UMA ABORDAGEM DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS ao abastecimento de água rural Nos últimos trinta anos, as infraestruturas de abastecimento de água rural nos países em desenvolvimento foram objeto de investimentos de milhares de milhões de dólares, uma tendência que foi acompanhada por uma mudança do programa fomentada pelos governos e sustentada na oferta para abordagens baseadas na procura que dependem da participação e gestão das comunidades. Este movimento deu origem a desenvolvimentos significativos a nível mundial. Todavia, esta imagem encorajadora do crescimento agregado em termos de cobertura oculta uma realidade menos otimista: para um número demasiado elevado de pessoas nas zonas rurais, os serviços de água rurais não são fiáveis e têm pouca qualidade. A falta de capacidade de gestão local, fraca manutenção das infraestruturas e financiamento desadequado significam que, frequentemente, os benefícios iniciais do abastecimento de água rural não são sustentáveis. Em qualquer momento, entre 30 % e 40 % dos sistemas de abastecimento de água rural não funcionam ou o seu funcionamento fica muito aquém do nível esperado. Embora haja casos isolados de sucesso, este depende geralmente do envolvimento pessoal carismático ou intensivo a longo prazo de uma ONG, fatores que não são facilmente replicados ou transportados para um grande número de casos. Por que razão não fomos capazes de prestar serviços de água sustentáveis às populações rurais, apesar dos investimentos volumosos em infraestruturas de abastecimento de água? De que forma o setor pode ir ao encontro dos desafios que emergem após a fase de construção e implementação, em particular os que se relacionam com a sustentação da qualidade do serviço e dos benefícios? Com vista a abordar estas questões, o IRC International Water and Sanitation Centre levou a cabo um estudo cujas conclusões servem de tema do livro Supporting Rural Water Supply. O estudo avaliou os setores da água rurais em treze países no âmbito de uma iniciativa de aprendizagem mundial sobre a melhoria dos serviços hídricos Serviços Sustentáveis à Escala ( Sustainable Services at Scale, em inglês) ou Triple-S. Os países escolhidos eram representativos de uma variedade de contextos socioeconómicos, níveis de dependência de ajuda e desenvolvimento relativo do setor da água. Estes países são o Benim, Burkina Faso, Gana, Moçambique, África do Sul e Uganda em África; Índia, Sri Lanka e Tailândia na Ásia; Colômbia e Honduras na América Latina; e um país da OCDE, os Estados Unidos. Esta síntese apresenta uma descrição geral das principais conclusões do estudo, complementada por contributos resultantes do trabalho contínuo da iniciativa Triple-S no Uganda e Gana.
figura 1: SÃO NECESSÁRIAS FUNÇÕES A NÍVEIS MÚLTIPLOS PARA SUPORTAR SERVIÇOS SUSTENTÁVEIS Ambiente habilitante: política, quadros legais e institucionais, planeamento de investimentos a nível macro, aprendizagem e inovação. Nível nacional ou estadual Funções da autoridade dos serviços: planeamento, contratação, regulamentação, suporte aos prestadores de serviços, aprendizagem Nível de governo local Prestadores de serviços: funcionamento, administração e manutenção quotidianos Nível de sistemas ou comunidades Gestão comunitária Concessionários de serviços públicos Setor privado Autoabastecimento PARA UMA ABORDAGEM DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS A tese central do estudo é o facto de ser fundamental um enfoque na prestação de serviços para melhorar o abastecimento da água rural em termos de sustentabilidade e nível de serviço (conforme a avaliação em termos de qualidade, quantidade, fiabilidade e acessibilidade). A abordagem de prestação de serviços foca a prestação a longo prazo de serviços de água à escala em oposição à implementação de projetos discretos e únicos ao nível comunitário. Assim, a abordagem inclui tanto a infraestrutura física necessária para disponibilizar água como sistemas de gestão e capacidades exigidas a níveis múltiplos para manter quantidades de água potável fiáveis e suficientes à boca da torneira a longo prazo (consultar a Figura 1). Na abordagem a longo prazo baseada em projetos de abastecimento de água rural, os esforços são divididos em projetos isolados ao nível das comunidades. Um agente específico instala uma bomba ou sistema canalizado, são constituídas organizações de base comunitária, recebendo formação para realizar a sua gestão e, inicialmente, os consumidores dispõem de um serviço de boa qualidade. Todavia, com o passar do tempo, a capacidade de gestão dissipa-se e as receitas provenientes das taxas aos consumidores são insuficientes para cobrir os custos do ciclo de vida do sistema (consultar a Figura 2). Uma vez que os mecanismos existentes para administrar e regular o fornecimento de serviços, manter e reparar o sistemas, assim como gerir as finanças a longo prazo