OS ESTUDOS DE GÊNERO E A TRADUÇÃO: UMA RELAÇÃO PROVEITOSA DEMONSTRADA POR MEIO DA ABORDAGEM DA TRADUÇÃO DE ARTIGOS CIENTÍFICOS



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Transcrição:

OS ESTUDOS DE GÊNERO E A TRADUÇÃO: UMA RELAÇÃO PROVEITOSA DEMONSTRADA POR MEIO DA ABORDAGEM DA TRADUÇÃO DE ARTIGOS CIENTÍFICOS Viviane POSSAMAI Luciane LEIPNITZ (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) ABSTRACT: In the present study, we address two main genre approaches: Bakhtin (1997) and Swales (1990) in order to support our reflections regarding the benefits of approaching translation both theoretically and practicall, and genre. Firstly we provide some literature review about those authors main ideas and secondly we make our own reflections about the relationship between translation and genre. Eventually, we bring some examples of actions already taken in order to help junior translations in the translation of scientific articles and also briefly mention some academic works developed and under development that have some relation with genre and translation. KEYWORDS: translation; discourse community; research articles 1. Introdução A descrição e a classificação de gêneros têm, para estudos e atividades que envolvem textos, uma importância fundamental, pois permitem observar e agrupar, sob o prisma de similaridades, as diversas materializações e heterogeneidades dos enunciados. As concepções de gêneros textuais de Bakhtin (1997) e Swales (1990), calcadas nas noções de esferas de atividade e de comunidade discursiva, ensejam várias possibilidades de aplicação em investigações. Uma dessas possibilidades corresponde aos estudos de tradução, tanto no que diz respeito à prática como à didática da tradução. Sendo tarefa do tradutor fazer a transposição de realizações textuais de um idioma a outro, entendemos que, nesse processo, estará intermediando também a transposição de modos de dizer das comunidades envolvidas na produção e realização desses textos. Essa transposição textual deve acontecer tanto nos níveis do léxico e da gramática, como também das formas que serão reconhecidas pelas comunidades de chegada. Entendemos que o reconhecimento de padrões de realização de gêneros em diferentes idiomas capacita o tradutor para produzir textos adequados na língua de chegada, que tenham naturalidade e que atendam às expectativas das comunidades que os recebem. Neste trabalho, pretendemos demonstrar, através da reflexão teórica, de exemplos práticos e de resultados de estudos com córpus, de que modo a tradução tira proveito de estudos de gênero. Para tentar cumprir esse objetivo, o texto inicia com uma contextualização rápida de noções de gênero, diferenciando gêneros, classes e tipos textuais. Em seguida, enfocamos as reflexões de Bakhtin e Swales para consolidar a noção de gênero que estamos tomando e evidenciar o porquê dessa escolha. Em seguida, levamos a reflexão para o campo da tradução, para, no capítulo seguinte, enriquecê-la com alguns resultados de pesquisas anteriores e em desenvolvimento. 2. Gêneros, classes e tipos textuais Em princípio, as três denominações, gênero, classe e tipo textual, parecem sinônimos que poderiam ser empregados indistintamente, porém cada uma delas implica diferentes pontos de vista, pois foram cunhadas em diferentes momentos e utilizadas por distintas teorias 2016

no contexto dos estudos de gênero e da lingüística textual. Não quer dizer, no entanto, que não haja sobreposições. A expressão gênero textual tem seu fundamento atribuído principalmente à conceitualização de gênero discursivo na obra de Bakhtin, Estética da Criação Verbal (1997). Alguns autores, como Marcuschi (2002), defendem a idéia de que é impossível se comunicar verbalmente a não ser por algum gênero (mesma idéia de Bakhtin), assim como é impossível se comunicar verbalmente a não ser por algum texto, concluindo então que a comunicação verbal só é possível por algum gênero textual. Estamos também conscientes de que existem estudos que propõem a distinção entre gêneros do discurso e gêneros textuais. Utilizaremos, porém, a proposta de Marchuschi acima explicitada, em uma relação lógica entre gênero > texto > gênero textual, que autoriza que se faça uma discussão sobre gêneros textuais fundamentada nos gêneros do discurso, conforme discutido por Bakhtin. Os termos classe e tipo textual são utilizados quase exclusivamente pelas vertentes da lingüística textual. A classe textual seria exatamente o que sabemos enquanto falantes de uma língua, por exemplo, quando somos capazes de dizer: isto é um texto jornalístico, isto é uma receita de bolo. O tipo textual refere-se a uma classificação científica dos textos. Segundo Marcuschi (2002, p. 22) a expressão tipo textual designa uma (.) espécie de construção teórica definida pela natureza lingüística de sua composição (aspectos lexicais, sintáticos, tempos verbais, relações lógicas). Os tipos textuais (.) constituem seqüências lingüísticas ou seqüências de enunciados e não são textos empíricos (MARCUSCHI, 2002, p. 23), isto porque um texto, em geral, contém segmentos de vários tipos de texto, assim, um determinado gênero pode conter um ou mais tipos de texto em sua composição. Por exemplo, um artigo científico poderá conter elementos de narração e descrição (apresentação da metodologia de pesquisa) e elementos de argumentação (na discussão). Narração, descrição e argumentação são tipos textuais. Este trabalho é pautado pela reflexão sobre artigos científicos, que são textos já aceitos e reconhecidos como constituintes da comunicação de uma grande comunidade, a comunidade científica internacional, e que já têm um formato bastante estável. Portanto, estamos tratando de textos que constituem um gênero textual. Para aprofundarmos um pouco mais na noção de gênero textual, apresentaremos a seguir dois autores fundamentais na reflexão sobre este assunto, que nos ajudarão a formular melhor o escopo dessa denominação e a justificar por que essas noções são importantes para a tradução. 