Publicado na CONJUNTURA ECONÔMICA, da FGV. Vol. 61 - N 0 10. Outrubro 2007. CONTROVÉRSIAS EM TORNO DO ETANOL Marcello Averbug Inúmeros fatores explicam o empenho do Brasil e dos Estados Unidos em expandir a produção de etanol. No entanto, em ambos os países, a política de diminuição da dependência ao petróleo vem se processando através de uma ótica incompleta e conservadora, quando analisada sob o ângulo do transporte urbano. Incompleta, porque brasileiros e americanos atuam fundamentalmente no lado da oferta de combustível. O correto seria focalizar também o lado da demanda, com intensidade superior à atual. Em outras palavras: ampliar investimentos destinados a alterar o modelo prevalescente de transporte de passageiros, priorizando o sistema coletivo. Tais investimentos não necessitariam ser, a curto prazo, do gênero ultra dispendioso, como o metrô. Apesar de a opção ferroviária ser a ideal, a reestruturação dos serviços de ônibus já constituiria um avanço significativo. Afinal, cada ônibus substitui uns trinta automóveis, desde que seja confortável, seguro e, de preferência, movido por fonte limpa de energia. Onde e quando for possível implementar projetos de metrô e trem suburbano, melhor ainda. Outra forma de atuar na demanda por combustível seria através da difusão de veículos menos consumidores de gasolina, diesel, etanol, biodiesel e, até mesmo, gás. Tratam-se, por exemplo, dos híbridos (cujas características são descritas em parágrafos posteriores) e dos elétricos acionados por hidrogênio. O traço conservador da política vigente provém do fato de manter intacto o modelo de locomoção baseado no carro individual, alterando apenas o tipo de combustível consumido. Não proponho uma declaração de guerra à indústria automobilística, mas sim mudanças na maneira de usufruir o automóvel, buscando diminuir o número de viagens casa trabalho casa. O que seria viabilizado mediante maior disponibilidade de transporte coletivo decente, concepção de outras fórmulas criativas de induzir menor dependência ao automóvel e aplicação de limites ao seu ingresso nas áreas centrais das cidades. Nesse campo, os melhores exemplos vêm da Europa: a) um grande número de municípios europeus vem modernizando ou instalando sistemas de bonde e ônibus em vias exclusivas; b) em Londres e Estocolmo foi instituido um pedágio à circulação de carros particulares no centro da cidade. Singapura também adotou esse encargo e a prefeitura de Nova York anunciou estudos para sua implantação; c) o prefeito de Paris criou um sistema de aluguel de bicicleta, a preços irrisórios, conjugado à rede de metrô. Em artigo no The New York Times (15.07.07), Thomas Friedman afirma: provavelmente, a maior iniciativa verde em execução nos dias de hoje é introduzir um ônus ao engarrafamento de trânsito; isto é, cobrar uma taxa dos motoristas particulares pelo direito de circular no centro da cidade. Este é o meio mais efetivo, a curto-prazo, de limpar o ar das cidades, promover uso
eficiente de energia e criar centros urbanos agradáveis, além de proporcionar nova receita aos municípios. Na maior parte do planeta, ainda é baixa a percepção de que a prepotência do automóvel está sufocando e deformando as cidades médias e grandes. Também é insuficiente a visão de que a prioridade ao transporte coletivo devolveria os espaços urbanos à população e favoreceria o desfrute dos recursos culturais, naturais e recreativos das cidades. Da mesma forma como concluiu-se que o cigarro é prejudicial à saúde das pessoas, chegou a hora de considerar o uso indisciplinado do automóvel como nocivo à humanidade, sob os ângulos ambiental e de qualidade de vida urbana. Controvérsias Embora se justifique por vários motivos, o entusiasmo despertado pelo etanol merece análise serena e ampla por parte da comunidade internacional, sob pena de transformar-se em decepção. O passo inicial dessa análise consistiria em aclarar controvérsias que perduram em torno do tema. A primeira controvérsia refere-se à diferença entre gasolina e etanol em termos de agressão ambiental. O etanol não é um combustível limpo, embora seu efeito