semestre AULA 03 - INTRODUÇÃO À PROGRAMAÇÃO ORIENTADA A OBJETO (POO)

Prova bimestral 5 o ano 2 o Bimestre

1 (0,5) Dos 3% de água doce que estão na superfície terrestre, onde estão concentradas as grandes parcelas dessas águas? R:

PNAD - Segurança Alimentar Insegurança alimentar diminui, mas ainda atinge 30,2% dos domicílios brasileiros

Colégio Senhora de Fátima

A AGRICULTURA URBANA COMO MANIFESTAÇÃO DA RURALIDADE NA CIDADE DE ALFENAS

O E-TEXTO E A CRIAÇÃO DE NOVAS MODALIDADES EXPRESSIVAS. Palavras-chave: texto, , linguagem, oralidade, escrita.

SOCIEDADE E TEORIA DA AÇÃO SOCIAL

INSTITUTOS SUPERIORES DE ENSINO DO CENSA PROGRAMA INSTITUCIONAL DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA PROVIC PROGRAMA VOLUNTÁRIO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA

FORMAÇÃO DOCENTE: ASPECTOS PESSOAIS, PROFISSIONAIS E INSTITUCIONAIS

Katia Luciana Sales Ribeiro Keila de Souza Almeida José Nailton Silveira de Pinho. Resenha: Marx (Um Toque de Clássicos)

Marketing Turístico e Hoteleiro

PERCEPÇÃO AMBIENTAL DE PROFESSORES DE GEOGRAFIA DO ENSINO FUNDAMENTAL

A MODELAGEM MATEMÁTICA E A INTERNET MÓVEL. Palavras Chave: Modelagem Matemática; Educação de Jovens e Adultos (EJA); Internet Móvel.

Projeto - A afrodescendência brasileira: desmistificando a história

Resumo Aula-tema 01: A literatura infantil: abertura para a formação de uma nova mentalidade

Perfil Socioeconômico de Comunidades a Serem Atingidas por Empreendimentos

ESTUDO DOS NOMES DE LUGARES (ACIDENTES HUMANOS) E SUA RELAÇÃO COM O ENSINO DE HISTÓRIA EM LIVROS DIDÁTICOS DO ENSINO FUNDAMENTAL

Estudos da Natureza na Educação Infantil

ALGUNS ASPECTOS QUE INTERFEREM NA PRÁXIS DOS PROFESSORES DO ENSINO DA ARTE

POSSIBILIDADES DE DIFUSÃO DO PENSAMENTO REICHIANO COM BASE NAS TIC S: SOBRE AS PUBLICAÇÕES ONLINE EM PORTUGUÊS

Revista Perspectiva. 2 Como o artigo que aqui se apresente é decorrente de uma pesquisa em andamento, foi possível trazer os

Serviço Nacional de Aprendizagem Rural PROJETO FIP-ABC. Produção sustentável em áreas já convertidas para o uso agropecuário (com base no Plano ABC)

AÇÕES AGROECOLÓGICAS E DESENVOLVIMENTO RURAL: PRÁTICAS SUSTENTÁVEIS NO ASSENTAMENTO PRIMEIRO DO SUL CAMPO DO MEIO, MG. Área Temática: Meio Ambiente

A EDUCAÇÃO QUILOMBOLA

Estado da Arte: Diálogos entre a Educação Física e a Psicologia

ROTEIRO PARA ELABORAÇÃO DE PROJETOS

Projeto Movimentos Sociais e Esfera Pública

REVEL NA ESCOLA: LINGUÍSTICA APLICADA A CONTEXTOS EMPRESARIAIS

PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO: ELABORAÇÃO E UTILIZAÇÃO DE PROJETOS PEDAGÓGICOS NO PROCESSO DE ENSINO APRENDIZAGEM

POVOS INDÍGENAS NO BRASIL. Professor Sebastião Abiceu 7º ano Colégio Marista São José Montes Claros - MG

Disciplina: GEOGRAFIA Professor: FERNANDO PARENTE Ano: 8º Turmas: 8.1 e 8.2

FAZER ESTES ITENS NO FINAL, QUANDO O TRABALHO ESTIVER PRONTO

NARRATIVA DO MONITOR DAS SECAS DO MÊS DE JUNHO DE 2015

ROTEIRO PARA CLASSIFICAÇÃO DE LIVROS Avaliação dos Programas de Pós graduação

Ser grande não significa ser mais rico, e ter relevância em um dos indicadores não confere a cada país primazia em comparação a outro.

