Cadernos de Letras da UFF Dossiê: Palavra e imagem n o 44, p. 143-159, 2012 143. 1. Introdução



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Transcrição:

Cadernos de Letras da UFF Dossiê: Palavra e imagem n o 44, p. 143-159, 2012 143 DISCURSO, DESLIZES E DERIVAS: A NOVELA QUALY E OS MÚLTIPLOS SENTIDOS DA IMAGEM DA FAMÍLIA CONTEMPORÂNEA Daniela Botti da Rosa, Ahiranie Sales dos Santos Manzoni e Lisiane de Alcaria Oliveira RESUMO O presente trabalho tem por objetivo fazer uma interface entre a Análise do Discurso e a publicidade. Para isso, escolhemos como objeto de nosso artigo um anúncio publicitário da margarina Qualy. Apresentaremos os dispositivos teórico-metodológicos da AD francesa para compreendermos a construção dos sentidos que emanam do discurso publicitário da margarina como a imagem da família é (des)construída e o que é por ele silenciado. 1. Introdução PALAVRAS-CHAVE: Discurso publicitário; acontecimento; sentidos. As imagens podem ser substituídas por palavras. Entretanto, quando se ajunta às palavras as representações plásticas, gráficas ou fotográficas de alguém ou de algo, temos aí uma potencialização de consolidação de sentidos no meio social. Isso é o que vemos na maior parte do tempo nos comerciais de TV e da mídia impressa. Temos então o discurso. Discurso que seduz, que convence, que influencia e que transforma e que, ao mesmo tempo, é transformado pelas mudanças sociais em um perene movimento dialético, pois como afirma Bakhtin 1 (1986, p. 32), um signo não existe apenas como parte de uma realidade; ele também reflete e refrata uma outra. 1 BAKHTIN, Mikhail (Volochinov). Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 1986.

144 Rosa, Daniela Botti da; Manzoni, Ahiranie Sales dos Santos; Oliveira, Lisiane de Alcaria. Discurso, deslizes e derivas: a novela qualy e os múltiplos sentidos da imagem da família contemporânea O discurso publicitário que tem por objetivo conquistar e seduzir um público alvo, consolida ainda mais a união entre palavras e imagens pois há, neste contexto, uma relação entre um objeto que se deseja vender e um sujeito que deseja comprar e ao qual é atribuído um potencial de comprar. É nesse instante que existe a troca de olhares, a marca da sedução e, consequentemente, a persuasão. De acordo com Malanga 2 (1979), a publicidade, que é uma decorrência da propaganda, é persuasiva e tem um objetivo comercial bastante caracterizado. O autor a define como a arte de despertar no público o desejo de compra, levando-o à ação. Há muito tempo que os informes publicitários deixaram de se concentrar nas características do produto a ser vendido e passaram a fabricar desejos. Ao vender uma marca, um produto, o discurso publicitário busca vender uma ideia, passar uma mensagem ao consumidor que permita alçar o produto à categoria de objeto do seu desejo. O desejo, segundo a teoria psicanalítica de Sigmund Freud, conforme retomada por Lacan, é a mola mestra de todo agir humano. O ser humano, enquanto ser social, que se constitui em relação ao Outro, é um ser faltoso em essência. Segundo Lacan 3 (1995), para que um sujeito se constitua, é preciso que aquele que ocupa o lugar de grande Outro para a criança em geral a mãe não seja completo, é preciso que lhe falte algo. Por ser um ser faltante, esse Outro deseja. Esse desejo, gerado pela incompletude, busca sempre se satisfazer, e cada indivíduo que vem ao mundo é investido como objeto que poderia completar a falta desse Outro materno. Ao desejar, a mãe constitui na criança um sujeito, que se coloca a falar no mundo na tentativa de completar esse Outro. O desejo do Outro institui a falta na criança, que, por sua vez, se põe a desejar constantemente na busca de satisfação, de fechar um buraco que nunca se completa. Os objetos de consumo se colocam como derivações de um objeto com o qual os sujeitos buscam completar-se. E como essa fome desejante não pode jamais ser saciada já que o desejo é sempre desejo de outra coisa, a fome sempre é fome de outra coisa o desejo se desloca metonimicamente de objeto em objeto. 2 3 MALANGA, Eugênio. Publicidade uma introdução. Atlas: São Paulo, 1979. LACAN, J. O Seminário, Livro 4: A Relação de Objeto. RJ: Zahar, 1995.

