O curador como estrela ARACY AMARAL Em torno a este tema, "Surveying Contemporary Art", gostaria de enfatizar dois pontos: as características das grandes exposições ou eventos e os artistas que trabalham fora dos grandes centros. Quanto ao primeiro item, assim como vivemos hoje uma época de cinema de diretores e não cinema de histórias ou atores nas artes visuais também vivemos, ao que parece, um tempo de exposições de curadores, e não mais de artistas. Os grandes personagens do meio artístico internacional parecem ser, de fato, os curadores. Parece importar, portanto, menos a obra de arte em si, e o artista que se coloca como seu autor, mas a manipulação dos movimentos artísticos pelos curadores que produzem esses eventos milionários que provocam filas diante de museus, centros culturais e Bienais ou Documentas. Em consequência, neste fenômeno vinculado a uma sociedade altamente consumista, não é o produto que importa, mas a maneira como ele é apresentado. Talvez mesmo o excesso de produtos, ou, no caso, de tendências, caracterize com uma fadiga peculiar as imagens de nosso tempo. E, assim sendo, o que é importante é a forma de apresentação de novos trabalhos ou de trabalhos que exalam o ritmo veloz de nossos dias, embora o déjà vu esteja presente nessa mesma produção. Por essa mesma razão, o revival na arte, lembrado por Giulio Carlo Argan como um sinal da arte de todos os tempos, está mais que nunca presente na contemporaneidade. Mas o que significa a manipulação de obras de arte ou de produtos de artistas por um curador? Significa que, nas grandes exposições, este profissional se porta como um régisseur do espetáculo, constituído pelas Mesa-redonda realizada no MoMA, Nova York, em 1988.
grandes retrospectivas e exposições internacionais como Kassel, Veneza ou São Paulo. O projeto do evento reflete, desta forma, "seu" ponto de vista pessoal, a maneira como esse curador pinça um fragmento ou um enfoque da produção artística a fim de corporificá-la, através de um grande show, hoje autogerador de renda, lucrativo mesmo. E que se insere, como um entretenimento, entre as múltiplas fontes para a distração do cidadão urbano de nossa aldeia global. Esse "ponto de vista" do curador não significa, de forma alguma, que seja essa a forma mais acertada de ver determinada tendência ou determinado artista, porém, simplesmente, reflete um enfoque individual, passível de posterior revisão ou confronto. Se isso pode ser visto em Paris, no Museu D'Orsay, quando se percebe reescrita a história da arte do século XIX através da atuação conjunta de uma curadoria e um arquiteto (uma história de continuidade, sem rupturas, ao contrário do que até aqui se irradiara como informação), pode ser visto em retrospectivas (como as realizadas de Le Corbusier, no decorrer de 1987, em vários locais da Europa e no Brasil, por exemplo), ou pode ser apreciado em grandes eventos como a Documenta de Kassel ou a Bienal de São Paulo. A primeira, estritamente primeiromundista, focaliza aspectos da responsabilidade social do artista, decalcada no respeito pelo pensamento de Josef Beuys, absolutamente indiferente à produção do artista fora dos centros hegemônicos (Europa, Estados Unidos, Japão). O artista, assim, parece ter se deslocado para um segundo plano, sendo a vedete o curador. Curador: personagem aparentemente todo-poderoso, a deslocar-se com facilidade similar aos grandes executivos de multinacionais, de Nova York para Los Angeles, de Paris para Veneza, de Milão para Madri ou Barcelona. Talvez seja apenas um sinal dos tempos, mas esta constatação, do curador como manipulador da obra de arte (ou da produção do artista), é típica de nossos dias, diante do "quase" desaparecimento do artista como abridor de novos caminhos. Quem sabe neste fim de século não haja mais caminhos a serem abertos; quem sabe esta seja mais uma faceta da crise de criação de nosso tempo?