TRABALHO DOCENTE VIRTUAL NA EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

ANÁLISE QUALITATIVA DE DADOS

Atividade de Aprendizagem 1 Aquífero Guarani Eixo(s) temático(s) Tema Conteúdos Usos / objetivos Voltadas para procedimentos e atitudes Competências

Rafael Vargas Presidente da SBEP.RO Gestor de Projetos Sociais do Instituto Ágora Secretário do Terceiro Setor da UGT.RO

Desigualdades em saúde - Mortalidade infantil. Palavras-chave: mortalidade infantil; qualidade de vida; desigualdade.

JOSÉ DE ALENCAR: ENTRE O CAMPO E A CIDADE

INTERAÇÃO HOMEM x ANIMAL SOB A PERSPECTIVA DO PRODUTOR RURAL ESTUDO PRELIMINAR. ¹ Discente de Medicina Veterinária UNICENTRO

A IMPORTÂNCIA DAS DISCIPLINAS DE MATEMÁTICA E FÍSICA NO ENEM: PERCEPÇÃO DOS ALUNOS DO CURSO PRÉ- UNIVERSITÁRIO DA UFPB LITORAL NORTE

Criminalidade. Luciano Nakabashi Juliano Condi

BREVE APRESENTACAO, ~

DIVERSIDADE E INCLUSÃO: O ÍNDIO NOS CURRÍCULOS ESCOLARES

OS CONHECIMENTOS DE ACADÊMICOS DE EDUCAÇÃO FÍSICA E SUA IMPLICAÇÃO PARA A PRÁTICA DOCENTE

A USINA HIDRELÉTRICA DO ESTREITO-MA: ANÁLISE DE SEUS ESPAÇOS DE INFLUÊNCIA SOB A CONTRIBUIÇÃO DO TRABALHO DE MILTON SANTOS

José Fernandes de Lima Membro da Câmara de Educação Básica do CNE

A DOMINAÇÃO JESUÍTICA E O INÍCIO DA LITERATURA NACIONAL

11 a 14 de dezembro de 2012 Campus de Palmas

ELENEILDES SOUZA DO CARMO MARIA GORETTI SERRA PLANEJAMENTO DA ATIVIDADE DE INTERVENÇÃO PEDAGÓGICA PARA SIGNIFICAR O ENSINO DE HISTÓRIA

ANÁLISE DO USO DAS CISTERNAS DE PLACAS NO MUNICÍPIO DE FRECHEIRINHA: O CONTEXTO DA PAISAGEM DE SUPERFÍCIE SERTANEJA NO SEMIÁRIDO CEARENSE

Professora Erlani. Apostila 4 Capítulo 1

OS DIREITOS HUMANOS COMO PACIFICADORES NO PERÍODO PÓS-REVOLUÇÃO INDUSTRIAL E GLOBALIZAÇÃO

Neologismos no Facebook: o ensino do léxico a partir das redes sociais

MAPAS CONCEITUAIS NAS PESQUISAS DO NÚCLEO DE ETNOGRAFIA EM EDUCAÇÃO

OBSERVATÓRIO DE GESTÃO DA INFORMAÇÃO. Palavras-chave: Gestão da Informação. Gestão do conhecimento. OGI. Google alertas. Biblioteconomia.