Cadernos de Letras da UFF Dossiê: Palavra e imagem n o 44, p. 143-159, 2012 145 Dessa forma, podemos observar que a sedução é uma estratégia utilizada para atrair e persuadir fortemente o consumidor; o sentido dominante de que o produto/objeto é necessário, é ideal, aumenta o desejo pelo consumo imediato, fazendo com que outros sentidos sejam interditados. Por isso, Carvalho 4 (2001) afirma que o discurso publicitário objetiva interagir com os indivíduos apresentando-lhes os bens de consumo da sociedade capitalista e os incentiva a tornarem-se autênticos e vorazes consumidores. Assim, nossa proposta para esse trabalho é buscar, à luz da Análise do Discurso (AD) da linha francesa pechetiana, trilhar um caminho para compreendermos a construção dos sentidos nos comerciais (novela) da Margarina Qualy que elegemos como materialidade de análise, observando a relação entre as palavras e imagens que constroem um discurso sedutor, e analisar o funcionamento deste mesmo discurso através de algumas categorias da AD que consideramos essenciais neste estudo. Em nossa posição de analistas do discurso, de linha francesa, defendemos que mais do que interagir e incentivar (como citado pela autora) o discurso publicitário almeja legitimar sua marca e persuadir os indivíduos através dos seus comerciais que oferecem o produto sempre como o melhor, o ideal, no entanto, nesses discursos, vemos que muitos dizeres são silenciados e, com isso, muitos sentidos não são apreendidos pelo público consumidor. A sua relação (publicidade) com a mídia é de extrema relevância, pois a veiculação de seus produtos se dá, em sua maioria, pelos meios de comunicação. E, desse modo, poderemos identificar que o lugar (televisão, rádio, mídia impressa, internet), o horário, o tempo do comercial constrói sentidos direcionados, induzindo o público consumidor a um desejo maior pelo produto. Para apreendermos, compreendermos e desvelarmos esses sentidos, selecionamos um anúncio da Margarina Qualy 5 que foi veiculado durante um longo período (entre os anos de 2009-2010) na mídia televisiva como episódios de novela para realizarmos nossas análises que terão como suporte teórico-metodológico a AD de linha francesa de Michel Pêcheux. 4 5 CARVALHO, N. Publicidade: a linguagem da sedução. São Paulo: Ática, 2002. Atualmente esse comercial pode ser acessado no site do youtube. Disponível em http:// www.youtube.com/watch?v=bfo8ejsggz0&feature=related (primeiro episódio).

146 Rosa, Daniela Botti da; Manzoni, Ahiranie Sales dos Santos; Oliveira, Lisiane de Alcaria. Discurso, deslizes e derivas: a novela qualy e os múltiplos sentidos da imagem da família contemporânea O que veremos neste comercial que está dividido em três episódios é a construção da família contemporânea, diferentemente dos anúncios realizados, há alguns anos, pela empresa, este apresenta novos perfis para os personagens uma mulher, que não possui marido/companheiro, mora na casa da mãe com seu filho de sete anos e que tem um relacionamento com um homem que não é o pai do menino. A divulgação desse produto foi veiculada pela mídia televisiva em forma de capítulos, como uma pequena novela. O discurso aí presente nos permite visualizar a estrutura de uma família contemporânea que rompe com os formatos tradicionais. Através da noção teórica de acontecimento discursivo, analisamos como o anúncio constrói efeitos de sentido referentes às novas relações familiares. Os informes trazem como tema a família, que se enquadra na cadeia de sentidos dos comerciais de margarina em geral, mas inova ao tratar de relações contemporâneas: pela primeira vez um anúncio de margarina traz uma família com uma mãe, que não possui marido/companheiro, que inicia um novo relacionamento. O acontecimento discursivo rompe com uma cadeia e inicia uma nova cadeia de produção de sentidos, trazendo elementos tanto da cadeia com a qual rompe, como elementos constitutivos da nova cadeia. Para a compreensão do funcionamento do discurso as derivas e deslizes dos dizeres traremos o conceito de acontecimento e as seguintes categorias analíticas: formação discursiva, formação ideológica, condições de produção, e silenciamento. 2. Percurso teórico Para iniciar esse percurso teórico que sustentará as análises posteriores, tomamos a noção de acontecimento. Segundo os desenvolvimentos teóricos de M. Pêcheux 6 em seus últimos estudos, o discurso não se constitui apenas de uma estrutura, mas de acontecimento que mobiliza memórias, fazendo com que os sentidos produzidos sejam sempre uma retomada de dizeres anteriores e exteriores ao sujeito. Em certos momentos, infrequentes, novos gestos 6 PÊCHEUX, Michel. O discurso: estrutura ou acontecimento. Tradução Eni Orlandi. São Paulo: Pontes, 1990.