poluente seja inferior ao da gasolina. Segundo informa o site Biodieselbr.com (www.biodieselbr.com.proalcoolexternalidades), a emissão de gases por parte dos veículos brasileiros leves movidos a gasool (gasolina com 22% de álcool anidro) é apenas 15,9% superior à proveniente dos carros com motor a álcool hidratado. No Brasil, prevalece a versão de que a vantagem de nosso etanol provém do fato de seu balanço ecológico ser neutro, em termos da atmosfera global. Isto é: o carbono absorvido da atmosfera pela planta de cana-de-açúcar compensa o dióxido de carbono liberado durante a queima do etanol nos motores dos veículos. Outras versões, inclusive a do World Wildlife Fund 1 apresentam panorama diferente. Argumentam que o próprio saldo ambiental do cultivo da cana-de-açucar ainda é insatisfatório, pois gera resíduos tóxicos que poluem rios e degradam o solo, alem de induzir desmatamentos e queimadas. Segundo o professor Francisco Alves, da Universidade de São Carlos, para cada litro de álcool produzido são gerados 12 litros de vinhoto, rico em material orgânico e que é destinado à fertilização. Mas esse vinhoto é excessivo e já tem destruído lençois freáticos e aqüíferos. Faltam pesquisas que mostrem a quantidade suportável de lançamento do vinhoto (O Globo, 18.03.07). No tocante aos Estados Unidos, David Tilman, da Universidade de Minnesota, declarou (Washington Post, 25.03.07) que o etanol proveniente do milho possue potencial para prover energia mais limpa mas, dada a forma como hoje é produzido, apenas cerca de 20% de cada galão é energia nova. Isto porque usa-se grande volume de combustíveis fósseis, energia velha, no cultivo do milho e sua transformação em etanol. O resultado líquido é que o etanol/milho aumenta os gases de efeito estufa na atmosfera e esse aumento é apenas cerca de 15% menor do que o causado por montante equivalente de gasolina. 1 WWF- Fundação independente sediada na Suiça, dedica-se à conservação ambiental global. Fundada em 1961, atua em 100 países e, atualmente, participa de 2000 projetos ambientais.
Sem a pretensão de destrinchar essa controvérsia, ressalto que, mesmo na hipótese de o balanço ecológico do etanol proveniente da cana-de açúcar ser equilibrado, os seguintes fatos deveriam ser considerados: a) a planta que absorve carbono encontra-se nas zonas rurais, distantes dos centros urbanos onde os motores a etanol liberam CO2. Isto é, o ar reinante nas cidades pouco se beneficia da limpeza propiciada pela plantação; b) qualquer cultivo agrícola possui o dom de absorver carbono, não apenas o da cana-de-açúcar; c) se fosse ampliada a utilização de outras fontes de energia ainda mais limpas que o etanol, o balanço ambiental seria positivo e não apenas equilibrado. No solo menos ocupado pela cana-de açúcar, outras plantas estariam absorvendo carbono, enquanto os veículos contaminariam menos a atmosfera. Outro foco de controvérsia é o impacto da expansão do etanol sobre a produção de alimentos. Vozes expressivas, inclusive o FMI, vêm manifestando preocupação com o avanço acelerado de cultivos direcionados ao etanol. Advertem que o salto na demanda por produtos agrícolas pode ser tão veloz a ponto de não dar tempo para acomodações tecnológicas que permitam diluir a disputa pelo solo. Sob essa ótica, ocorreria uma pressão perversa sobre a agricultura, insuflando os preços da terra e de seus produtos em geral, além de desalojar o plantio de alimentos. Não se trata de uma hipótese, mas sim de fato constatável: matéria publicada no O Globo (07.06.07) informa que, nos últimos 12 meses, o preço do hectare de terra no Brasil subiu em 11,6%. Nas regiões onde a cana vem se expandindo, o crescimento foi superior à média nacional. Por exemplo: na Zona da Mata Alagoana, 84%; em Araraquara, 70%; no Triângulo Mineiro, 31%. Se o Brasil lograr êxito em sua aspiração de elevar acentuadamente as exportação de etanol, esse cenário tenderia a agravar-se. Também nos Estados Unidos verifica-se debate em torno dessa questão. Em anúncio de página inteira no Washington Post de 12.06.07, a Coalition for Balanced Food and Fuel argumenta: O desvio do