Dúvidas e Esclarecimentos sobre a Proposta de Criação da RDS do Mato Verdinho/MT

As Questões Ambientais do Brasil

Unidade III Produção, trabalho e as instituições I. Aula 5.2 Conteúdo:

. a d iza r to u a ia p ó C II

CURSO E COLÉGIO ESPECÍFICO. Darcy Ribeiro e O povo brasileiro Disciplina: Sociologia Professor: Waldenir 2012

LINGUAGEM E ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

MATÉRIAS SOBRE QUE INCIDIRÁ CADA UMA DAS PROVAS DE CONHECIMENTOS ESPECÍFICOS

DIFICULDADES NA COMPILAÇÃO DE UM CORPUS DE LÍNGUA ESPANHOLA

O Marketing Educacional aplicado às Instituições de Ensino Superior como ferramenta de competitividade. Xxxxxx Xxxx Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxxxxx

Transcrição:

O CAMPO LEXICAL MEIO AMBIENTE: UM ESTUDO EM CARTAS DO SEMIÁRIDO BAIANO 1 Jadione Cordeiro de Almeida (UEFS) jadionealmeida@gmail.com Huda da Silva Santiago (UEFS) huda.santiago@hotmail.com Josane Moreira de Oliveira (UEFS) josanemoreira@aol.com Zenaide de Oliveira Novais Carneiro (UEFS) zenaide@uefs.br 1. Sobre os aspectos teórico-metodológicos Assim como a História, a Sociologia e a Antropologia, as ciências do léxico podem descrever e/ou compreender a organização social de um povo. Enquanto aquelas, principalmente a Sociologia e a Antropologia trabalham com a observação imediatista, muitas vezes in locu, à história e, especialmente, à lexicologia cabe a reconstituição dos hábitos (costumes) de um povo pelo estudo do que está impresso ou gravado. A lexicologia parte de um ponto incomum: o estudo do léxico (ou do vocabulário) como pista para a compreensão de fenômenos sociais, antropológicos e históricos, se de fato tais fenômenos possam ser compreendidos separadamente. A lexicologia, partindo da análise do léxico ou do vocabulário que constituem o vernáculo de uma sociedade, pode identificar, respectivamente nas lexias e nos vocábulos, como se dá ou se deu a organização social de seus falantes. A partir da teoria dos campos lexicais, neste caso, caberá nesta pesquisa, a partir da listagem de alguns vocábulos representativos do campo lexical do meio ambiente no semiárido baiano, estabelecer as relações entre seus subcampos e, se possível, organizar os envelopes das variantes dessa região correspondentes aos vocábulos arrolados. Como um dos objetivos neste trabalho é identificar as características peculiares do meio ambiente de uma região e sua dinâmica a partir de seu vocabulário, a unidade de observação são os vocábulos, por conceber que estes fazem parte de um universo em comum de uma comunida- 1 Agradecemos às professoras doutoras Celina Márcia de Souza Abbade e Rita de Cássia Ribeiro de Queiroz pelo apoio durante o desenvolvimento deste trabalho. Cadernos do CNLF, Vol. XV, Nº 5, t. 3. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2011 p. 2096