3. Revisão da literatura: os gêneros para Bakhtin e Swales 3.1 Bakhtin e a noção de gênero discursivo Em nosso trabalho, utilizamos o texto Os gêneros do discurso por considerá-lo bastante esclarecedor da idéia desenvolvida por Bakhtin e por sugerir aportes condizentes com a reflexão voltada à tradução, embora cientes de podem existir estudos e interpretações dos temas desenvolvidos por este autor mais aprofundados e mais rigorosos. No livro A Estética da Criação Verbal, no qual consta o ensaio O Problema dos Gêneros do Discurso, Bakhtin (1997, p. 280) revela o caráter inovador de sua reflexão, mencionando que o problema geral dos gêneros do discurso nunca havia sido antes colocado, o que seria compreensível, devido à diversidade e à heterogeneidade dos enunciados que compõem os gêneros, assim como das esferas da atividade humana. Historicamente, parece ter sido muito difícil estabelecer um traço comum a todos os gêneros, e Bakhtin vem trazer a idéia de que esse traço seria a natureza lingüística dos enunciados, uma característica única 2017

compartilhada por todos eles. Os enunciados (orais ou escritos) seriam a realização da língua, sendo usados em toda e qualquer esfera das inúmeras atividades humanas. Cada esfera de atividade, então, desenvolve tipos relativamente estáveis de enunciados que passam a ser comumente associados a elas. São esses tipos diferentes e estáveis de enunciados que Bakhtin (1997, p. 301) chama de gêneros de discurso, e essa idéia da relativa estabilidade dos gêneros é, até hoje, retomada pelos teóricos e analistas de gênero. Outra reflexão que se apresenta é que, uma vez que o enunciado é individual, ele pode refletir a individualidade, sendo que alguns gêneros são mais propícios para tal do que outros. Porém é o estilo geral, ou seja, o lingüístico, que está indissociavelmente ligado ao gênero, o estilo lingüístico ou funcional nada mais é senão o estilo de um gênero peculiar a uma dada esfera da atividade e da comunicação humana. Cada esfera conhece seus gêneros, apropriados à sua especificidade, aos quais correspondem determinados estilos (BAKHTIN, 1997, p. 284). Segundo Marcuschi (2002), a organização geral de um gênero, ou seja, a construção composicional, seria a forma de dizer o conteúdo temático, e essa forma não é inventada a cada vez que nos comunicamos, mas que está disponível para uso social. Podemos dizer que esses traços estruturais, juntamente com o conteúdo e o estilo, permitem ao usuário reconhecer um gênero, nomeá-lo e empregá-lo como algo que é parte do uso, da linguagem típica de sua cultura. Marcuschi, baseado em Bakhtin, explica que os gêneros constituem ações verbais que se tornam convencionalizadas (.) em virtude da recorrência das situações em que são investidas como ações retóricas típicas (MARCUSCHI, 2002, p. 32), ou seja, suas construções composicionais estabilizam-se pelo uso constante nas práticas verbais de um determinado grupo cultural. A seção 4 discutirá com mais detalhe, como essas reflexões podem ser aplicadas à tradução. Antes, porém, vamos apresentar algumas idéias de Swales sobre gêneros. 3.2 Swales e a noção de comunidade discursiva O nome de John M. Swales é um dos de maior destaque na tradição norte-americana quando se trata de estudos sobre gêneros. A publicação do livro Genre Analysis. English in Academic and Research Settings já tem mais de 10 anos, mas seu trabalho sobre gêneros, e especificamente sobre o artigo científico, parece permanecer como uma base firme e confiável para o desenvolvimento de estudos mais contemporâneos, não só de raízes norte-americanas, ainda que com algumas ressalvas quanto ao caráter generalizador de seu modelo. A partir das noções de gênero em quatro áreas distintas o folclore, a literatura, a lingüística e a retórica, esse autor faz uma nova definição de gênero que ele deseja, pouco ambiciosamente, que seja aplicada apenas aos propósitos que tem em mente, que são, principalmente, o ensino e o aprendizado de língua estrangeira. Das quatro áreas que avalia para formular seu conceito de gênero, Swales resume seis aspectos comuns e presentes em todas elas. Menciona que em todas há (i) uma classificação duvidosa dos gêneros, de um prescritivismo prematuro e pouco cuidadoso; (ii) uma noção de que os gêneros são importantes na integração de passado e presente; (iii) um reconhecimento de que gêneros estão situados dentro de comunidades discursivas, em que crenças e práticas de denominação dos participantes têm relevância; (iv) uma ênfase no propósito comunicativo e na ação social; (v) um interesse em uma estrutura genérica; (vi) uma compreensão da dupla capacidade gerativa de gêneros de estabelecer objetivos retóricos e de incentivar sua realização. Swales faz, então, uma caracterização dos gêneros e, metodologicamente, divide seus comentários em seis tópicos. 2018

