A gloriosa identidade: a afirmação da literatura africana num romance de Pepetela



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Transcrição:

A gloriosa identidade: a afirmação da literatura africana num romance de Pepetela Audemaro Taranto Goulart A literatura africana sofre os efeitos do estigma de ser uma literatura de país colonizado. Essa circunstância, de certa forma, levou os autores africanos a uma espécie de posição defensiva em que se projeta, de modo nítido, uma ânsia de reconhecimento e de busca de identidade. Esse é o motivo de se encontrar nas páginas das narrativas e da poética desses autores uma reiterada manifestação de nacionalismo, expressa, direta ou metaforicamente, na focalização das guerras e dos conflitos que marcaram o processo de independência dos países africanos. Talvez seja essa peculiaridade que tenha levado muitos leitores a ver a literatura africana com um certo ar de desconfiança, como se a sua dinâmica criativa estivesse irremediavelmente comprometida com a factualidade histórica das lutas pela libertação. Entretanto, é preciso dizer que a literatura africana projeta um espírito bastante nítido, marcado num desenho político decorrente das condições de sua enunciação. Hoje, pode-se dizer que ela não é uma literatura em busca de uma identidade, mesmo porque essa identidade é muito clara para os escritores africanos e para os leitores estrangeiros que a reconhecem facilmente num universo simbólico bastante característico, assim como num encantado mundo de mitos, de crenças e de prodígios que compõem o seu estrato cultural. O que a literatura africana quer é, na verdade, afirmar essa identidade, fazê-la reconhecida internacionalmente, espécie de contrapartida natural do projeto de nação que se fez em meio a lutas e a sofrimentos. E nesse aspecto, destaca-se a figura de um autor cuja marca é, exatamente, a capacidade de invenção. Trata-se do angolano Pepetela, pseudônimo com que é conhecido Arthur Maurício Pestana dos Santos. Dentre suas obras, destaco uma que é exemplar na ilustração do que seja uma narrativa marcada pela criatividade. E veja-se que essa criatividade se dá num texto que explora um momento histórico preciso, revelador do sempre focalizado drama de um povo colonizado. Trata-se de A gloriosa família, romance em que Pepetela propõe a releitura de uma parte da história de Angola, fazendo-o de uma perspectiva em que factum e fictum se recobrem, confundindo-se de tal modo que é impossível determinar-se o que é realidade e o que é ficção. E dentre as notáveis invenções da narrativa, quero destacar aquela que me parece a mais significativa que é a instância do narrador. Tal aspecto cresce de importância na medida em que ele configura a temática deste grupo de trabalho. A gloriosa família é uma narrativa longa 406 páginas, através das quais Pepetela relê um episódio da história angolana, mais precisamente os sete anos (de 1642 a 1648) em que os holandeses, estabelecidos com a Companhia das Índias Ocidentais, realizaram um enorme tráfico de escravos, de Luanda para o Brasil, principalmente. Exatamente por isso, o romance traz, como subtítulo, O tempo dos flamengos, numa alusão ao período em que os mafulos nome com que os holandeses eram conhecidos em Angola dominaram boa parte da região. Como se disse, Pepetela estabelece um diálogo entre a literatura e a história e é nesse aspecto que sua obra adquire uma dimensão extraordinária. Primeiro porque, naquela conjunção entre ideário político e invenção ficcional, a que me referi, percebe-se que em A gloriosa família é a parte literária que vetoriza a relação, uma vez que em nenhum

2 momento a narrativa deixa-se arrastar pelo contorno político que subsiste nela, ainda que esse contorno ocupe um lugar de destaque no registro do mundo simbólico que se explicita. Ainda vou falar mais detidamente da figura do narrador dessa obra, mas aproveito para dizer que ele exemplifica bem a concepção de Bakhtin sobre o romance. Para o autor russo, o romance tem sua gênese na praça pública, estando sua origem ligada às figuras do bufão e do bobo, tipos consagrados na veia popular como reveladores do que é do conhecimento de poucos, do que está escondido ou camuflado em relação ao domínio público. Desse modo, Bakhtin adverte que as figuras do bufão e do bobo são máscaras que têm raízes populares muito profundas, são ligadas ao povo por privilégios consagrados de não participação do bufão na vida, e da intangibilidade de seu discurso, estão ligados ao cronotopo (espaço-tempo) da praça pública e aos palcos de teatros (BAKHTIN, 2002, p. 277). Essa seria, pois, a função do romancista, estrategicamente camuflado na máscara do bufão: trazer a público o que não é do conhecimento geral, o que está sonegado como informação ou como saber. E Pepetela faz isso admiravelmente em A gloriosa família, mostrando o que há por detrás de entidades conhecidas apenas superficialmente, como a famosa Companhia das Índias Ocidentais, que se ocupou, principalmente, de fazer o lucro de investidores, através da captura de escravos e do odiento tráfico negreiro. 