milho para a produção de etanol já está elevando os preços de produtos agrícolas nos EUA. E, ao aumentar o custo da alimentação de gado, suinos e aves, também encarece a carne, ovos e leite. Relatório OECD FA0 2, divulgado em 04.07.07, prevê que o rápido crescimento da indústria global de biocombustíveis insuflará os preços agrícolas ao longo da próxima década, em decorrência da maior demanda por grãos e cana. Entre 2007 e 2016, principalmente no caso dos grãos, essa alta se situaria na faixa de 20% a 50%, com reflexos nos preços da carne, devido à alimentação dos animais. Conforme alerta o FMI ( Perspectivas Econômicas Mundiais, março 2007), embora os biocombustíveis sejam um suplemento benéfico ao fornecimento de energia, promover seu uso a 2 OECD: Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico. FAO: Organização para Agricultura e Alimentação, das Nações Unidas.
níveis insustentáveis, com a atual tecnologia, é problemático em termos de área cultivável. Michel Griffon, responsável pelo Departamento Agrícola e Desenvolvimento Sustentável da Agência Nacional de Pesquisa - França, adverte, com evidente exagero: Seriam necessários dois planetas para suprir os estômagos, abastecer a demanda por matérias primas agrícolas e garantir o futuro da biodiversidade (Le Monde, 15.05.07). O conflito alimento x combustível não é insolúvel e, certamente, o avanço tecnológico oferecerá resposta. Porém, como ainda não foi encontrado um esquema de conciliação, o mais prudente seria condicionar a expansão do etanol à busca de uma coexistência pacífica com o mercado de alimentos. Como terceiro ponto de controvérsia, no Brasil, figura o aspecto social vinculado ao cultivo da cana-de-açucar. É inqüestionável que as condições de trabalho nos canaviais se inscrevem entre as mais degradantes registradas no país. Migrantes temporários e desprotegidos, trabalhadores sem contrato, remuneração irrisória, jornada exageradamente longa, alojamentos precários e falta de assistência médica são algumas das situações que fazem parte da realidade do setor. A grande dúvida é se o choque de crescimento do setor contribuirá para o rompimento desse contexto. Na opinião da coordenadora da OIT para o trabalho escravo, Patrícia Audi (O Globo, 18.03.07) a partir de 2002, depois de uma ação coordenada entre Judiciário, Executivo e Ministério Público, a situação melhorou. Como o Brasil não se destaca por resolver suas debilidades sociais, este tema encontra-se inevitavelmente associado ao destino do programa etanol. Ações sobre a demanda Uma das poucas manifestações promissoras de mudança na demanda de combustível poluente, nos Estados Unidos, é o sucesso comercial do chamado carro híbrido. Seu funcionamento basease na combinação de dois pequenos motores para produzir a força de um grande: um motor elétrico, recarregado automaticamente, e o outro, a gasolina. Cada um deles é acionado em ocasiões diferentes, dependendo do modelo: quando a ignição é ligada, em alta ou baixa velocidade, etc. Os resultados em termos de economia de gasolina são nítidos. Em média, com um litro de gasolina percorre-se 21,0 quilómetros. Esses índices de consumo melhorarão ao longo do tempo como resultado de pesquisas. Toyota e Honda são os que mais avançaram na fabricação de veículos híbridos, induzindo General Motors, Ford e Chrysler a ingressaram nesse mercado. O Toyota Camry e o Honda Civic híbridos consomem, no tráfego urbano, em torno de 65% menos gasolina do que os irmãos de motor convencional. Na estrada, essa diferença é menor. Seus preços são, em média, 18,5% superiores aos respectivos modelos a gasolina. O disputado Toyota Prius, produzido exclusivamente como híbrido, é comercializado a US$ 23.000 e seu desempenho médio beira a 25,5 km por litro de gasolina. No primeiro trimestre de 2007, a Toyota vendeu 68% mais híbridos do que em igual período do ano anterior. A difusão internacional desse tipo de veículo, associada a investimentos em transporte coletivo, configuraria um processo revolucionário na demanda por combustível. No Brasil, poderia-se pensar no híbrido utilizando etanol ou flex fuel.