Não existe arte latino-americana, nem artistas latino-americanos. Existem artistas nascidos no Peru, Argentina, Brasil, Panamá, Porto Rico, Cuba, México, Guatemala, Costa Rica, Nicarágua, Equador, Colômbia, Venezuela, Bolívia, Chile, Paraguai, Uruguai, El Salvador, República Dominicana. Esses países têm em comum uma história de colonização ibérica, uma tradição religiosa e uma dependência econômica, desde o século XIX, primeiro da Inglaterra, depois dos Estados Unidos, com a exceção de Cuba, hoje em dia economicamente dependente da União Soviética. Na verdade, os artistas de todos esses países, quando vivem fora da América Latina, como na Europa e nos Estados Unidos, se unem ou estabelecem vínculos fraternos de amizade por uma similaridade de comportamento cultural. Mas suas realidades são diversas, como o podem constatar os que já viajaram à América do Sul. Embora, é claro, haja afinidades maiores entre os países da América Central, entre aqueles da área do Caribe, da região dos Andes, do Cone Sul (Chile, Argentina e Uruguai) e mesmo entre estes e os brasileiros do sul, até São Paulo. O mesmo fenômeno se dá dentro do Brasil, país que é um mosaico de culturas, entre o sul europeizado, o norte amazônico, o nordeste regionalista, em contraposição à densa presença africana na Bahia, e com duas cidades onde se dá a confluência de todo o Brasil: Rio de Janeiro e Brasília, ambas capitais federais do Brasil, uma do século XVIII até 1960 e outra há 28 anos. Esta introdução objetiva mencionar que as tendências dos artistas da América do Sul são muito diversas. Como os norte-americanos até fins dos anos 1940, nossa inspiração foram os movimentos oriundos da Escola de Paris. Um dado, entretanto, diferencia os artistas destes países daqueles dos Estados Unidos, apesar de pertencermos todos ao continente americano. É que a prosperidade econômica norte-americana, afirmada com sua hegemonia política após a II Grande Guerra, infundiu um estímulo que, sem dúvida, foi fundamental para alcançar uma identidade como meio artístico criativo (tanto no cinema como nas artes visuais propriamente ditas: escultura, pintura, cenografia, arquitetura, por exemplo). Como nos lembra Baudrillard, na dificuldade de hoje assinalar "obras de arte" quando não há mais possibilidades de parâmetros para reconhecer
o talento nem tampouco julgamentos de valor, tal a abertura para todas as experimentações, observa-se simultaneamente, um movimento convulsivo e uma inércia na arte contemporânea, assistindo-se à ruptura com a estética quando ocorre a estetização geral das coisas. Assim, vivemos num tempo em que há, como diz ele, uma proliferação de eventos, mas somos iconoclastas não porque destruamos imagens, mas por fabricarmos uma profusão de imagens em que não há nada a ver. Ausência de formas, ausência de estética, sem necessidade que nos coloquemos a pergunta se há ou não o Belo como em outras épocas, embora se continue a assistir a um conjunto de ritos habituais, e neste processo estamos condenados a uma espécie de indiferença... Num tipo de crise, ou de situação que, na verdade, abrange o comportamento, a política, o sexo, a publicidade, além da arte. É neste contexto de crise contemporânea que localizamos as manifestações da arte de nosso tempo e os eventos relativos à criatividade nas artes visuais. Artes tão violentamente sujeitas aos modismos, e nas quais é tão difícil encontrar singularidades, que quando o localizamos, este artista é imediatamente alçado a alturas inauditas e imediatamente faz seguidores, seja por meio de seu êxito no mercado como pela crítica que, vinculada a publicações, divulga-o para os grandes centros internacionais de arte, numa espécie de campanha de banalização de uma individualidade. Se o ritmo mudou na produção do objeto artístico, atingindo hoje a velocidade da vida de nosso tempo, parece, por essa mesma razão, haver cada vez menos espaço para o recolhimento, e a personalidade isolada, aquele que interioriza sua problemática plástica fazendo-a em seguida emergir através de sua obra, torna-se cada dia mais raro. Daí porque nos parece muito difícil por acreditar pouco na apregoada comunicação universal da obra de arte a "leitura" da produção artística de outro meio, quando não possuímos afinidades com ele e temos, portanto, repertórios distintos. Sem repertório comum, fica difícil a decodificação. Em consequência, os meios artísticos da América do Sul, por exemplo, observam com muita reserva as exposições realizadas sobre "arte latino-