Cadernos de Letras da UFF Dossiê: Palavra e imagem n o 44, p. 143-159, 2012 147 de produção de sentidos inauguram novas redes de memória. Quando dizemos inauguram, não estamos dizendo que esse novo evento discursivo o acontecimento não traz uma memória em seu processo de formulação e constituição, mas que o acontecimento é...o ponto de encontro entre uma atualidade e uma memória (PÊCHEUX, 1990, p. 17). Todo acontecimento discursivo rompe com uma cadeia de retomadas de memória e traz a marca tanto da cadeia com a qual rompe como da cadeia que inaugura. Inicia uma nova série de retomadas, reformulações, paráfrases e derivações polissêmicas. Nas análises, articularemos a nova imagem de família que vem se construindo na sociedade contemporânea a um comercial de margarina. Os comerciais de margarina têm como uma de suas marcas registradas a apresentação de uma família perfeita, padrão (essa é a cadeia antiga), enquanto os anúncios da Qualy analisados trazem a imagem de uma família que até então não tinha sido considerada como uma família modelo (a nova cadeia de produção de sentidos). A noção de acontecimento vai estar muito imbricada nas condições de produção do discurso. As condições de produção dizem respeito aos sujeitos, ao contexto em que estes estão inseridos no discurso e às formas como eles se filiam às condições sócio-histórico-ideológicas no dizer. Segundo Orlandi 7 (2003), a memória também constitui a produção do discurso. A maneira como a memória aciona, faz valer, as condições de produção é fundamental (op.cit., p. 30), que são, por sua vez, classificadas em estritas e amplas. As condições estritas de produção do discurso referem-se às condições imediatas que permeiam o que se diz. Courtine 8 (1981) trata este conceito como definição empírica, pois situa o dizer no contexto do ato do discurso. Já as condições amplas remetem ao conjunto de elementos que assentam o sujeito na história, isto é, no contexto social e ideológico. Cavalcante 9 (2007, p. 37) explica esse conceito dizendo que este é, 7 8 9 ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 2003. COURTINE, Jean-Jacques. Analyse du discours politique (Le discours communiste adressé aux chrétiens) in: Langages Paris, Larousse, 1981. Cavalcante, Maria do Socorro Aguiar de Oliveira. Qualidade e cidadania nas reformas da educação brasileira: o simulacro de um discurso modernizador. Maceió: Edufal, 2007.

148 Rosa, Daniela Botti da; Manzoni, Ahiranie Sales dos Santos; Oliveira, Lisiane de Alcaria. Discurso, deslizes e derivas: a novela qualy e os múltiplos sentidos da imagem da família contemporânea a forma como esses acontecimentos significam e afetam os sujeitos em suas diferentes posições políticas na sociedade, como se organiza o poder, distribuindo posições de mando/subordinação x resistência; de exploração x explorado; de sedução/ adesão x rejeição etc. Como diz Bakhtin (1981), os sentidos do discurso são determinados, pela situação social mais imediata que, por sua vez, resulta do meio social mais amplo. Assim, percebemos que os sentidos no discurso emanam exatamente dessa relação do sujeito com o meio social, com a história, com o seu tempo e com as influências a que é submetido, através da ideologia. Pois, como diz Orlandi (2003, p. 17), em uma paráfrase do dizer de Pêcheux, não há discurso sem sujeito. E não há sujeito sem ideologia [...] Por sua vez, as condições de produção também se articulam com as formações discursivas e com as formações ideológicas, duas outras categorias da AD. As formações ideológicas são as formas que a ideologia toma em cada formação social. É um conjunto de práticas sociais, ideias, representações, que fundamentam uma sociabilidade. Na formação social capitalista, encontram- -se duas grandes formações ideológicas: uma que fundamenta o capitalismo (formação ideológica do capital), que faz com que os sujeitos tenham como naturalizada a divisão de classes, a exploração do trabalho, o lucro, o consumo, a propriedade privada (elementos fundamentais da sociedade capitalista); e uma outra que contradiz o capitalismo, fundamentando a possibilidade de uma prática social para além do capital (formação ideológica do trabalho). As formações ideológicas são expressões da conjuntura ideológica de uma formação social, As formações ideológicas são representadas pela via de práticas sociais concretas, no interior das classes em conflito, dando lugar a discursos que põe à mostra as posições em que os sujeitos se colocam/são colocados. (FLORÊNCIO et al., 2009, p. 69) 10 10 FLORÊNCIO, Ana Gama et alii. Análise do Discurso: fundamentos e prática. Maceió: Edufal, 2009.