de/sociedade, muitas vezes figurados na condição de verbetes de alguns dicionários da língua portuguesa. O léxico pode contribuir para a compreensão dos modos de vida de um povo, pois é nele que se apresenta o acervo no qual se depositam todas as manifestações linguísticas, literárias e culturais de uma dada sociedade, salienta Queiroz (2009), mas é no vocabulário, mais especificamente, que um povo diz muito sobre seus hábitos, costumes e história (ABBADE, 2009). Como vocabulário, neste trabalho, entende-se o que é peculiar (característico) do léxico de uma nação. Dessa forma, a língua portuguesa é o idioma falado em Portugal e respectivas ex-colônias, o léxico seria o característico de cada nação. Como vocabulário, compreende-se tudo o que caracteriza o falar de um povo (região) a partir de suas motivações sócio-histórica-econômicas. Nesta pesquisa, baseia-se na orientação onomasiológica, associada ao modelo semasiológico, a partir da teoria dos campos (COSERIU, 1986). Segundo este autor, Um campo léxico puede definirse como paradigma léxico, es decir, como una estructura lexemática opositiva. En cuando tal, un campo léxico se caracteriza por el hecho de que resulta de la repartición de un contenido léxico continuo entre varios lexemas que se oponen de manera inmediata unos a otros, por medio de rasgos distintivos mínimos (rasgos de contenido, naturalmente). (COSERIU, 1977, p. 185) Com base nessa teoria estabeleceu-se uma listagem dos semas (traço semântico, componente semântico, ou simplesmente, um dos significados de cada vocábulo), que juntos constituem o semantema (conjunto de todos os semas). Neste trabalho arrolou-se os semas dos vinte e nove vocábulos distribuídos em cinco microcampos (espaço, fenômenos naturais, vegetação cultivada, vegetação nativa, animais) que constituem o campo lexical meio ambiente em cartas da zona rural da região sisaleira, a partir da consulta a dois dicionários da língua portuguesa: Houaiss (2007) e Ferreira (1986); de quatro dicionários etimológicos da língua portuguesa: Cunha (2007), Nascente (1966), Machado (1995) e Bueno (1968). Foram consultados, ainda, informantes com idade superior a cinquenta anos, oriundos/moradores da região. A intervenção desses informantes foi relevante para complementar os semantemas dos vocábulos elencados, pois o número de suas ocorrências, observadas nos textos escritos, era limitado (perspectiva semasi- p. 2097 Cadernos do CNLF, Vol. XV, Nº 5, t. 3. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2011

ológica. Através desses modelos, busca-se indicar quais os vocábulos que são constituídos pelo maior número de semas e, consequentemente, qual teria maior significação para a região sisaleira, podendo, assim, eleger (pela expressividade do semantema) quais vocábulos melhor representariam/caracterizariam o meio ambiente nessa região. A partir do estudo do vocabulário das cartas, tencionou-se obter indícios de como se caracteriza o meio ambiente na região. Isso porque, durante o processo de edição e caracterização do perfil sócio-histórico da amostra que será utilizada mais especificamente para estudos de fenômenos de variação e mudança do português brasileiro, despertou-se interesse pela diversidade e/ou riqueza do vocabulário que revela o modo de vida nas comunidades, e foi isso que motivou esta investigação, no sentido de perceber, através do vocabulário, pistas da identidade cultural e social a partir do ambiente em que os remetentes e destinatários das cartas estão inseridos. 2. O corpus Neste trabalho é utilizado um corpus constituído por 13 cartas pessoais escritas por remetentes naturais de comunidades rurais da região sisaleira, no semiárido baiano, mais especificamente, dos municípios de Conceição do Coité, Retirolândia e Riachão do Jacuípe, redigidas ao longo do século XX. Esses documentos fazem parte do banco Documentos Históricos do Sertão (DOHS), do Projeto Vozes do Sertão em Dados: história, povos e formação do PB, da Universidade Estadual de Feira de Santana. A transcrição dos documentos adota as normas do projeto Para a História do Português Brasileiro (PHPB). Das cartas que fazem parte desse banco de textos, e que correspondem à região sisaleira, foram selecionadas as mais representativas para a temática deste estudo, ou seja, as que apresentam um vocabulário mais variado, no que se refere ao campo lexical do meio ambiente. Com exceção de um dos informantes, todos os remetentes e destinatários são de origem rural, possuem baixas condições financeiras e pouca escolarização. São lavradores, trabalham com agricultura e criação de animais; a maioria teve contato com as primeiras letras em casa, pois o acesso à escola era difícil. Isso fica bastante visível nos textos, à medida que apresentam diversos desvios ortográficos, repetição de palavras, ausência de pontuação, concordância verbal e nominal em desacordo Cadernos do CNLF, Vol. XV, Nº 5, t. 3. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2011 p. 2098