são insuficientes, o serviço deteriora-se e, eventualmente, entra em colapso, por vezes, num período exageradamente curto. intervenções de capital intensivo para melhorar os serviços e substituir ferragens. Isto exige um suporte a longo prazo a quem presta o serviço, quer sejam organizações comunitárias quer pequenos operadores privados, e instituições dos governos locais que desempenham funções de planeamento, coordenação e supervisão, contando com fortes políticas nacionais e quadros institucionais. DEZ FUNDAMENTOS DA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS SUSTENTÁVEIS Cada vez mais, reconhece-se a necessidade de os setores de abastecimento de água rural abandonarem o enfoque na implementação de projetos autónomos concentrados na disponibilização de novas infraestruturas para passarem a adotar um enfoque que realce a prestação de serviços de água sustentáveis. O estudo do IRC sugere a existência de dez fatores críticos que desempenham um papel fundamental para esta importante mudança. Estes dez fatores, enumerados na Tabela 1, podem ser considerados os fundamentos da concretização da mudança para a prestação de serviços sustentáveis. Numa abordagem de prestação de serviços, por outro lado, depois de um sistema de água ter sido construído, o serviço é mantido indefinidamente por via de um processo planeado de administração e gestão, com
figura 2: É NECESSÁRIO COBRIR OS CUSTOS DO CICLO DE VIDA DOS SERVIÇOS DE ÁGUA capital - infraestrutura física e custos de implementação únicos como formação da comunidade e consultas exploração e manutenção menor salários, combustível, material de limpeza, etc. manutenção de capital reabilitação, substituição suporte direto suporte contínuo aos prestadores de serviços, utilizadores ou grupos de utilizadores, incluindo suporte técnico, administrativo e organizativo suporte indireto - suporte ao nível macro, planeamento, elaboração de políticas e capacitação para autoridades de serviços descentralizados/governo local Despesas únicas para prestação de um novo serviço ou ampliação do serviço a novos utilizadores Despesas únicas para prestação de um novo serviço ou ampliação do serviço a novos utilizadores Despesas recorrentes para manutenção de um serviço existente ao nível pretendido Despesas únicas para prestação de um novo serviço ou ampliação do serviço a novos utilizadores suporte indireto suporte direto capital manutenção de capital exploração e manutenção menor Fonte: Fonseca et al., 2011. TABELA 1: FUNDAMENTOS DA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS SUSTENTÁVEIS* Profissionalização da gestão comunitária Reconhecimento e promoção de opções de prestadores de serviços alternativas Monitorização da prestação e sustentabilidade dos serviços Harmonização e coordenação Suporte aos prestadores de serviços Suporte de capacidade às autoridades dos serviços Aprendizagem e gestão adaptativa Gestão de ativos Regulamentação dos serviços rurais e prestadores de serviços Financiamento para cobrir todos os custos do ciclo de vida Fonte: IRC and Aguaconsult, 2011 As entidades de gestão comunitária apoiaram o abandono dos esquemas voluntários para se passar a adotar uma prestação de serviços mais profissional incorporada em quadros de política, jurídicos e regulamentares nacionais. Um leque de opções de gestão para além da gestão comunitária, como operadores privados de autoabastecimento e locais formalmente reconhecidos na política setorial e suportados. Monitorização de indicadores de acompanhamento dos sistemas da funcionalidade das infraestruturas, e níveis de serviço prestado face às normas e padrões acordados a nível nacional. Melhoria da harmonização e coordenação entre os doadores e o governo, e alinhamento de todos os fatores (governamentais e não governamentais) às políticas e sistemas nacionais. Sistema estruturado de suporte direto (posterior à construção) disponibilizado para salvaguardar e monitorizar as entidades de gestão comunitária e outros prestadores de serviços. Suporte de capacidade permanente prestado às autoridades dos serviços (normalmente, governos locais) para permitir que desempenhem a sua função (planeamento, monitorização, regulamentação, etc.) na sustentação de serviços de água rurais. Aprendizagem e gestão de conhecimentos suportadas a níveis nacionais e descentralizados para permitir que o setor se adapte com base na experiência. Planeamento sistemático, atualizações de inventários e previsões financeiras de ativos realizadas, assim como definição clara de quem detém os ativos. Regulamentação do serviço prestado e desempenho do prestador do serviço através de mecanismos adequados a pequenos operadores rurais. Os quadros financeiros são responsáveis pela totalidade dos custos do ciclo de vida, em especial, manutenção de capital principal, suporte às autoridades dos serviços e prestadores de serviços, monitorização e regulamentação.