Cadernos de Letras da UFF Dossiê: Palavra e imagem n o 44, p. 143-159, 2012 149 A formação discursiva, por sua vez, é aquilo que numa formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada numa conjuntura dada, determinada pelo estado da luta de classes, determina o que pode e deve ser dito (articulado sob a forma de uma arenga, de um sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um programa etc). (PÊCHEUX, 2009, p.147) 11. As formações discursivas, portanto, dependem das formações ideológicas para estabelecerem seus sentidos: Dependendo da FI, haverá um conjunto de Formações Discursivas (FD), isto é, de lugares de dizer que funcionarão como incentivadores e/ou repressores do dizer do sujeito. (MAGALHÃES, 2005, p. 27) 12. Apesar de sempre haver uma FD que domina sobre as outras, é possível notar diferentes formações discursivas presentes em um discurso. E, a partir dessa compreensão, entendemos que o mesmo dito pode ganhar sentidos diferentes dependendo em qual formação discursiva esteja ele inscrito, Pode-se falar das mesmas coisas, atribuindo-lhes diferentes sentidos, porque as palavras mudam de sentido ao passarem de uma formação discursiva para outra. [...] Assim, a formação discursiva assume caráter plural, com fronteiras tênues e instáveis, sempre passíveis de deslocamentos provocados por contradições ideológicas. (FLORÊNCIO et al., 2009, p. 74) Os sentidos, portanto, provêm dessa relação com as palavras e sua história: As palavras falam com as outras (ORLANDI, 2003, p.32), como também silenciam outras. Pensando a relação entre os anúncios publicitários da Qualy e a produção dos sentidos, observamos que o direcionamento ou o sentido dominante 11 12 PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas: Editora da Unicamp, 2009. MAGALHÃES, Belmira. As marcas do corpo contando a história: um estudo sobre a violência doméstica. Maceió: Edufal, 2005.

150 Rosa, Daniela Botti da; Manzoni, Ahiranie Sales dos Santos; Oliveira, Lisiane de Alcaria. Discurso, deslizes e derivas: a novela qualy e os múltiplos sentidos da imagem da família contemporânea que eles procuram produzir é: a família que tem a margarina à mesa é sempre unida e feliz, independente de ser tradicional (dos antigos anúncios) ou contemporânea (da pequena novela mais atual). No entanto, o fato de dizer algo implica necessariamente deixar de dizer. Há, dessa forma, o apagamento de outros sentidos possíveis, mas não desejáveis. Neste momento, trazemos a fala de Orlandi 13 (1997, p. 24) que defende que para dizer é preciso não dizer. E, ainda, dizer e silenciar andam juntos. Efeitos de sentido e silenciamento são duas categorias que estão intrinsecamente relacionadas, o funcionamento de uma depende da outra. Ou seja, quando elaboramos/produzimos o discurso, que é repleto de sentidos, sempre colocamos em silêncio outros dizeres, outros sentidos. De acordo com Orlandi (op.cit., p. 75), o silenciamento produz um recorte entre o que se diz e o que não se diz, isto é, se diz x para não (deixar) dizer y este sendo o sentido a se destacar do dito. É no silenciamento que buscaremos desvelar os sentidos que não estão na superficialidade do discurso (aparentes). O fato de termos como objeto de análise um anúncio publicitário que é veiculado pela mídia televisiva nos permite refletir sobre as múltiplas possibilidades de sentido que não são apreendidas pelos consumidores, mas que, no entanto, estão postas. A partir dessas reflexões do nosso percurso teórico, poderemos passar para a próxima etapa do nosso trabalho: a análise do nosso corpus. 3. Considerações sobre a imagem da família no anúncio publicitário da margarina qualy: análise de um acontecimento Antes de fazermos as análises, apresentaremos a descrição dos três episódios da novela Qualy. O comercial apresenta quatro personagens: Ana (mãe), Rafa (menino), Beto (namorado de Ana) e a Avó do Rafa. Episódio 1 A notícia Ana- Rafa, cê sabe o Beto aquele meu amigo? Rafa- Beto? Não, não sei quem é não. Avó- Ah, mas vai saber. Sua mãe oh... tá namorando. 13 ORLANDI, Eni Puccinelli. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 4. ed. São Paulo: Unicamp, 1997.