1 É nessa parte da história de Angola, marcada pela presença da Companhia das Índuas Ocidentais, que se estabelece o confronto entre portugueses e holandeses, ambos interessados no domínio e exploração do território africano. É preciso ressaltar que a articulação entre factum e fictum se dá de uma maneira tão singular que história e invenção passam por um processo íntimo de interação. Afinal, para realizar as pesquisas que geraram a narrativa, Pepetela contou com o patrocínio do Instituto Camões e do Instituto Português da Cooperação, o que revela como o seu trabalho ultrapassa em muito a simples eleição de um recorte histórico que funcionaria como pano de fundo do texto ficcional. Uma das obras sobre que Pepetela se debruçou foi a História geral das guerras angolanas, de 1680, do cronista António de Oliveira Cadornega, extraindo dali episódios e referências a personagens que vão transitar na narrativa. Inclusive, o prólogo do romance é uma página da obra de Cadornega que é glosada, logo a seguir, no capítulo de abertura de A gloriosa família. E o que confirma a intimidade da interação história/literatura é o fato de Cadornega ser transformado em personagem do romance na história ele é um soldado que luta nas tropas portuguesas caracterizando-se, inclusive, como o futuro cronista de fatos ocorridos em Angola. Sua disposição de historiador é focalizada de modo irônico, uma vez que se insinuam para o leitor a parcialidade e as trapaças que o texto com intenção historiográfica pode conter. Sirva de exemplo a passagem seguinte, em que Cadornega fornece a outras personagens detalhes de seu trabalho como cronista: - Chega a ser uma questão moral. Se escrevo sobre as grandezas de Portugal, como posso contar as coisas mesquinhas? Não, essas ficam no tinteiro, pois não interessam 1 Chamo a atenção para tal aspecto. Sabemos, através da história, muito pouco do caráter privado da Companhia das Índias Ocidentais. Os seus escaninhos, abertos pela narrativa, revelam um emaranhado de absurdos que vão de negócios escusos até a exploração do negro e à eliminação de quem se opusesse aos seus objetivos. O livro de Pepetela é uma lição de história sobre essa organização, descobrindo traços estarrecedores nela.

3 para a história. Será necessário saber interpretar a crônica. Personagem que não aparece revestida de grandes encômios é porque não prestava mesmo para nada e só o pudor do escritor salvaguarda a sua memória. Assim tem feito, assim deve ser. (p. 269) Notem-se os subtextos que se desentranham do discurso, dentre os quais podem ser citados o amoralismo com que o cronista confessa sua índole bajuladora (cita apenas os poderosos e vitoriosos) e a sua advertência (que, no fundo, é uma justificativa mesquinha) quanto à necessidade de o leitor saber interpretar o escrito. Ora, o que se tem aí é uma espécie de palimpsesto, em que o texto (ficcionalizado) de Cadornega é raspado para deixar aparecer um texto que não se oferece explicitamente à leitura. E esse texto, articulando-se com o prólogo, vem mostrar a necessidade de o leitor saber ler o que lhe é oferecido: uma narrativa primeira, que se cola numa narrativa segunda (que é histórica) mas que, ao mesmo tempo, adverte contra a ingenuidade de se crer irrestritamente no que é tido como factual. Desse modo, a advertência que Cadornega faz ao seu leitor, na verdade, aponta o gesto singular do leitor do romance de Pepetela, no sentido de que esse leitor deve levantar o papel da segunda escrita para que possa ler o que é, de fato, importante: o discurso ficcional que chama o leitor para o seu interior. A gloriosa família que aparece na narrativa é constituída por Baltazar Van Dum e seus onze filhos (três dos quais são resultado de sua união com escravas). Van Dum é uma figura saliente da narrativa, encarnando o tipo ladino dos que conseguem agradar a Deus e ao diabo. É um flamengo do sul, ligado à religião católica, tendo sido súdito do rei de Espanha. Tais características foram aproveitadas por Baltazar para equilibrar-se entre portugueses e holandeses, à