(a) Um gênero é uma classe de eventos comunicativos. Para o autor, os eventos comunicativos de uma determinada classe podem ter uma freqüência maior ou menor, sendo que os de menor freqüência tem que ter uma certa importância, para uma determinada cultura, para existirem como um gênero. Um evento comunicativo compreende não somente o próprio discurso e seus participantes, mas também o papel do discurso e o ambiente de sua produção e recepção, incluindo suas associações culturais e históricas (SWALES, 1990, p. 46). (b) O principal critério que transforma um grupo de eventos comunicativos em um gênero particular é a existência de propósitos comunicativos em comum. Para Swales, o primeiro fator e o determinante de pertinência a um gênero está mais no compartilhamento do mesmo propósito do que em similaridades de forma ou algum outro critério. Porém, ele mesmo ressalta que pode não ser tão simples assim identificar os propósitos de um gênero, e o pesquisador deve ter cuidado ao simplificar as coisas, como ao dizer que artigos de pesquisa são simples relatos de experiências. Também não é incomum um gênero ter mais de um propósito comunicativo. (c) Os exemplares de gêneros variam em sua prototipicidade. Swales menciona que outros aspectos determinariam um gênero além do propósito comunicativo, que outras características seriam necessárias para determinar um gênero. Diz, então, que há duas maneiras de ver essa questão: a da abordagem da definição e a da semelhança por família. Swales utiliza um dos pontos de vista discutidos para a problemática da definição para empregá-lo na definição dos diferentes tipos de gêneros. Na prática, segundo o autor, poderia ser muito difícil listar tais características para determinadas categorias, e, talvez, o que permitiria pertencer a uma mesma categoria não seria uma lista de características definidoras, mas inter-relações de um tipo mais maleável, chamadas por Wittgenstein de famílias. Swales (1990, p. 52) conclui que (.) o propósito comunicativo foi nomeado como a propriedade privilegiada de um gênero. Outras propriedades, como forma, estrutura e audiência operam para identificar até que ponto um exemplar é prototípico de um determinado gênero. (d) A lógica subjacente a um gênero estabelece restrições a possíveis contribuições em termos de conteúdo, posicionamento e forma. Swales (id. p. 52) afirma que (.) membros estabelecidos de comunidades discursivas empregam gêneros para perceber comunicativamente as metas de suas comunidades. A idéia é a de que o reconhecimento dos propósitos fornece as bases, enquanto essas permitem convenções que restringem a participação de membros aprendizes ou não-membros, que as conhecem menos. (e) A nomenclatura usada para os gêneros por uma comunidade discursiva é importante fonte de insight O autor chama atenção para os nomes dados aos gêneros, ressaltando que podem ser fontes para conclusões importantes. Diz que, em geral, os membros das comunidades discursivas denominam gêneros e classes de eventos comunicativos que reconhecem como tendo formas retóricas recorrentes. Algumas dessas refletem o propósito comunicativo do gênero, outras podem ser marcas de certas instituições, ao invés de serem apenas descritivas. Às vezes podem existir gêneros sem eventos comunicativos vinculados a eles, assim como alguns eventos comunicativos que não são denominados por gênero algum. Por fim, após essa categorização, Swales propôs uma definição de gênero que ele mesmo diz talvez não ser totalmente adequada, mas que se beneficiou de discussões anteriores a respeito do termo e de outras áreas afins, e que ela representa um avanço nas próprias formulações anteriores que havia feito: Um gênero compreende uma classe de eventos comunicativos, cujos membros compartilham um conjunto de propósitos comunicativos. Esses propósitos são 2019

reconhecidos pelos membros da comunidade discursiva que trabalha com eles e, portanto constituem a lógica subjacente aos gêneros. Essa lógica molda a estrutura esquemática do discurso e influencia e restringe a escolha do conteúdo e o estilo. Além do propósito, os exemplares de um gênero exibem vários padrões de similaridade em termos de estrutura, estilo, conteúdo e público alvo. (SWALES 1990, p. 58) Mas para entender esse conceito de gênero de Swales, é fundamental que se compreenda também o que é entendido por comunidade discursiva. Swales reformulou suas idéias sobre comunidade discursiva em um artigo que data de 1992. Nele, afirma suspeitar que foi muito seduzido pelo conceito de comunidade discursiva e afirma que a verdadeira comunidade discursiva pode ser mais rara do que pensava. Assim, faz então uma redefinição em que se percebe que o conceito foi ampliado, abrangendo mais elementos e ficando mais flexível, em uma tentativa de (.) representar um mundo mais complexo e um tanto obscuro (SWALES, 1992). O quadro a seguir mostra uma comparação entre as primeiras idéias do autor sobre comunidade discursiva e sua reformulação SWALES (1990) SWALES (1992) Uma comunidade discursiva tem um conjunto de A comunidade discursiva não apenas aceita os objetivos públicos comuns; objetivos, mas também os formula ou estabelece. Esses objetivos podem ser consensuais, mas também Uma comunidade discursiva tem mecanismos de intercomunicação entre seus membros; Uma comunidade discursiva utiliza seus mecanismos de participação principalmente para fornecer informações e feedback; Uma comunidade discursiva utiliza e, portanto, tem um ou mais gêneros para alcançar comunicativamente seus objetivos; Além dos gêneros, uma comunidade discursiva adquire um vocabulário específico; Uma comunidade discursiva conta com uma estrutura de membros que detém um certo nível de conteúdo relevante e perícia discursiva. 