Corpo da Imagem e Corpo Falante Miquel Bassols É no corpo imaginário que as palavras da língua fazem entrar as representações, que nos constituem um mundo ilusório segundo o modelo da unidade do corpo. [Jacques-Alain Miller. O inconsciente e o corpo falante]. Não há corpo para um sujeito antes que a imagem especular tenha oferecido uma unidade ou dado consistência imaginária à experiência proprioceptiva de seu organismo, sempre despedaçada. A clínica do autismo e das psicoses nos ensinam as dificuldades para construir essa unidade do corpo que aparece em muitos fenômenos como precária, a mercê do real do corpo despedaçado. Por outro lado, não há imagem unitária possível do mundo antes da constituição do corpo como unidade, a partir de uma experiência sempre ancorada no registro do simbólico, como experiência de linguagem. Essas duas questões, que podem se alternar mutuamente num aparente círculo vicioso, encontram-se na citação de Jacques Alain Miller que escolhemos em sua apresentação do tema para o próximo Congresso da AMP. Elas têm seu lugar no enlaçamento do real, do imaginário e do simbólico, na construção que chamamos de um corpo. É preciso assinalar que o corpo é, ele mesmo, um acontecimento nesse
enlaçamento, um acontecimento diferente das funções isoláveis no organismo. Convém questionar, a partir desse ponto, os termos que estão em jogo na citação. I O que é o corpo imaginário? Não se trata somente da imagem especular do corpo, de sua representação imaginária tomada como Gestalt, como imagem perceptiva na qual se fundam os fenômenos vinculados à identificação denominada homeomórfica, feita de simetrias e reversões. Trata-se também e, sobretudo, da experiência de ter um corpo como unidade na qual se localiza uma satisfação pulsional, uma experiência de gozo. De fato, o famoso Estádio do espelho, em Lacan, distingue essa experiência das formas imaginárias de identificação, é a primeira forma em seu ensino que situa uma experiência do gozo no corpo tomado como Um na azáfama jubilatória da experiência lúdica, como a assunção jubilatória de sua imagem especular por esse ser ainda mergulhado na impotência motora. 1 O corpo imaginário é uma forma de nomear esse momento inaugural da injeção de gozo no corpo. Nesse momento de inflexão crucial, não só a imagem oferece ao corpo uma unidade desde o exterior. É preciso ainda que a própria imagem tome corpo nessa unidade localizando a experiência pulsional do gozo. Além disso, é o que parcializará de outra forma essa frágil unidade. Assim, a imagem do corpo é sincrônica do que podemos chamar, segundo a expressão do poeta Lezama Lima, o corpo da imagem. A imagem não se reduz aqui a uma Gestalt, que no mundo animal tem somente a função de captação imaginária. A imagem adquire no registro do simbólico da linguagem uma função significante, e ela produzirá, a partir daí, ressonâncias semânticas no corpo, no corpo da imagem habitado pela pulsão sempre parcial. O poeta aborda esse reino da imagem da seguinte forma: O som da água unifica as imagens, a imagem do corpo e o corpo da imagem coincidem na unidade do espelho. A imagem no rio e a imagem no espelho, o espelho substituindo o rio, mas nós perseguimos, como fantasmas errantes, a unidade da imagem. 2 O som da água é aqui mais do que um simples ruído, é um som que produz ressonâncias semânticas no corpo, como o fará lalíngua em suas ressonâncias mais singulares para cada ser falante, para além de sua significação e do significado induzido pelas relações entre seus significantes. Nesse 1 Jacques Lacan, O estádio do espelho como formador da função do eu, Escritos, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, p. Ed. Siglo XXI, México, p 97. 2 José Lezama Lima, El reino de la imagen, Biblioteca Ayacucho, Caracas 1981, p 535
enlaçamento, o significante se situa no nível da substância gozante 3. A língua, objeto da linguística, se transforma em lalíngua definida pela substância gozante veiculada pelo significante, uma substância que toca o real do corpo. O real da lalíngua dá corpo à imagem, que a partir daí constitui esse mundo ilusório, essa unidade sempre vacilante que chamamos mundo, e até mesmo universo, segundo o modelo da unidade do corpo apreendida no espelho. Essa é uma primeira forma de abordagem do enlaçamento dos três registros: o Real de lalíngua faz entrar as representações do simbólico, do significante como substância gozante, no imaginário da unidade corporal. II O corpo da imagem torna-se assim um corpo falante. Mas, o que é exatamente um corpo falante? O que torna humano um corpo é que ele seja, com efeito, um corpo falante. O termo falante não funciona aqui como um adjetivo que complementaria um substantivo definido de antemão o corpo acrescentando-lhe o ato de falar. O erro