com a variedade linguística culta. Percebe-se que os sujeitos, conscientes da falta do domínio pleno da escrita, esforçam-se para estabelecer comunicação. Afinal, naquele período, as cartas ainda eram o único meio acessível aos moradores da zona rural para manter a interação com os que estavam distantes. A dificuldade de acesso aos meios de transportes e a ausência de meios tecnológicos de comunicação, como telefone, faziam com que a comunicação/interação através de cartas fosse bem comum. Muitas vezes, eram entregues por terceiros, como fica visível nas referências de alguns envelopes que não possuem selos. Integrantes da região sisaleira do semiárido baiano, os municípios de origem dos remetentes e destinatários possuem, historicamente, relações políticas, econômicas e sociais, além de fazerem limites entre si. Santos (2009, p. 4) assim descreve essa região: O semiárido baiano ocupa a região central do estado, representando 60% da superfície territorial, abrangendo 258 municípios. 33 destes municípios compunham a chamada região do sisal, que recebe esta denominação devido a sua principal atividade econômica: a extração da fibra do sisal. Com uma base econômica sustentada principalmente por pequenos(as) produtores/propriedades, vale ressaltar que a região sisaleira enfrenta diversos problemas sociais, como aqueles decorrentes dos longos períodos de seca que atingem a região e obrigam o trabalhador a conviver com uma difícil realidade. 3. Etapas de desenvolvimento do trabalho Após a delimitação do corpus, com a escolha das cartas que apresentam os vocábulos referentes ao campo lexical do meio ambiente, passou-se ao levantamento das ocorrências mais representativas, distribuindo-as em microcampos específicos. Os vinte e nove vocábulos relacionados ao campo lexical do meio ambiente foram distribuídos em cinco microcampos, descritos a seguir: a) espaço: cerca, pasto, roça; b) fenômenos naturais: chuva, seca, tempo; c) vegetação cultivada: feijão, mandioca, milho, palha (de sisal), pimentão, quiabo, sisal; p. 2099 Cadernos do CNLF, Vol. XV, Nº 5, t. 3. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2011

d) vegetação nativa: gravatá, macambira, mato, palmatória, umbu, umburana. e) animais: bezerra, cavalo, frango, gado, galinha, jumento, novilha, pinto, porca, vaca. Em seguida, estabeleceram-se o(s) sema(s) de cada vocábulo e, quando possível, a sua etimologia, a partir da consulta aos dicionários. Foram privilegiados, na descrição do conceito, os semas que estão mais relacionados ao contexto em que o vocábulo está inserido, por isso, apresenta-se também a transcrição do trecho do documento em que cada um se encontra. Para ampliar o número dos semas dos vocábulos, foram utilizadas também informações fornecidas por moradores da região, obtidas através de entrevistas. Logo após, os vocábulos foram organizados em ordem alfabética, conforme a distribuição nos respectivos microcampos 1. E, por fim, foi realizada a análise dos dados, correlacionando-os ao contexto espacial e temporal de produção das cartas. 4. Análise Sobre o microcampo vegetação nativa, entre os vocábulos listados, todos têm origem do tupi (gravatá, macambira, umbu e umburana), com exceção do vocábulo mato. Por designar elemento natural comum (vago/generalizado), o português europeu (PE) não adotou qualquer empréstimo equivalente das línguas nativas do Brasil, além do mais há registros antigos desse termo no latim (1083 d.c.). Entre as categorias que normalmente abriram espaço para o empréstimo linguístico de origem indígena pelo PE, as toponímias, antroponímias, fauna e flora se destacam, em especial, esta categoria. A esse respeito, Cardoso (2005, p. 176) chama atenção para o fato de que o vocabulário da flora brasileira de origem tupi é muito grande. Nesta pesquisa, dos vocábulos elencados no microcampo vegetação nativa (de origem indígena), todos nomeiam apenas a flora local, o que de alguma forma, confirma a citação logo acima. Os elementos relacionados à propriedade, porém, no microcampo espaço, estão associados à etimologia latina, ou seja, à cultura do coloni- 1 Devido à limitação de páginas para a publicação deste artigo, não foram apresentadas as descrições dos vocábulos, assim como tabelas, imagens e/ou mapas. Cadernos do CNLF, Vol. XV, Nº 5, t. 3. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2011 p. 2100