3.3 Aproximando Swales e Bakhtin podem ser distintos e relacionarem-se. Quanto aos mecanismos de intercomunicação entre os membros de uma comunidade discursiva, não houve alterações. Segundo Swales (1990), esses mecanismos variam de acordo com a comunidade. Nesse ponto, Swales acrescenta que uma comunidade discursiva usa mecanismos de participação para uma série de propósitos, não apenas para informação e feedback. Ao invés de um ou mais gêneros para alcançar seus objetivos, uma comunidade discursiva utiliza uma seleção crescente de gêneros no alcance dos mesmos. Uma comunidade discursiva adquire e continua sempre buscando uma terminologia específica. Swales acrescenta que uma comunidade discursiva tem uma estrutura hierárquica explícita ou implícita que orienta os processos de admissão e de progresso dentro dela. Após olharmos brevemente para alguns dos principais conceitos estabelecidos por esses autores, interessa-nos fazer uma aproximação entre o que Bakhtin chamou de esferas de atividade e o que Swales chamou de comunidade discursiva. Se tomarmos as afirmações de ambos, veremos que eles têm pontos que podem ser discutidos, aproximando as duas teorias no que nos interessa para a validação de nosso trabalho. As esferas de atividade em Bakhtin são todos os eventos nos quais o homem participa e, segundo ele, todas estão relacionadas ao uso da língua. As comunidades discursivas, de Swales, são mais restritas, tanto que ele exclui de seu foco duas áreas da atividade verbal: a conversa casual e a narrativa simples, considerando-as pré-gêneros. Contrapondo as idéias de Bakhtin e de Swales, percebemos que se distanciam nesse ponto, pois, para Bakhtin, toda utilização da língua efetua-se em forma de enunciados, e cada esfera de utilização desses 2020

enunciados elabora tipos relativamente estáveis deles, ocasionando, então, que toda utilização da língua se dará por meio de algum gênero. Para Swales, um gênero é uma classe de eventos comunicativos, cujos membros compartilham o mesmo conjunto de propósitos comunicativos. Na definição de Swales, esses propósitos estariam condicionados por comunidades mais concretas, em um sentido mais relacionado a uma associação formal, com mecanismos de comunicação, membros associados e regras de aceitação. Mas, como ele mesmo diz, sua teoria é desenvolvida com base nos seus objetivos, que, em geral, são o ensino e a aprendizagem dos gêneros; diferentemente de Bakhtin, que faz uma reflexão mais ampla e filosófica sobre a linguagem. Podemos dizer, ainda, dessa aproximação que, para Swales, o gênero se dá por afinidades de propósitos comunicativos. Estes forneceriam as bases para a constituição de um gênero, enquanto, para Bakhtin, o critério de agrupamento é a própria atividade discursiva, os propósitos comunicativos parecem estar implícitos na idéia de pertinência de um enunciado a um gênero: A variedade dos gêneros do discurso pressupõe a variedade dos escopos intencionais daquele que fala ou escreve (BAKHTIN, 1997, p. 291). Assim, o que tentamos esclarecer é que sempre um gênero acontece dentro de uma esfera, ou de uma comunidade, que irá determinar escolhas e estilos, e que irá, no evento da comunicação, pressupor conhecimentos e buscar, digamos, uma cumplicidade dos participantes. Os gêneros também não são eventos fixos, isolados e que se excluem mutuamente, sendo que podemos agrupá-los a partir do estabelecimento de diferentes critérios, mesmo que alguns de seus elementos, considerados inerentes à sua constituição formal, não estejam presentes. Toda a idéia de condicionamento cultural e social, ou de pertinência a um grupo ou a uma situação, é fundamental para a reflexão sobre fatores envolvidos no processo tradutório. Entendemos que os artigos científicos são textos produzidos dentro de e para uma comunidade, não apenas a de cada língua, mas também a da grande comunidade científica internacional. Espera-se então, que os textos produzidos por e para essas comunidades correspondam ao que se espera deles. E é essa expectativa que pode ser rompida no momento que um tradutor, inadvertidamente, não atender ao que a comunidade espera do texto com o qual está trabalhando, ao operar na transposição do texto. A seção a seguir faz uma aproximação entre gênero e tradução, apresentando a maneira como entendemos que a tradução pode tirar proveito das idéias apresentadas em estudos de gênero. 4. Estudos de gênero e a tradução de artigos científicos Considerando algumas idéias fundamentais dos estudos de gênero, expostas na Seção 3, trataremos agora de como elas podem ser aplicadas em reflexões acerca da tradução de artigos científicos. Antes, porém, é preciso esclarecer algumas particularidades do gênero que estamos tratando. 4.1 O texto do artigo científico O nome de Swales é tradicionalmente citado quando se trata de estudos de gênero e, em particular, de um deles: o artigo científico. Seu foco e sua motivação são bastante pedagógicos, como ele mesmo estabelece: O principal objetivo (.) é oferecer uma abordagem para o ensino do inglês científico e acadêmico (SWALES, 1990, p. 1). Embora o nosso objetivo aqui esteja voltado para a produção de textos a partir do processo conhecido como 2021