época do domínio que cada um deles exerceu em Angola. Ser flamengo e católico que esteve a serviço do reino da Espanha significa uma dupla identidade, a holandesa, por nascimento, e a portuguesa, por afinidade religiosa, e isso propiciou ao esperto Van Dum uma rendosa situação em Luanda, que lhe permitiu enriquecer-se com o tráfico e a venda de escravos. Dentre os filhos de Van Dum, destaca-se a bela Matilde, mulher que levava os homens à loucura, fossem eles padres, oficiais holandeses ou gente simples. Matilde é uma espécie de feiticeira que chegou, inclusive, a prever que o domínio holandês, em Luanda, não passaria dos sete anos compreendidos entre 1642 e 1648. Mas essa personagem é mais do que um ponto de articulação entre a história que atesta os sete anos do domínio holandês em Luanda e a ficção. Na verdade, ela está a serviço de uma fundamentação da própria essência do romance que é poder fazer-se um instrumento que aspira a produzir modificações no futuro real daqueles que se envolvem com ele e que são o autor e os leitores. Pelo menos essa é a posição de Bakhtin, ao estabelecer a distinção entre a epopéia e o romance. Para o autor russo, o romance é um gênero do presente, em contraste com a epopéia que se ocupa do passado. É por isso que a epopéia trata da profecia, vista como o acontecimento que confirma o que se deu num tempo anterior, enquanto o romance, por vislumbrar o futuro como uma época a ser alcançada e modificada, realça a predição, ou seja, o que será o futuro, a partir da perspectiva do presente. Isso significa dizer que o presente na narrativa épica é um tempo que se volta para o passado, tomado este como um instante que se basta a si mesmo. Já na tópica presencista do romance, o passado sempre se caracteriza como um futuro do pretérito, de vez que a real dimensão do tempo da narrativa é vetorizar o futuro. É nesse aspecto que se pode perceber

como Pepetela trabalhou a figura da feiticeira Matilde, tornando-a uma espécie de agente que dava a ver um passado histórico vislumbrado como devir o que, em última instância, é a própria representação do passado de uma Angola dominada, em relação a uma nação do futuro. A utilização de estratégias como a que acabo de mencionar corresponde a um trabalho de construção da narrativa que tem como objetivo alcançar do modo mais transparente possível as mensagens e os subtextos que transitam por debaixo do enredo e da movimentação das personagens. Como se sabe, isso não é uma tarefa fácil. Lembre-se, a propósito, o destaque que Adorno deu à crise em que mergulhou o romance, no século XX, crise decorrente das dificuldades que o romance enfrentou para narrar e representar a realidade. Tem-se aí um paradoxo, de vez que o narrar é da essência mesmo do romance o que significa que problematizar tal aspecto implica pôr o próprio romance em questão, descrendo-se da sua efetiva possibilidade de representar o real. É por isso que Adorno afirma que a tarefa do narrador, hoje, é das mais difíceis. E isso se deve às condições mesmas em que se encontra o mundo no século XX, um mundo premido pelo desenvolvimento tecnológico e que acaba por maquinizar o ser, solapando as subjetividades e produzindo uma alienação que dificulta o entendimento do próprio mundo. Essa condição é que torna a narrativa problemática, na medida em que o real a ser representando é hermético e insondável. Como diz Adorno, narrar algo significa, na verdade, ter algo especial a dizer, e justamente isso é impedido pelo mundo administrado pela estagnação e pela mesmidade (ADORNO, 1980, p. 270) Observe-se quão diferente esse narrador é daquele narrador tradicional apontado por Walter Benjamin. A começar pelo fato de que o narrador da epopéia é o que se deixa rodear de ouvintes, fazendo de sua voz o movimento perfeito para o entendimento do que se conta. Tal narrador está sempre a dizer o que sabe, ou por experiência própria ou por ouvir a palavra de um outro, daí a sua confortável posição de saber e, por isso mesmo, poder dar conselhos. Ora, isso é impossível no mundo do século XX, devido à dissonância que existe entre o romance reflexo da interioridade do sujeito que o escreve e o mundo em que esse romance e esse sujeito estão. Como se sabe, o homem é um ser vocacionado à continuidade, inteiramente avesso aos hiatos ou interrupções que lhe são impostos pelo mundo. Essa ânsia de continuidade, tem uma significativa representação no romance, de vez que nele o narrador como que procura contar uma história em que busca preencher os espaços que problematizam o estar do homem no mundo. Nesse