americana", já levadas a efeito ou em preparo, exatamente porque essa produção não constitui um conjunto. E, sim, um mosaico de realidades que nem sempre é pertinente se apresentado como um todo. No entanto, neste momento, por exemplo, assistimos ao preparo ou à realização de várias exposições focalizando a "arte latino-americana". O que não deixa de ser válido, se imaginarmos o mesmo aplicado à "arte do sudeste asiático", "arte norte-americana", neste caso incluindo Estados Unidos, México e Canadá, "arte europeia", "arte africana contemporânea", abrangendo numa só exposição comportamentos culturais os mais diversificados e por vezes antagônicos, apesar de uma proximidade geográfica relativa. Finalizando, é sempre interessante poder afirmar, perante um público sofisticado como o de Nova York, que os meios artísticos do Terceiro Mundo têm hoje lucidez suficiente para se dar conta de que a emergência de um artista de talento de nível internacional, ou o interesse pela produção artística de um país em nível internacional, somente se dá na medida em que esse país goza de importância econômica internacional. Se o país é economicamente poderoso como atualmente Japão e Alemanha, ou Itália, consequentemente seus artistas serão requestados para eventos internacionais de importância. Ao passo que pode haver um artista de grande valor no Marrocos, por exemplo, vivendo em Paris, e ninguém tomar facilmente conhecimento de seu talento, ou só muito lentamente. Daí porque consideramos de grande importância, no caso da América Latina, o reconhecimento de artistas incontestáveis como Wifredo Lam, Frida Kahlo, Roberto Matta, Torres García, Soto, a despeito da dificuldade de seu acesso inicial ao mercado de arte. Tarsila, do Brasil, também é caso similar, e que somente agora parece estar emergindo como interesse, por uma série de eventos que projetam o melhor de sua obra. Entretanto, entre os artistas contemporâneos, que se constituem dentro da mentalidade de nosso tempo, participantes da "aldeia global", há em todos os nossos países aqueles de talento igual ou maior aos de centros mais desenvolvidos (como Nova York, Milão, Munique, Berlim ou Paris). Porém, exatamente por serem de tendências similares às desses centros, ou porque seus países não são economicamente poderosos,
não são solicitados, ou sequer observados pelos curadores de eventos de importância. Neste ponto, a pergunta pertinente deveria ser: mas afinal, quem copia quem? Ou: os críticos e historiadores sabem mesmo, com conhecimento de causa, quem foi "o primeiro" do ponto de vista inventivo, formal, ou expressivo? Ou se limitam ao conhecimento do que se passa em duas ou três cidades, imaginando que o restante da produção artística é cópia? Até que ponto um artista contemporâneo pode ser original nos dias que correm? Por que não realizar uma reflexão sobre o provincianismo dos grandes centros? Ou, como nos lembra Pierre Gaudibert, por que não assumir que o regionalismo é uma tradição na história da arte de todos os tempos? Assim, depois de ver no ano passado a Documenta de Kassel, pude constatar que a Bienal de São Paulo apresenta uma abertura, um horizonte que nem a Bienal de Veneza ou a Documenta podem apresentar, por sua localização europeia. A Bienal de São Paulo adquire assim uma riqueza peculiar que pode ou não interessar ao crítico e ao artista mais sofisticados do Brasil e do exterior mas oferece um panorama da arte de hoje em dia (com toda a carga de cansaço inerente a essas manifestações). E isso só é possível por ser a Bienal em São Paulo, no Brasil, país da América Latina, Terceiro Mundo, importadores de informações desde o nosso surgimento, importadores de bibliografias e filosofias até o momento em que economicamente se adquire maturidade suficiente para nossa afirmação como identidade. Até lá, nos interessaremos vivamente por tudo o que ocorre a nossa volta, e nesse vício reside igualmente uma qualidade de nosso meio artístico e intelectual, que nossos colegas dos grandes centros hegemônicos não possuem, pois conhecem a si próprios e a seus competidores mais fortes, ignorando tudo o mais.