versão (em nosso caso no sentido português-inglês) 1, utilizaremos a reflexão de Swales para embasar a caracterização desse gênero e apontar algumas das questões que estão envolvidas na sua produção. O surgimento de um gênero textual com o formato que hoje conhecemos não ocorreu sem contar o esforço de pesquisadores do século XVII. De acordo com Ard (1983, apud SWALES, 1990), o artigo científico desenvolveu-se a partir de cartas informativas trocadas entre pesquisadores enviadas a um jornal. Quando esse jornal começou a proporcionar um local para discussões, passou a assumir um novo papel, e os textos acabaram refletindo as situações retóricas novas e recorrentes, diferentes das escritas na forma de carta, e, dando origem, assim, aos artigos científicos, que depois encontraram estratégias retóricas para transformar os textos em realizações aceitáveis e convincentes dos trabalhos de pesquisa realizados. Certamente, há diferenças entre o modo de escrever um artigo científico no século XVIII e o que encontramos atualmente. A retórica e a estrutura do artigo científico, hoje, mostram-se mais estabelecidas, e o questionamento do seu formato já não é mais motivo para discussão. Basicamente, os artigos são compostos de Introdução, Métodos, Resultados, Discussão e Conclusão, modelo esse proposto por Swales. Acrescentaríamos, porém, que, mesmo que muito dificilmente os artigos científicos sejam todos, na prática, assim formalmente divididos, eles contemplam em seu desenvolvimento aspectos semanticamente relacionados a essa divisão, em sua maioria, porém não sem exceções. Algumas áreas, como a medicina, parecem seguir à risca essa divisão, já artigos em Ciência da Computação e Lingüística, por exemplo, não apresentam essa divisão como regra geral. Os artigos científicos são produções textuais que constituem um gênero já consagrado, o qual mantém um forte grau de convenções (de uso em função da situação comunicativa, do interlocutor e dos objetivos envolvidos), que os restringem e moldam. Um artigo científico, também conhecido como paper, é por excelência o texto da produção e da divulgação da ciência e da tecnologia. Nele, podem ser apresentadas pesquisas, experiências, investigações, indagações, hipóteses, achados e outras atividades técnico-científicas e profissionais. O artigo, na forma de um produto final (um texto), é resultado de um processo, que inicia na pesquisa e na investigação ainda enquanto idéia/experimento, nas salas de aula e nas leituras e reflexões de seus autores, ganha forma textual no momento de formalização das idéias ou resultados e, antes de atingir seu público, passa ainda por um outro processo: o de publicação. Na elaboração de um artigo, entram muitos fatores condicionantes que já fazem parte de todo contexto da comunidade científica e acadêmica à qual ele pertence, incluindo colegas, adversários, editoras, instituições e todo o entorno que envolve uma pesquisa. O reflexo dessas influências percebe-se tanto nos padrões de texto como nas expressões utilizadas. Podemos perceber, assim, que entre a pesquisa em si e a escritura de um artigo existem muitos fatores operando, o que torna essa tarefa difícil e complicada até mesmo para membros estabelecidos de comunidades científicas. O processo de publicação, em termos gerais, envolve a avaliação da qualidade e pertinência dos textos e a sua conformação a certas normas. Não devemos nos esquecer que, entre o processo de produção e o de publicação, em grande parte, faz-se presente outro processo não menos importante: a tradução do artigo para uma língua estrangeira, em geral de maior alcance e prestígio. Ao pensarmos o papel do tradutor, não podemos ignorar que todas as questões que apontamos acima e dificuldades estarão envolvidas também em seu trabalho, pois a ele caberá a tarefa de fazer o artigo operar, guardando sua estrutura de gênero, na língua de chegada de maneira satisfatória, tanto quanto opera na língua de partida. 1 No decorrer deste estudo, não faremos maiores distinções entre os processos de tradução e versão, principalmente no que tange às teorias sobre tradução, uma vez que estas parecem não fazer tal distinção. 2022