sentido, pode-se dizer que a estratégia do romancista é organizar as dissonâncias, dando-lhes um curso que se faça consentâneo com a sua interioridade. Essa atitude é totalmente abstrata, ela diz respeito a uma subjetividade cujos valores sempre estarão em confronto com o mundo concreto, num confronto em que se destaca a vontade de substituir uma ordem disjuntiva por uma ordem estética. É aí que se coloca, segundo Lukács, a chamada forma romanesca, ou seja, o reconhecimento que o romancista tem do contraste entre a sua interioridade e o mundo em que está situado, cabendo-lhe, pois, construir um discurso que alcance a objetividade, deixando de lado a pura abstração que fatalmente ocorreria devido aos impulsos da sua subjetividade (LUKÁCS, 2000, p. 182) É por isso que a invenção é o principal eixo articulador dessa tarefa do romancista, o que, aliás, é propiciado pelo próprio romance, gênero que se presentifica permanentemente. Como diz Bakhtin, o romance não é simplesmente mais um gênero ao 4

5 lado de outros gêneros. Trata-se do único gênero que ainda está evoluindo no meio de gêneros já há muito formados e parcialmente mortos (BAKHTIN, 2002, p. 398). E é esse ponto, o da invenção, que insisto em destacar n A gloriosa família. Já falei da criatividade ocorrente no processo de ficcionalização com que Pepetela relê a história. Quero agora me deter um pouco sobre a sua grande invenção, que é a figura do narrador. O narrador de A gloriosa família é algo que transita do insólito ao admirável. Insólito porque é uma inesperada surpresa e admirável porque é fruto de uma originalíssima invenção. Essa dimensão do narrador acaba fazendo com que ele, embora tendo a função específica de contar a história, ultrapasse essa função e se converta num ponto de interesse do texto, na medida em que o leitor vai, aos poucos, não sem surpresas, descobrindo suas singularidades, chegando ao ponto de só desenhar um retrato completo de sua figura ao final da narrativa. Na verdade, ele é um narrador de primeira pessoa mas, curiosamente, é alguém que está dentro da história, observando os fatos, sem ter uma participação efetiva neles. Enfim, o narrador é um escravo de Baltazar Van Dum que acompanha o dono aonde quer que ele vá. Sua presença, no nível da história narrada, é apenas a de correr atrás do dono e, no máximo, servir de anteparo, às costas de Baltazar, nos ambientes de grande concentração de pessoas. Em dois ou três momentos apenas, o escravo-narrador age por conta própria, como se fora uma personagem atuante. Afinal, trabalho não lhe falta, pois narrar é preciso, atuar não é preciso, motivo por que ele se esquiva, de um modo meio mágico, de tudo, para pôr-se como uma instância enunciativa, espalhando recortes de vozes que se colam, reunidas numa forma que propicia as presenças virtuais do autor empírico, do autor-modelo e do sujeito da enunciação, associados à presença do sujeito do enunciado, para compor o grande conjunto que dá voz e vida à narrativa. É, pois, esse conjunto de elementos que permite a audição/leitura de uma história contada a partir de escrupulosas, detalhadas e judiciosas observações. A surpresa maior acerca do narrador se dá, como disse, no final da narrativa, a pouco mais de dez páginas do fecho da obra, numa conversa de Baltazar Van Dum com seu amigo Domingos Fernandes, quando este pergunta se Van Dum não tem receio de dizer tudo sem rodeios na presença daquele escravo. A resposta é surpreendente: - Não tem perigo. É mudo de nascença. E analfabeto. Até duvido que perceba uma só palavra que não seja de kimbundu. Sei lá mesmo se percebe kimbundo... Umas frases se tanto! Como pode revelar segredos? Este é que é mesmo um túmulo, o mais fiel dos confidentes. Confesse-lhe todos os seus pecados, ninguém saberá, nem Deus. (p.393) Aí está delineado o que parece ser o grande paradoxo desse narrador. Pode alguém, em sendo mudo, contar uma história? A resposta para isso está no fato de que Pepetela aproveita o aparente absurdo para pôr em circulação o universo de prodígios, mitos, milagres e surpresas que cercam o mundo africano, o que, aliás, é um dos sustentáculos de sua narrativa. Mas deixo tudo isso de lado para me deter na caracterização da figura do narrador enquanto instância enunciativa do romance. Nesse sentido, é preciso dizer que o grau de invenção de Pepetela atua em função de compor o que se poderia chamar de narrador caleidoscópico. Isso porque o narrador cumpre sua função, passando pelas diversas configurações, tais como as que foram colocadas por Adorno, Benjamim e Bakhtin, conforme se poderá ver.