Cadernos de Letras da UFF Dossiê: Palavra e imagem n o 44, p. 143-159, 2012 151 Ana- Mãe?! Rafa- Mãe, que história é essa? Slogan (Ana) Qualidade de vida começa com Qualy da Sadia. Rafa Ana Episódio 2 O encontro Rafa- Esse aí é o Beto. Se ele tá aqui e eu tô aqui, isso é um péssimo sinal. Beto- E aí rapá? Tava louco pra vim aqui te conhecer. Rafa- Você pode namorar minha mãe, mas aqui tem regras: dez horas em casa. Beijo na boca? Uhgh! Nem pensar. E o pote da Qualy é meu. Ana- Licença (A mãe o retira da mesa). Rafa- Tô de olho em você. Avó- Liga não! Esse menino é muito careta. Slogan (Rafa) Qualidade de vida começa com Qualy da Sadia. Rafa Avó Episódio 3 Convite Beto- (Chegando com os pães) Bom dia! Ana- Bom dia! Rafa- A coisa por aqui tá cada dia mais séria. Por isso eu resolvi lidar

152 Rosa, Daniela Botti da; Manzoni, Ahiranie Sales dos Santos; Oliveira, Lisiane de Alcaria. Discurso, deslizes e derivas: a novela qualy e os múltiplos sentidos da imagem da família contemporânea com a situação de forma bem madura: decidi que o Beto não existe (Flashback: Beto oferece presentes bicicleta, sorvete e cachorro os quais o menino recusa). Não é fácil, mas eu tenho que ser duro para o meu próprio bem (Beto oferece um pote cheio de margarina Qualy quando vê o pote do Rafa vazio). É... o cara é bom! Slogan (Beto) Qualidade de vida começa com Qualy da Sadia. Rafa Beto Análises: Há algum tempo, a instituição família vem ganhando novos contornos a partir de mudanças que a própria sociedade impõe. As condições amplas de produção de discurso que analisamos referem-se a um novo modelo de família, a uma nova posição da mulher na sociedade e a uma maior participação das crianças nas decisões familiares e no consumo. Segundo pesquisa do IBGE 14, em 1996, havia 10,3 milhões de mulheres chefes de família no Brasil e, em 2006, foram registrados 18,5 milhões, ou seja, um aumento de 79%. Esses dados nos mostram que o formato da família sofreu alterações significativas nos últimos tempos. Os comerciais de margarina ficaram marcados, dentro do discurso publicitário, como representações da família ideal, perfeita. A publicidade, ao mesmo tempo, representa e cria desejos. A família idílica, onde todos (pai, mãe e filhos) estão sempre felizes, sorrindo, a mesa é farta, a relação é afetuosa e tranquila, se torna uma construção imaginária que vende um ideal de felicidade. Na família Qualy do comercial que estamos analisando, a imagem da felicidade, do afeto familiar continua, mas com outras nuances. Percebemos que, pela primeira vez, aparece uma família diferente da família tradicional 14 Acessado em maio de 2010. Disponível em http://www.ibge.gov.br/home/

Cadernos de Letras da UFF Dossiê: Palavra e imagem n o 44, p. 143-159, 2012 153 e que alguns conflitos agora são representados. No reino onde antes reinava a paz e a tranquilidade perenes, agora se conta uma história levemente mais próxima da realidade, com seus pequenos dramas familiares cotidianos. Se observarmos no anúncio publicitário, a posição da criança é de querer sobrepor sua vontade e ser autoritário como nas falas do episódio 1: Rafa- Mãe, que história é essa? E do episódio 2: Rafa- Você pode namorar minha mãe, mas aqui tem regras: dez horas em casa. Beijo na boca? Uhgh! Nem pensar. E o pote da Qualy é meu. Assim, percebemos a posição da criança que impõe sua vontade prevalecente na sua relação com os adultos. No primeiro episódio, colocam-se as quatro principais personagens da novela, e se definem seus papéis. A mãe solteira/divorciada/viúva que procura, com muito cuidado, contar ao filho que está namorando. O filho que tenta fazer de conta que não está entendendo. A avó moderninha que fala as coisas sem meios termos. E o ainda ausente namorado, o Beto. Percebemos, em um primeiro olhar, que a mãe age como uma filha pedindo autorização ao pai para poder namorar, o que fica visível na forma hesitante com que tenta falar ao filho sobre o namorado. Enquanto isso, o menino age com autoridade, de forma patriarcal com a mãe (que história é essa, mãe?). Já a avó, representante de uma geração que viveu sua juventude em meio aos movimentos de contestação dos anos 60/70, não reproduz, não alimenta a hesitação da filha, dá a notícia de uma vez, sem se intimidar com a posição do menino. Esses movimentos de inversões entre as gerações, entre as figuras familiares, representa as práticas sociais que cercam a família contemporânea. Muito se fala hoje da predominância dos desejos das crianças no interior da família, em uma geração em que, pela primeira vez, não são os filhos quem precisam pedir autorização aos pais, mas o contrário. O comercial traz a materialização discursiva de práticas sociais em transformação, e funciona em conjunto com outros discursos, do cotidiano, que dizem que a criança é hoje quem manda na família. Essas modificações sociais fazem parte do conjunto de práticas que configuram as formações ideológicas, em constante processo de movimentação. A publicidade da Qualy, nesse caso, materializa discursivamente o que ocorre nas formações ideológicas. No momento em que um discurso o discurso publicitário dos comerciais de margarina sobre a família traz alguma transformação em sua formulação, podemos perceber que as práticas sociais já permitem que essas transformações se materializem nos dizeres.