4.2 A tradução e o gênero Segundo Hurtado Albir (2001, p. 491) O tradutor deve saber decodificar as convenções próprias do gênero a que pertence o texto original e saber utilizar as próprias do gênero na língua e cultura de chegada, quando essa for a finalidade da tradução. As convenções que Hurtado Albir menciona nessa citação referem-se ao que discutimos anteriormente quando falamos de construção composicional, isto é, existem traços estruturais, de conteúdo e de estilo que são definidos pelas esferas de atividade, ou comunidades discursivas, em que um texto é produzido. Para que o tradutor conheça e atenda a essas convenções, ele precisa estar ciente do gênero com o qual está trabalhando, com as expectativas da comunidade com a qual está tratando. Assim, estará mais apto a produzir um texto de chegada que não cometa gafes, que soe natural e que seja bem aceito pelos membros da comunidade. No caso dos artigos, é preciso dizer também que os textos são geralmente julgados por bancas de revisores. Então, o tradutor também precisa estar ciente de que, além de seu texto atender às expectativas da comunidade especializada de leituras, será submetido anteriormente ao crivo de avaliadores. E, não raro, no caso de textos traduzidos para o inglês as traduções são bastante criticadas, por estarem muito calcadas no texto de partida, ou seja, serem traduções muito literais. A questão da literalidade permite refletir que um texto falha justamente em conhecer o como se diz em outra língua, ou seja, não procura saber como o texto natural de uma língua de chegada acontece, quais são suas prototipicidades, as características que os moldam e os fazem constituirem-se em gêneros. Entre tantas variáveis que ajudam a nortear as decisões e o trabalho do tradutor de artigos científicos, tomamos posição semelhante à citada por Azenha (1999), quando faz referência a autores que consideram que o fio condutor do condicionamento das traduções é a função comunicativa do texto. Para esses, uma vez que a função comunicativa do texto de chegada estiver definida ela será a bússola que deverá nortear toda estratégia de produção da tradução (id., p. 37). Ao identificar essa função, o tradutor poderá decidir se a mesma será preservada ou não, mais no caso de textos literários, ou de marketing, por exemplo. No caso de artigos, no entanto, não há outra coisa a fazer senão manter, sim, a função do texto na língua de chegada. O tradutor irá, então, estruturar uma outra rede de relações desta vez na cultura de chegada, entre os elementos empregados no plano lingüístico e os novos valores culturais e características situacionais (ibid., p. 40). O que queremos chamar a atenção é que o tradutor precisará, conscientemente, reportar-se às condições de chegada de sua tradução. Sabemos que isto corresponde à parte intrínseca ao processo, mas precisamos enfatizar as condições vinculadas ao gênero. No cenário mundial das revistas e periódicos estrangeiros e internacionais, existe já uma tentativa de assegurar a prototipicidade formal dos textos de artigos. As normas para apresentação dos trabalhos costumam ser bastante rígidas e, além da parte formal, em muitas áreas são feitas delimitações na maneira de apresentar as informações, no nível textual. Não podemos esquecer, no entanto, que não é por ser um texto condicionado por muitos padrões que o artigo científico deixa de ser rico e de ter um caráter com muitas particularidades e diversidades. Mencionamos anteriormente que o reconhecimento dos gêneros, por parte dos tradutores, é essencial para que se conheçam melhor os padrões de gêneros e subgêneros, no intuito de entender seu funcionamento nas diferentes línguas e produzir textos condizentes com esses padrões nas línguas envolvidas. Cabré (1999) sustenta que o tradutor de textos especializados deve conhecer alguns parâmetros para que sua tradução consiga atingir os índices mínimos de qualidade, ou seja, além de ser verídica, do ponto de vista do conteúdo, e 2023

correta, do ponto de vista gramatical, deve ser adequada e soar natural. Deve ficar claro, no entanto, que quando falamos em um gênero estamos falando do geral, de um agrupamento de eventos comunicativos (dentre esses o texto) que se assemelham. Por outro lado, um texto especializado é o particular, é a matéria que compõe os textos que pertencem a um gênero. Seja qual for o estudo voltado para características prototípicas de um gênero que se fizer, certamente ele será interessante do ponto de vista da tradução e do tradutor, que precisa entender o gênero para fazer suas escolhas nos processos de decodificação, redação e adaptação envolvidos na tarefa. A seguir, relatamos algumas experiências já realizadas, voltadas ao reconhecimento de gêneros e das estruturas que os compõem, com o intuito de auxiliar tradutores, bem como trabalhos em andamento. Todas essas ações pretendem demonstrar maneiras de a tradução ser beneficiada pela abordagem de gêneros. 4.3 O que já foi feito e os trabalhos em andamento 4.3.1 Tutorial Elaboramos um tutorial e um artigo de orientação para reconhecimento micro e macroestrutural de artigos científicos, destinado a alunos do curso de tradução. O material está disponível no site do Projeto TextQuim (ver http://www6.ufrgs.br/textquim/tutorial.php). A situação que ambienta os procedimentos apresentados no tutorial é a de um reconhecimento inicial de um artigo em português, que será ser vertido para uma língua estrangeira. Escolhemos o direcionamento português =>língua estrangeira em função da demanda real da comunidade científica brasileira por traduções nesse sentido. No site são oferecidos exercícios aos alunos. A realização de tais exercícios deve ser precedida pela leitura do tutorial. O objetivo é oferecer um suporte a alunos de tradução em seus trabalhos iniciais com a tradução de artigos. Oferecemos dicas gerais de como abordar um artigo a ser traduzido. 