6 Em primeiro lugar, pode-se perceber que, devido a sua condição mesma ser mudo e analfabeto, o narrador representa a própria impossibilidade da narração, tal como pontua Adorno. Desse modo, o que ele diz pode, perfeitamente, não corresponder a tudo que ele pretendia dizer uma vez que não apenas a sua condição de mudez mas, sobretudo, a sua condição de escravo lhe impedem uma essência de individuação necessária para o narrar sem o auxílio de uma mediação qualquer. Está claro, pois, que existe um descompasso entre o narrador, na sua condição, e o mundo que o cerca. Mas se o leitor tem essa sensação pelo fato de estar diante da situação insólita que é um escravo mudo produzir a narrativa vai, por outro lado, perceber que ele representa também o narrador benjaminiano. Afinal, ele é um observador da história, que assiste aos fatos, que convive com as personagens, que experiencia sensações que vão desde ouvir segredos de ordem pessoal e política a suspiros e gritinhos sensuais que se desprendem das relações amorosas. Por isso, a palavra desse narrador está imantada de uma sabedoria que decorre do saber de experiência feito, estando apto, inclusive, a poder dar conselhos. Talvez, por isso mesmo, é que o escravo nunca se preocupe em dar explicações, fiado no pressuposto do narrador clássico de que a melhor explicação está no próprio relato. Um outro detalhe que tem destaque na caracterização do narrador é o fato de ele representar bem aquele bufão de que se vale Bakhtin para caracterizar o romancista. Só que, aqui, é o romancista que se metamorfoseia na figura do narrador para expedir as críticas contra o autoritarismo colonialista e contra a desumana dominação a que grandes contingentes de negros de África foram submetidos. Criando um narrador analfabeto e mudo, pessoa presente mas não participante das ações e das decisões das personagens, Pepetela evoca a fundamentação bakhtiniana para o romancista, que é a de ser um participante da vida sem dela tomar parte, ser o seu eterno observador e refletor, e as formas específicas encontradas são as de revelação ao público. (BAKHTIN, 2002. p. 277). Ou, como diz Rogério Pereira: Participar da vida sem participar, ser um eterno observador, trazer a público, denunciar aquilo que está escondido no privado, etc eis a função do romancista. Eis a máscara que assume: a do bufão (dentre outras), isto é, aquele que pode dizer por estar lá, mas não participar daquilo. O bufão é aquele que participa da vida como observador e a sua forma de discurso é a de denunciar aquilo que está escondido, privado, oculto. (PEREIRA. 2004. p. 37) Essas palavras assentam-se como luva ao narrador de A gloriosa família. Mas ainda se pode dizer que, girando incessantemente sobre si mesmo e assumindo as mais diferentes formas, esse narrador caleidoscópico é a dissonância que enfrenta a dissonância. Enquanto ser insólito, na sua condição mesma de ser o sujeito da enunciação, ele é a irônica manifestação de um agente que não age, de um enganoso pobre coitado que contrabalança o descompasso entre sua interioridade e o mundo, rindo das diferenças, ironizando seus superiores, através de um recurso muito simples: contar a vida deles. Essa, aliás, é a forma romanesca de que fala Lukács, ou seja, é a construção de um discurso que alcança a objetividade, apesar do contraste irreversível entre a abstração da subjetividade do romancista e a objetividade do mundo exterior que o acossa. E o que é isso? Nada mais que a estratégia de substituição de uma ordem externa, extremamente angustiante, por uma ordem estética que redime as frustrações, que suaviza os sofrimentos, que salva o sujeito.

7 Referências bibliográficas ADORNO, Theodor W. e HORKHEIMER, Max. Posição do narrador no romance contemporâneo. Trad. Modesto Carone. In. Benjamín, W. et al. Textos escolhidos. São Paulo: Abril, 1980. p. 269-273 (Coleção Os pensadores ) BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Trad. Aurora Fornoni Bernardini et. al. São Paulo: Hucitec/Editora da Unesp, 2002. BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica. Arte e Política, ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1993 (Obras escolhidas v. 1) CADORNEGA, Antóio de Oliveira. História geral das guerras angolanas (1680), tomo 1, Lisboa:Agência-Geral do Ultramar, 1972. LUKÁCS, G. A teoria do romance. Trad. José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2000. PEPETELA. A gloriosa família o tempo dos flamengos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. PEREIRA, Rogério Silva. O intelectual no romance de Graciliano Ramos. Tese de doutorado, PUC Minas, 2004.