habitual da psicologia é pensar que a fala é uma função cognitiva do corpo, um comportamento aprendido, ainda que ela seja sustentada de maneira inata em uma estrutura profunda do organismo (cf. Chomsky e o gerativismo). Isso é falso. Nem a fala nem a linguagem são redutíveis a funções cognitivas, pois essas funções, entendidas como funções orgânicas, dependem a priori da relação do sujeito com o significante, com a estrutura da linguagem que o precede, enquanto corpo e enquanto ser que fala. De fato, uma língua não se aprende, ela se transmite a partir de uma experiência de gozo que toca o corpo da imagem. Falante funciona na expressão o corpo falante como um particípio ativo ou particípio presente, equivalente, em alguns casos, ao gerúndio. Não se trata do fato de que exista um ser a priori, ao qual se acrescentaria a propriedade de falar. Tal como Lacan assinala em várias ocasiões, esse ser só é ser na medida em que fala. Da mesma forma, devemos dizer também que esse ser só chega a ter um corpo na medida em que fala, na medida em que é falante ou falado4. O corpo falante é um mistério, ele se revela estranho, ao ponto que a própria fala acabou por substantivar esse particípio para torná-lo equivalente ao sujeito especifico da 3 Jacques Lacan, Le Séminaire XX, Encore, p. 26 : Je dirai que le signifiant se situe au niveau de la substance jouissante. 4 Lacan, cuando utiliza el término ser hablante y parlêtre no deja nunca de decir que sólo tiene ser por el hecho de hablar. Jacques-Alain Miller, Curso L Un tout seul, 16/03/2011, inédito.
linguística: o falante. O falante é uma abstração que nada tem a ver com a estranheza do que chamamos o corpo falante. Melhor seria partir da premissa heideggeriana ainda que seja para retificá-la depois: é a fala mesma que fala, aquela que fala em um corpo que não é da ordem do ser e sim do ter. Não se chega a ter um corpo falante por um processo evolutivo senão através de uma experiência na qual está implicado o gozo, a satisfação da pulsão. O significante que determina a relação do sujeito com a fala, com lalíngua, é aqui ainda a substância gozante que toma corpo também nas imagens de mundo lidas, a partir de então, com o corpo da imagem. O sujeito lê as imagens do seu mundo ilusório com as letras que escreveram em seu corpo as diversas e sucessivas experiências de gozo. O império das imagens é, então, o império dos significantes que tomam corpo para cada sujeito na letra de sua experiência de gozo. III É diferente dizer que há um corpo falante e dizer que há um corpo que fala. Podemos realmente sustentar que um corpo fala, podemos afirmar que é o corpo quem fala? Essa parece ser uma certeza reservada somente a alguns sujeitos que experimentam a estrutura da linguagem como uma revelação, sempre através de uma experiência de gozo. Citemos Ramon Llull, para quem, em pleno século XIV, a fala emergiu como um sexto sentido, comparável aos cinco sentidos clássicos, a partir de uma experiência de revelação da estrutura da linguagem. Curiosamente, alguns séculos depois, alguém como Kurt Gödel afirmou a mesma coisa a partir de outra perspectiva: Suponhamos que alguém possua um sexto sentido (a linguagem) que lhe dê somente algumas percepções dos outros sentidos 5 Com as consequências que são conhecidas, tanto na ruptura que supomos em sua própria experiência subjetiva quanto na história da lógica. O que essa experiência percebe como um sexto sentido no corpo é na realidade a aparição do real do significante sob a forma do corpo da imagem. De fato, há que se chegar às consequências clínicas e lógicas desse ponto para que se apreenda a estranheza do real do corpo falante, esse mistério que Lacan igualou ao mistério do inconsciente6. Na realidade, ninguém sabe exatamente o que faz do corpo humano um corpo falante. As neurociências tentam, em vão, localizar o corpo falante como 5 Ver nosso breve texto, Ramon Llull, Kurt Gödel: el sexto sentido, en Tu Yo no es tuyo, Ed. Tres Haches, Buenos Aires 2011, p. Error: Reference source not found 6 O real, eu diria, é o mistério do corpo falante, é o mistério do inconsciente. Lacan, J. Seminário XX, Mais ainda, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1985, p. 178.
uma propriedade no organismo, em alguma região do cérebro. A genética tenta reduzi-lo a uma informação de um código que depende, na verdade, do Outro da linguagem para que revele um certo sentido, um sentido que, por outro lado, não pode ser reduzido a nenhum código. O corpo falante aparece como um corpo falado, entre o mistério do inconsciente e a evidência do corpo da imagem, em todas a variedade da clínica atual. É o que investigaremos em nosso trabalho até o próximo Congresso da AMP. Tradução: Maria Silvia G F Hanna Revisão: Oscar Reymundo e Yolanda Vilela