Ações destinadas a delinear uma demanda decrescente de combustível por passageiro requerem um robusto esquema de financiamento a projetos de transporte coletivo. No contexto dos Estados Unidos, esse aspecto assume características peculiares que não serão aqui abordadas. Com referência ao Brasil, o agente natural de financiamento aos investimentos nessa área é o BNDES. O apoio do BNDES ao programa etanol vem crescendo intensamente, enquanto os financiamentos a projetos de transporte urbano evoluem em ritmo mais moderado. Entre 2002 e 2006, os desembolsos do Banco às atividades vinculadas ao etanol aumentaram em 241,8%, e os efetuados aos projetos de transporte urbano subiram em 94,1%. Em tese, essa diferença não surpreende, dado o fato de os investimentos em biocombustível se encontrarem em fase de forte expansão. Portanto, o comportamento observado reflete o perfil das solicitações de apoio direcionadas ao Banco que, por sua vez, resulta da política nacional em vigor. No momento em que houver um salto significativo na concepção de programas de modernização do transporte coletivo, os desembolsos do BNDES espelharão tal mudança. Posicionamento político Encarando o etanol não apenas sob o ponto de vista de alternativa ao petróleo, mas também como parte de um esforço para acelerar a recuperação ambiental e melhorar a qualidade de vida urbana, percebemos o quanto as políticas executadas pelos governos brasileiro e americano necessitam reformulação urgente. Por exemplo: apesar de seu explícito desprezo pelas questões ambientais, o presidente Bush adotou a meta de reduzir o uso de gasolina em 20% nos próximos 10 anos, através de sua substituição pelo etanol, para cuja produção é concedido elevado subsídio. Mas seu alvo principal restringe-se à redução da dependência ao petróleo importado e não à superação dos outros gêneros de estragos resultantes do apego a esse combustível fóssil. As importações americanas de petróleo passaram de 35% do total consumido, em 1973, para 60% em 2006. Como resposta, a produção de etanol dobrou nos últimos três anos. Sob o ponto de vista da contenção das importação de petróleo, essa atitude faz sentido, embora seja insuficiente. Porém, no âmbito de uma política energética mais abrangente, seria preferível diminuir o subsídio ao etanol e contemplar a pesquisa em veículos movidos por alternativas radicais ao petróleo, assim como o transporte coletivo de passageiros e ferroviário de carga. O fato de uma fonte energética ser renovável não justifica que monopolize as iniciativas visando diminuir a dependência aos combustíveis fósseis. A conjugação do programa etanol a um ambicioso conjunto de investimentos em transporte coletivo aceleraria o alcance dos objetivos ambientais e de contenção à dependência ao petróleo. Na verdade, a escassez de medidas destinadas a racionalizar o uso do automóvel e ampliar o transporte coletivo gera danos que comprometem os benefícios provenientes da busca de alternativas ao petróleo. Marcello Averbug, consultor em Washington, foi economista do BNDES e do BID, e professor do Departamento de Economia da UFF. maverbug@yahoo.com