154 Rosa, Daniela Botti da; Manzoni, Ahiranie Sales dos Santos; Oliveira, Lisiane de Alcaria. Discurso, deslizes e derivas: a novela qualy e os múltiplos sentidos da imagem da família contemporânea A configuração contemporânea da família difere muito da família tradicional, matriz da consolidação da sociedade burguesa. Onde antes a imagem da família abarcava a mãe dona de casa, o pai provedor e os filhos obedientes, todos reunidos em torno da mesa do café da manhã, cumprindo um ritual de família feliz, neste comercial a familia representa as novas possibilidades que surgem com o aumento do número de divórcios, com a consolidação da mulher no mercado de trabalho e com a nova situação dos filhos em relação à autoridade dos pais. No comercial da Qualy, o café da manhã não é apresentado como um ritual, mas como um momento casual, tranquilo, em que a mãe tenta, com receio, explicar a sua situação ao filho. O que podemos apreender do que está silenciado nesse discurso é que apesar de a mulher ter conseguido um espaço no mercado de trabalho, assumindo um outro papel (de provedora do lar) que antes era do homem, ainda continua a cumprir suas funções de dona de casa. O lugar da mulher é sempre colocado como aquele que sempre lhe foi atribuído pela sociedade machista esposa e mãe. Ainda que o anúncio procure se adequar às novas exigências da sociedade contemporânea (mulher independente, provedora) existe sempre uma ressalva para mostrar que ainda o seu papel é o de cuidar. O discurso da criança (Rafa) nos mostra que homens e mulheres se mantêm em posições bastantes distintas, o controle por parte deles e a submissão por parte delas. Na atualidade, o sentimento de valorização da infância chegou a tal ponto que temos uma inversão, a infância e a juventude como valores absolutos da sociedade, e o número de produtos destinados a essas faixas etárias cada vez mais especializados e diversificados aumenta a cada dia, alimentando um mercado em constante reinvenção. No segundo episódio, a linguagem das personagens nos permite tratar das diferentes posições sujeito e inversões de papéis desses sujeitos em relação à família tradicional. Enquanto Beto e a avó usam uma linguagem mais coloquial, linguagem que seria apropriada aos mais jovens (em uma estrutura convencional), assumindo, no discurso, uma posição de sujeito mais moderna, Rafa utiliza uma linguagem mais formal, fala com autoridade de um pai de família ( aqui tem regras ) e utiliza do pensamento analítico ( se ele tá aqui e eu tô aqui, isso é um péssimo sinal ). Essa inversão de posições se confirma com a fala da avó (esse menino é muito careta).