zador: cerca, pasto roça, assim como no microcampo fenômenos naturais: chuva e seca. Tal constatação levantaria a hipótese de que os elementos mais comuns ao colonizador, em relação à vida cotidiana ou a e- lementos naturais, não seriam convertidos à língua dos indígenas, visto que tais palavras já seriam conhecidas e/ou utilizadas por ele, não havendo necessidade, portanto, do empréstimo lexical das línguas indígenas. Tal hipótese se justifica no fato de que esses vocábulos possuem registro anterior ao século da chegada dos portugueses ao Brasil: cerca (séc. XV), pasto (séc. XIII), roça (séc. XV), seca (séc. XIII), chuva (séc. XV). Em alguns casos, há discordância entre o que os dicionários registram e o uso que é feito do vocábulo na região. O termo gravatá, por e- xemplo, aparece com o sema equivalente a caroá, porém, na região esses vocábulos designam vegetais diferentes, ainda que da mesma espécie. Em relação a roça, não aparece nos dicionários semas equivalentes a zona rural, a campo, a própria propriedade rural, sentidos esses bastante frequentes no uso local. A ênfase é dada apenas ao sema terreno de lavração agrícola. O microcampo fenômenos naturais, apesar de conter apenas três vocábulos, identifica de forma significativa o meio ambiente da região em estudo, a qual é caracterizada pelas adversidades do clima semiárido. Assim, chuva, seca e tempo são elementos determinantes para a qualidade da vida do homem sertanejo. Como é possível perceber num dos trechos das cartas, a seca/falta de chuva está sempre associada a problemas e a preocupação : (01) Esperamos que Deus nos mandará chuvas para resolver estes problemas. (Carta 10) Quando a seca impede o cultivo vegetal, a vegetação nativa é que servirá de alimentação para os animais: (02) A partir de amanha Os meninos irão queimar palmatória e mancambira no mato para o gado comer. (Carta 10) Com relação ao microcampo vegetação cultivada, pela comparação dos semas é possível constatar que normalmente os vocábulos que denominam os frutos, denominam também o vegetal de origem, como quiabo (o fruto), quiabo (a planta), ou ainda, de modo mais popular, péde-quiabo. De todos os microcampos em análise, vegetação cultivada é o que apresenta vocábulos de etimologia mais variada, com termos de origem indígena, africana e europeia e, por essa variação etimológica, nota- p. 2101 Cadernos do CNLF, Vol. XV, Nº 5, t. 3. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2011

se o efeito do contato linguístico/cultural na região sisaleira do semiárido baiano. Em outras palavras, a variedade de origens dos vocábulos que compõem esse microcampo revela, a partir de uma análise linguística, o quanto a vegetação cultivada/ agricultura sofreu influência de todos os povos que pelo Brasil passaram ou nele instalaram-se. É importante ressaltar que alguns vocábulos, como mandioca, de origem tupi, apresentam um grande número de variantes, o que revela uma variedade de uso dessa matéria-prima para fins diversos pela população da região. Além de mandioca ser um dos vocábulos mais antigos entre os que fazem parte desse microcampo, por designar um vegetal nativo, ele se revela bastante característico do vocabulário local, visto o número de recorrência no corpus em estudo (aparece em três cartas). Segundo Abbade (2009, p. 24, grifo nosso), na Idade Média, o prestígio social era medido pela alimentação: Os legumes [na idade média] eram alimentos úteis à classe inferior da população [...] na alimentação medieval, [antes da chegada dos portugueses ou Brasil, cabe lembrar] a caça, a pesca e a criação selvagem, eram grandes fontes de alimentação. Os alimentos vegetais (cereais e legumes) desempenham papel secundário. Ainda até final do século XX, tais hábitos alimentícios ainda pareciam predominantes na culinária da região sisaleira, em especial na dieta dos moradores da zona rural, que mantinham uma agricultura de subsistência. Os informantes descrevem a necessidade (uso) de grandes quantidades de cereais e de farinha de mandioca (sacos ou cargas), o que indica que o ambiente cultivado nas propriedades locais era comprometido com áreas extensas que passaram por devastação (provavelmente por roçados ), conforme sugerem o fragmento abaixo: (03) Sim Nerado mande mi dize quanto gusta um dia de um trabalhador e 1 saco de farinha e 1 saco < de> feijão e 1 saco de milho. (Carta 11) Fica evidente, portanto, que no contexto em que os remetentes estão inseridos, as áreas cultivadas pelo sisal não eram as mais expressivas/predominantes, mas que elas competiam em espaço com vegetação voltada para subsistência. Uma vez que as famílias eram compostas por um número grande de filhos, exigia-se ou a compra ou o cultivo de grandes áreas ocupadas por plantação de milho, feijão, e, principalmente, mandioca (elementos formadores da base da culinária local). Cadernos do CNLF, Vol. XV, Nº 5, t. 3. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2011 p. 2102