4.3.2 Pesquisa de mestrado Foi desenvolvida uma dissertação de mestrado, na qual se colocaram em evidência algumas expressões típicas do gênero artigo científico, levantadas a partir de buscas de freqüência através da utilização de ferramentas da Lingüística de Corpus. No referido trabalho, faz-se um estudo de artigos científicos da área de Ciência da Computação, em especial de expressões típicas de seu desenvolvimento e organização, denominadas marcadores textuais. Após a identificação de tais marcadores e de seus padrões de uso e colocação em textos em português e em inglês, utilizando-se dois córpus, as mesmas foram analisadas e classificadas com base nas metafunções da linguagem, propostas por Halliday (1985). Comparamos, então, as ocorrências das unidades em inglês e português, observando padrões de uso, freqüência e colocação, no intuito de avaliar diferenças que pudessem auxiliar o tradutor na produção de um texto de chegada claro e com menos interferências da língua de partida. Entre outras constatações, verificamos que: A língua inglesa costuma ser mais direta na formulação das expressões; assim, em português, teríamos: através da realização de um estudo, e, em inglês, teríamos, by studying (estudando-se), ou through the study (através do estudo), em que a palavra realização foi eliminada. 2024

A língua inglesa realiza mais construções sintáticas de frases que utilizam ou favoreçam o uso do sujeito na primeira pessoa do plural we (nós). Por exemplo: (a) In this paper we present a new algorithm for DTP solving, called Epilitis. em vez de usar como sujeito o próprio artigo: (a ) Este artigo apresenta a proposta de uma estrutura baseada em agentes inteligentes para a definição de uma seqüência. A língua portuguesa utiliza algumas formas passivas inexistentes no córpus em inglês: (b) (b ) * (nenhuma ocorrência no córpus em inglês) Na seção y são apresentados O exemplo acima mostra um caso em que, em inglês, a forma mais freqüente favoreceria o uso do sujeito na primeira pessoa, como in section y we show. Outra evidência, talvez de menos relevância, é que o inglês utiliza, para fazer referência a elementos como figuras e tabelas, a forma entre parênteses, como em (see Table 1), e em português essa forma não mostrou nenhuma freqüência. Apesar de essa evidência parecer de pouca relevância, é um recurso que, no momento da tradução, pode possibilitar que o tradutor faça uma escolha por uma frase mais direta, em inglês, apenas indicando, entre parênteses, onde determinada informação pode ser encontrada, e não traduzindo literalmente uma expressão do português do tipo como mostra a figura x. 2 Outros olhares poderiam ser lançados em relação às características de estruturação de texto, enfocando-se outros aspectos, como as diferenças entre as áreas. Por exemplo, se olhássemos os marcadores textuais típicos de textos de informática, encontraríamos para a implementação de. ; de medicina, x membros em y pacientes foram estudados ; estatística, se representarmos os elementos da amostra ordenada com a seguinte notação: X1:n, X2:n; direito, é de observar-se que, O Capítulo x da lei de proteção a concorrência, Lei número 8884/94, trata de, e assim em outros contextos também. Também outras características dos artigos poderiam ser observadas, sendo de igual ou maior importância, para o tradutor, das que trouxemos aqui. Podemos citar, apenas como exemplos, o estudo das divisões em seções e o tipo textual envolvido em cada uma (narração, descrição, etc.), o estudo específico de cada uma das seções (resumo, introdução, conclusão), o uso de citações (em que momentos e por que motivo), os tempos verbais e as pessoas empregadas, a indefinição e o apagamento do sujeito e muitos outros. Acreditamos também que, para que isso aconteça, é necessário, cada vez mais, partir das observações teóricas e classificatórias, para as questões práticas e de ocorrências em textos reais. Assim, tradutores e aprendizes de tradução poderão contar mais efetivamente com pesquisas e material de apoio em suas traduções de textos especializados. 4.3.3 Pesquisas de doutorado em andamento Duas pesquisas de doutorado, com previsão de término em 2010, estão sendo desenvolvidas dentro da Linha de Pesquisa Terminologia e Lexicografia: Relações Textuais do PPG-Letras/UFRGS. Estas tratam também, ainda que não de maneira central, de gêneros e tradução. Uma delas assume que há toda uma série de condicionantes culturais, discursivos e de gênero, que sobredeterminam tanto a feição quanto a tradução dos segmentos textuais, 2 Os resultados da pesquisa foram publicados em POSSAMAI (2006). 2025