Cadernos de Letras da UFF Dossiê: Palavra e imagem n o 44, p. 143-159, 2012 155 Quando se fala que alguém é careta, os sentidos produzidos (sentidos construídos historicamente) se referem a alguém certinho demais, que tem uma visão retrógrada da vida, da sociedade e do comportamento das pessoas. É comum que os representantes de uma geração designem como caretas os representantes da geração precedente. Na propaganda que analisamos, ocorre o contrário: alguém de uma geração anterior chama de careta o membro mais novo da família. Conforme diz Pêcheux, os sujeitos não são livres para dizer qualquer coisa em qualquer lugar. As formações discursivas determinam o que pode/deve ser dito por sujeitos identificados a elas. Os sentidos possíveis são construídos historicamente, e se movimentam no percurso histórico. É o que nos permite dizer que no discurso familiar que se faz representar nos comerciais de margarina opera-se atualmente uma permeabilidade entre os dizeres. Materialização de práticas sociais (a inversão ou mescla de papéis dos membros da família), o discurso permite a inversão (a avó chamar o neto de careta). E como ocorre a materialização das práticas sociais? E como ocorrem as mudanças dessas práticas? Tomemos como exemplo a questão da velhice. Os avanços da medicina, a conscientização sobre a alimentação saudável e sobre a prática regular de exercícios físicos são os grandes responsáveis pelo aumento na expectativa de vida dos brasileiros. Com isso, o mercado de produtos e serviços tem investido muito nos idosos. As agências de turismo fazem, com frequência, pacotes especiais de viagem para a feliz idade e já existem grupos de modelo dessa faixa etária desfilando no São Paulo Fashion Week. Além disso, os idosos ajudam a manter a renda de 10 milhões de lares no Brasil. Assim, por tudo que precede, percebemos que o idoso que apresenta saúde tem alterado seus hábitos de comportamento, renegando a imagem de uma pessoa frágil e decadente, conquistando voz ativa no espaço familiar. Dessa feita, percebemos que essas mudanças atreladas aos discursos sobre a melhor idade, tão disseminados nos últimos anos, têm influenciado a forma como os idosos se veem e são vistos no meio social. E esses discursos têm sido recorrentes nos anúncios publicitários e em programas de TV. Nas décadas de 60, 70 e 80 do século passado era comum se ver a figura dos vovôs com deficiência de audição e de locomoção em programas de humor e em anúncios comerciais, o que contribuía para consolidar os efeitos de sentido que atrelavam o grupo de idosos a uma faixa

156 Rosa, Daniela Botti da; Manzoni, Ahiranie Sales dos Santos; Oliveira, Lisiane de Alcaria. Discurso, deslizes e derivas: a novela qualy e os múltiplos sentidos da imagem da família contemporânea etária decadente. Hoje, percebemos uma nova tendência nas formas de apresentar o velho, como, por exemplo, o modo como o idoso desempenha seu papel na novela Cama de Gato, recentemente exibida pela Rede Globo de Televisão, em que os atores Pedro Paulo Rangel, Suely Franco, Berta Loran e Luiz Gustavo interpretam personagens da terceira idade que vivem em um asilo nada convencional. Suas atitudes, nessa novela, são frequentemente identificadas com as dos jovens. Interessante é observar, nessas encenações, as representações do antigo velho e o do novo velho, visto que os discursos desses personagens dialogam com o discurso da personagem de Lupe Gigliotti que se apresenta ainda no modelo conservador de idoso. Assim, verificamos dois tipos de idoso nessa dramaturgia: um antiquado e o outro, moderno, o que denota uma transição social. Semelhante ao exemplo acima são algumas campanhas publicitárias da cerveja Skol que têm explorado bastante essas mudanças no comportamento dos idosos. Um comercial dessa companhia foi veiculado pela TV, intitulado Asilo Redondo Skol, exibe muitos velhinhos em uma casa de repouso assistindo ao jogo da Seleção Brasileira na Copa do Mundo de Futebol. Quando a Skol é servida, eles saltam e fazem uma festa, cantando, em ritmo de rock, Redondo, redondo, Skol desce muito mais... O comportamento também é, mais uma vez, identificado com o dos jovens. Em 2006, essa conhecida indústria de cerveja patrocinou também as campanhas Roqueiros Skol e Gatinhas Skol. Na primeira, aparecem quatro velhinhos, sentados à mesa de um bar, os quais se levantam e começam a cantar e dançar como roqueiros metaleiros. A segunda, semelhante à primeira, quatro velhinhas fazem o mesmo. É possível perceber, portanto, como as mudanças nas práticas sociais ocorrem e como a palavra reflete e refrata essas mudanças nos discursos da vida cotidiana. No terceiro episódio, percebemos a marca das necessidades criadas nos sujeitos para que eles consumam os produtos à venda. Beto tenta seduzir o menino com vários objetos de interesse comum às crianças (sorvete, bicicleta, cachorro). Mas a publicidade, como dissemos anteriormente, tem a missão de vender um ideal, e não um produto concreto. Rafa rejeita tudo aquilo que engataria o desejo de um menino, mas não resiste a um pote de Qualy. A falácia, o engodo é de que um garoto iria preferir um pote de margarina a uma bicicleta. O comercial constrói o sentido de que tudo está bem e se resolve bem se a Qualy está presente. A relação entre imagens, gestos e palavras