Não se pode desconsiderar a relevância de carnes na alimentação da região sisaleira, mas, com certeza, pode-se dizer que sua presença na mesa parecia limitada. Nos trechos ilustrativos do microcampo animais, os itens elencados sempre estão associados aos verbos vender ou valer. Dessa forma, parece evidente que (grande) parte das propriedades da região era composta por pasto, visto que a criação de animais de grande porte (vaca, jumento, cavalo) exige espaços relativamente extensos ou que sugestivamente compromete a vegetação nativa: a caatinga. Assim como as plantações supracitadas e a caatinga, o pasto também competia com o espaço destinado ao cultivo do sisal, ficando evidente que este dá nome a essa região do semiárido baiano, mas não ocupa a maior parte da vegetação local. No microcampo animais, predominam vocábulos que remetem à criação de aves (frango, galinha e pintinho) e a bovinos (bezerra, gado, novilha e vaca), além de aparecerem dois relacionados aos equinos (cavalo e jumento) e um a suíno (porca). Todos os vocábulos do microcampo animais são datados de um período anterior à chegada dos portugueses ao Brasil, o que estende a hipótese relacionada aos microcampo espaço e fenômenos naturais (supracitada) ao microcampo animais, uma vez que os animais elencados nesta pesquisa foram introduzidos pelo colonizador na cultura (ambiente) brasileira. Não se pode negar, porém, a contribuição de vocábulos de origem indígena que nomeariam animais nativos da região do sisal. Segundo Elia (2003, p. 51), as designações indígenas dizem mais respeito à aspectos naturais do que da realidade cultural: [...] araponga, capivara, gambá, jacaré, jararaca, juriti, piranha, sabiá, saúva, tamanduá, urubu etc. (animais). Nessa região, todavia, muitos desses animais deixam de ser meros elementos da natureza e passam a formar parte da cultura alimentar de seu povo. Por outro lado, nesse corpus não foi arrolado qualquer nome de animal que fosse retirado de seu ambiente natural e eventualmente domesticado (para alimentação), o que sugere a predominância da cultura do colonizador na dieta local, e consequentemente, de alguma forma, minimizou a extinção de alguns animais nativos. Os semas encontrados nos dicionários consultados nem sempre dão conta de expressar o uso que é feito deles na região sisaleira no que diz respeito ao microcampo animais. Em relação à novilha, por exemplo, a definição encontrada foi insatisfatória, pois os semas vaca nova e bezerra não correspondem ao uso realizado nessa região. Diferente de be- p. 2103 Cadernos do CNLF, Vol. XV, Nº 5, t. 3. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2011