constituídos a partir dos compostos em língua alemã, quer na língua de origem, quer na língua de chegada. A pesquisa busca dar continuidade à pesquisa de mestrado, que descreveu os compostos nominais em textos de medicina em língua alemã, seus modos de constituição e a forma como são traduzidos para língua portuguesa (LEIPNITZ, 2005). O córpus desse trabalho incluirá outros textos que não apenas textos de artigos científicos, considerando elementos discutidos em estudos de gênero. Os segmentos textuais a serem descritos na tese deverão considerar o discurso e seus participantes, os propósitos comunicativos compartilhados pelos membros da comunidade discursiva, a variação dos gêneros de acordo com a estrutura retórica prevista, o sistema que limita as contribuições lingüístico-discursivas em função do conteúdo do texto, do posicionamento do autor e da forma textual compartilhada pelos pares e a terminologia utilizada pela comunidade discursiva. Dessa forma, o enfoque dado a essas combinatórias textuais não deverá desconsiderar a sua inserção em um determinado gênero textual. A outra pesquisa tem dois objetivos: um de ordem teórica e outro de ordem prática. Em termos de objetivos teóricos, conforme acima mencionado, queremos desenvolver um raciocínio sobre estruturas textuais (ou seqüências de caracteres), que carreguem um valor importante dentro do texto especializado, concretizado em artigos da área médica, sugerindo que o texto também pode ser considerado um objeto de estudos em Terminologia. Quanto aos objetivos práticos, queremos avançar no desenvolvimento de uma ferramenta computacional que ajude tradutores de artigos científicos (na direção Português Inglês), especialmente iniciantes, a realizarem seu trabalho com mais precisão e suporte. A ferramenta seria útil em um momento de pré-tradução, quando o tradutor está familiarizandose com o texto que irá traduzir e procurando materiais de referência, como textos semelhantes, para dar suporte à tradução. Essa ferramenta reconheceria as tais informações relevantes que mencionamos acima. Além disso, ela apresentaria possíveis equivalentes para a tradução dessas informações, identificando extratos de textos semelhantes ao da língua fonte na Web e em uma provável base interna de dados. 5. Conclusão Neste trabalho, pretendemos apresentar a abordagem dada em nossas pesquisas aos estudos de gênero relacionados à tradução e como a tradução pode beneficiar-se de reflexões acerca dos gêneros que estão sendo traduzidos. Num primeiro momento, esboçamos as teorias em que nos embasamos e, posteriormente, traçamos uma reflexão sobre a importância de o tradutor estar consciente quanto ao gênero do texto com o qual está trabalhando. Além disso, apresentamos algumas pesquisas e ações já realizadas, no intuito de oferecer a estudantes de tradução algum material de apoio em seus primeiros trabalhos envolvendo a tradução de textos científicos, especialmente de artigos. Sabemos que a terminologia disponibiliza aos tradutores dicionários, glossários e bancos de dados úteis à prática tradutória. Entretanto, nem sempre existem inventários terminológicos em quantidade e qualidade suficientes para auxiliar o tradutor, quando se defronta com problemas terminológicos de naturezas distintas. Nesse sentido, o tradutor acaba por se converter em um produtor de terminologia, pois conhece as necessidades terminológicas de seu trabalho e pode elaborar material de apoio tanto ao ensino quanto à prática tradutória. Neste sentido, os trabalhos em andamento, frutos de nossa experiência como profissionais tradutores e professores de língua e tradução, objetivam, através do levantamento e da descrição de segmentos textuais em textos em L1 e L2, subsidiar a elaboração de ferramentas que venham a incrementar a prática tradutória de estudantes em 2026

cursos de letras. Entretanto, quaisquer ferramentas que busquem qualificar o processo e o produto tradutório não podem desconsiderar o gênero no qual o texto foi produzido, pois só assim contemplarão realmente os condicionantes culturais do par de línguas envolvido, tornando o texto traduzido (ou vertido) natural ao seu leitor. Referências ARISTÓTELES. Arte retórica e arte poética. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1959. AZENHA Júnior, João. Tradução técnica e condicionantes culturais primeiros passos para um estudo integrado. São Paulo: Humanitas/USP, 1999. BAKHTIN, Michail. Estética da criação verbal. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997. CABRÉ, Maria Tereza. La terminologia: representación y comunicación. Barcelona: Institut Universitari de Linguística Aplicada, 1999. HALLIDAY, Michael A.K. Language as social semiotic the social interpretation of language and meaning. Baltimore: University Park Press, 1978.. An introduction to functional grammar. London: Edward Arnold, 1985. HURTADO ALBIR, Amparo (org.). Enseñar a traducir. Metodología en la formación de traductores e intérpretes. Madrid: Edelsa, 1999.. Traducción y traductologia. Introducción a la traductologia. Madrid: Ediciones Cátedra, 2001. LEIPNITZ, Luciane. Compostos nominais em língua alemã em medicina em tradução para o português. 140f. Dissertação (Mestrado em Teorias do Texto e do Discurso). Instituto de Letras/UFRGS, 2005. MARCUSCHI, Luiz Antônio. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: DIONÍSIO, A.P.; MACHADO, A.R.; BEZERRA, M.A. (orgs.). Gêneros textuais & ensino. Rio de Janeiro: Editora Lucerna, 2002. p. 19-36. POSSAMAI, Viviane. Marcadores textuais do artigo científico em comparação português e inglês um estudo sob a perspectiva da tradução. 165f. Dissertação (Mestrado em Teorias do Texto e do Discurso). Instituto de Letras/UFRGS, 2004.. Marcadores textuais de textos especializados em tradução. TradTerm, v.12, p. 159-179, 2006. SWALES, John M. Genre analysis. English in academic and research settings. Cambridge: Cambridge University Press, 1990.. Re-thinking genre: another look at discourse community effects. In: Re-thinking Genre Colloquium. Ottawa: Carleton University, 1992 [mimeo]. 2027