Cadernos de Letras da UFF Dossiê: Palavra e imagem n o 44, p. 143-159, 2012 157 leva o público consumidor a uma busca de satisfação e felicidade através do consumo do produto; no entanto, como apresentamos nessas análises, a busca dessa felicidade e satisfação é contínua, pois o sujeito consumidor é sempre um sujeito desejante e é aí que o discurso publicitário consegue manter seu funcionamento: com os efeitos de credibilidade e legitimidade o produto, a marca de hoje te dão satisfação e felicidade; os produtos de amanhã te darão mais satisfação e mais felicidade e assim por diante. Apenas para traçar uma relação desse terceiro episódio com a prática de produzir necessidades, trazemos um cartoon da Mafalda, personagem de Quino: A mídia constrói necessidades artificiais, que os sujeitos acabam investindo como necessidades reais como afirma Charaudeau (2009, p. 29), as mídias manipulam e, dessa forma, os jogos de aparências se apresentam como informação objetiva, denúncia do mal e da mentira, explicação dos fatos e descoberta da verdade. Assim, a imagem da Qualy passa a ser associada a um ideal de família e de realização pessoal, de felicidade. No entanto, se a mídia constrói

158 Rosa, Daniela Botti da; Manzoni, Ahiranie Sales dos Santos; Oliveira, Lisiane de Alcaria. Discurso, deslizes e derivas: a novela qualy e os múltiplos sentidos da imagem da família contemporânea castelos de sonhos, não o faz sobre as nuvens, isto é, se ela constrói desejos e imagens, faz sobre a base das práticas sociais cotidianas. É por isso que podemos dizer que as novas articulações socias da família sustentam o discurso da margarina Qualy. Os desejos são construídos sobre o terreno firme da vivência cotidiana da sociedade. Lembrando que o discurso é materialização da ideologia (via formações discursivas e ideológicas), dizemos que ele não diz mentiras, não cria uma realidade falsa, mas oculta, não diz toda a verdade, maquia, mascara. 4. Considerações finais Como vimos, o discurso materializado na novela Qualy investe em um sentido que, à primeira vista, associa a imagem da família contemporânea feliz ao consumo da margarina. Isso nos permitiu apreender os deslizes e derivas dos dizeres acerca da representação da família no século XXI que rompe com os padrões estabelecidos pela sociedade, ou seja, adequa a Instituição (família) de acordo com o contexto social da atualidade. Percebemos que o acontecimento discursivo emerge exatamente dos sentidos dos dizeres dos sujeitos que rompem com a estrutura da língua, visto que emanam não apenas desta última e o contexto imediato da enunciação, mas também da relação das mudanças sociais com a língua. E, para finalizar, citamos Ana Zandwais 15 (2009, p. 36) que, ao comentar sobre o conceito de desidentificação do sujeito apontado por Pêcheux, assim afirma, Trata-se, portanto aqui, de uma modalidade de subjetivação que rompe com os saberes próprios das FDs, estilhaçam pré- -construídos, substituindo-os por outros, reverte saberes e práticas, reconfigurando, assim, tanto a formação ideológica como a formação discursiva que apresentam o indivíduo como sujeito em uma dada conjuntura histórico-social, para que se instaurem novas práticas sociais, capazes de identificar a formação ideológica, novas ideologias e discursos, em que os sentidos apontam para efeitos interditados ou castrados pela instituição, 15 ZANDWAIS, Ana. Perspectivas da análise do discurso fundada por Michel Pêcheux na França: uma retomada de percurso. Santa Maria: UFSM, Programa de Pós-graduação em Letras, 2009.

Cadernos de Letras da UFF Dossiê: Palavra e imagem n o 44, p. 143-159, 2012 159 pela lei, pelo Estado, em virtude das desigualdades sociais, ou ainda sentidos impensados em função da cristalização de saberes, da dominância das condições de reprodução sobre as condições de transformação. Em discursos materializados em anúncios de margarina mais antigos, era, para o público consumidor, impensado, figurar uma mulher sem marido, um filho que impõe sua vontade, uma avó que chama o neto de careta. Percebemos, portanto, no discurso da margarina Qualy, a desidentificação de um sujeito que outrora fora identificado com um determinado tipo de prática social. Vemos, portanto, nesse novo modo de fazer publicidade da novela Qualy, o irromper, na palavra, de novas práticas sociais [...], novas ideologias e discursos. É o signo na/da história, fazendo nova história. DISCOURSE, SLIPS AND DRIFT: NOVEL QUALY AND THE MULTIPLE SENSES OF THE IMAGE OF THE CONTEMPORARY FAMILY Abstract The present study aims o make an interface between discourse analysis and advertising. To this, we chose as the subject of our article a margarine commercial Qualy. We will present the theoretical and methodological devices of French AD to understand the construction of meanings that emanate from the margarine advertising discourse - as the family image is (de)constructed - and what it is silenced. Keywords: Advertising Discourse; event; senses. Recebido em: 30/09/11 Aprovado em: 05/05/12