zerra, que é uma vaca nova, em período de amamentação, a novilha é a vaca que ainda não deu cria, apenas um dos dicionários registra tal aspecto. 5. Considerações finais Na região sisaleira do semiárido baiano, o vocabulário que compõe o campo semântico meio ambiente é bastante representativo do modo de vida das pessoas, levando-se em consideração que nessa região a vida do homem do campo depende das condições naturais, uma vez que o seu trabalho está voltado para a agricultura de subsistência e para a criação de animais. Nesse sentido, quando se examina o léxico regional, para Isquerdo (2001, p. 91) analisa-se e caracteriza-se não apenas a língua, mas também o fato cultural que nela se deixa transparecer. Além de possibilitar a percepção de pistas da identidade cultural e social dos sujeitos envolvidos no processo de produção e recepção dos textos que compõem o corpus em análise, este estudo permitiu visualizar a dimensão do efeito do contato linguístico no vocabulário referente ao meio ambiente. Cabe destacar a necessidade de estudos futuros, que possam complementar a abordagem realizada, colaborando para reconstruir aspectos sócio-históricos da região sisaleira a partir dos estudos lexicais. Além disso, ao analisar os vocábulos selecionados, constataram-se algumas limitações nas obras lexicográficas, uma vez que certos registros são insatisfatórios, pois não expressam todas as variantes nem todos os semas correspondentes ao contexto em que os vocábulos do corpus podem ser usados. Daí a importância de trabalhos lexicográficos e lexicológicos relacionados ao vocabulário dessa região, que possam ampliar/complementar os estudos já realizados, contribuindo para traçar o perfil identitário, social e linguístico da região do sisal. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABBADE, Celina Márcia de Souza. O vocabulário da atividade sisaleira em Conceição do Coité. In: QUEIROZ, Rita de Cássia Ribeiro de (Org.). Língua, cultura e sociedade: estudos sobre o léxico. Feira de Santana: Universidade Estadual de Feira de Santana, 2009, p. 145-163. CD-ROM.. Um estudo lexical do primeiro manuscrito da culinária portuguesa medieval: um livro de cozinha da infanta D. Maria. Salvador: Quarteto, 2009. Cadernos do CNLF, Vol. XV, Nº 5, t. 3. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2011 p. 2104

BUENO, Francisco da Silveira. Grande dicionário etimológico-prosódico da língua portuguesa, 8 vols. São Paulo: Saraiva, 1968. CARDOSO, Elis de Almeida. A formação histórica do léxico da língua portuguesa. In: SILVA, Luiz Antônio da (Org.). A língua que falamos: português: história, variação e mudança. São Paulo: Globo, 2005. COSERIU, Eugenio. Princípios de semántica estrutural. 2. ed. Vers. esp. Marcos Martinez Hernández, rev. por el autor. Madrid: Gredos, 1986. CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Lexikon Editora Digital, 2007. ELIA, Sílvio. Fundamentos histórico-linguísticos do português do Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio século XXI: o dicionário da língua portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. HOUAISS, Antônio et al. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007. ISQUERDO, Aparecida Negri. Vocabulário do seringueiro: campo léxico da seringa. In: OLIVEIRA, Ana Maria Pinto Pires de; ISQUERDO, Aparecida Negri (Orgs.). As ciências do léxico: lexicologia, lexicografia, terminologia. 2. ed. Campo Grande: UFMS, 2001. MACHADO, José Pedro. Dicionário etimológico da língua portuguesa. Lisboa: Livros Horizonte, 1995. NASCENTES, Antenor. Dicionário etimológico resumido. Brasília: Instituto Nacional do Livro, Ministério da Educação e Cultura, 1966. QUEIROZ, Rita de Cássia Ribeiro de (Org.). Língua, cultura e sociedade: estudo sobre o léxico [recurso eletrônico]. Feira de Santana: Universidade Estadual de Feira de Santana, 2009, 1 CD-ROM. SANTOS, Vilbégina Monteiro dos. A construção de uma comunidade imaginada do sisal. In: QUINTO ENCONTRO DE ESTUDOS MULTI- DISCIPLINARES EM CULTURA, 2009. Salvador. Anais... Disponível em: http://www.cult.ufba.br/enecult2009/19154.pdf. Acesso em: 28-03- 2011. p. 2105 Cadernos do CNLF, Vol. XV, Nº 5, t. 3. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2011