RECOMENDAÇÕES Todos os países enfrentam circunstâncias únicas na prestação de serviços de água às populações rurais, que vão de questões técnicas relacionadas com a topografia ou condições climatéricas a desafios sociais, económicos e políticos relacionados com conflitos, escassez de recursos financeiros ou falta de vontade política. No que toca a recomendações, o contexto tem importância. No entanto, os países com os mesmos níveis de desenvolvimento e cobertura de abastecimento de água (aspetos que estão normalmente relacionados) partilham, de facto, os mesmos problemas e poderiam beneficiar de medidas comuns tendentes a melhorar os seus serviços de água rurais. Assim, o livro Supporting Rural Water Supply conclui com um conjunto de recomendações que visam países com níveis de cobertura baixos, médios e altos. Paralelamente, o livro identifica formas concretas como os doadores, ONG internacionais e outras entidades podem ajudar a dimensionar serviços de água sustentáveis. Países com níveis baixos de cobertura Os países com uma cobertura de abastecimento de água no intervalo de 30-50 %, como Moçambique e Etiópia, enfrentam ainda um excecional desafio em termos de infraestruturas. Embora se concentrem no aumento da cobertura, devem igualmente assentar as bases de um serviço sustentável através das seguintes medidas: Formalização do papel das organizações comunitárias na gestão da água e a sua relação com o governo local. Ênfase e início do investimento em suporte posterior à construções aos prestadores de serviços comunitários em aspetos como (re)capacitação e assistência técnica. Melhoria dos sistemas de monitorização para um enfoque na qualidade dos serviços prestados. Melhoria da coordenação e harmonização entre o governo nacional e os parceiros de desenvolvimento Países com níveis médios de cobertura Os países com uma cobertura de abastecimento de água no intervalo de 50-80 %, como Honduras, Colômbia, Gana, Uganda e Burkina Faso, enfrentam o desafio de prosseguir o aumento da cobertura e, ao mesmo tempo, proteger os avanços já alcançados na construção de funções de suporte, incentivando a participação do setor privado e implementando sistemas de monitorização e financiamento. Sem estas medidas, há o perigo de a cobertura estagnar no intervalo de 60-80 %. Entre as necessidades específicas, estão: Construir capacidade no setor, incluindo a instituição de mecanismos para profissionalizar a gestão comunitária. Esclarecer os quadros jurídicos e institucionais para a gestão de ativos e contratação delegada para possibilitar parcerias público-privadas. Reconhecer modelos alternativos à gestão comunitária; por exemplo, abastecedores privados em pequenas povoações, assim como autoabastecimento (onde as famílias desenvolvem o seu próprio abastecimento de água em grande parte, ou totalmente, a expensas suas) em zonas rurais dispersas. Construir capacidades entre o pessoal do governo descentralizado. Melhorar os mecanismos de desembolsos financeiros e financiamento conjunto. Monitorização da qualidade e sustentabilidade dos serviços. Países com níveis altos de cobertura Os países em que a cobertura ultrapassa os 80 %, como em certos estados indianos, Tailândia, Sri Lanka e Estados Unidos, o desafio é chegar a quem ainda não está servido, sendo, normalmente, as casas mais distantes e remotas, e, ao mesmo tempo, manter os serviços a quem já dispõe deles: Nestes casos, a prioridade deve ser: Gestão de ativos. Suporte de capacidades ao governo local. Criação de um ambiente de capacitação para o autoabastecimento. Melhoria da análise de custos do ciclo de vida e aplicação. Desenvolvimento de mecanismos financeiros para satisfazer os custos de manutenção de capital. Regulamentação da prestação de serviços e dos prestadores de serviços. Doadores e ONG internacionais Em última instância, os governos nacionais têm de assumir a liderança na adoção de uma abordagem de prestação de serviços, muito embora os doadores bilaterais e multilaterais e ONG internacionais possam constituir-se como parceiros efetivos neste processo. Para que a sua contribuição seja ótima, é necessário, todavia, que os doadores e as ONG alterem o tipo do suporte que prestam e abordem a questão que, historicamente, coartou o impacto do seu esforço. Por exemplo, os
doadores externos e as ONG, de grande e pequena dimensão, não costumam coordenar o seu esforço, quer uns com os outros quer com o governo nacional, o que leva a uma fragmentação e à perda de potenciais sinergias e economias de escala. Outro obstáculo é que, muito embora os doadores tenham incentivado a descentralização e a transferência da autoridade para os governos locais (apesar da sua capacidade limitada e escassez de recursos para realizar o trabalho), não suportaram de forma suficiente a construção de capacidades e instituições aos níveis local, intermédio e nacional para a realização do trabalho. Em vez disso, deram ênfase à construção de infraestruturas e colocaram expectativas irrealistas sobre a gestão comunitária voluntária dos sistemas. Finalmente, o seu horizonte temporal financeiro foi demasiado curto, com um enfoque nos investimentos de capital iniciais em vez do suporte dos custos integrais do ciclo de vida das infraestruturas, que inclui despesas recorrentes como custos de gestão e manutenções importantes das infraestruturas. A abordagem a estas insuficiências exige que os doadores e as ONG internacionais: Suportem a reforma e a construção de instituições relacionadas com a água rural no âmbito de uma estratégia coordenada, exaustiva e dirigida pelo governo. Entre as prioridades estão o desenvolvimento de uma política de água sólida e o esclarecimento das funções e responsabilidades institucionais; melhoria dos sistemas nacionais de monitorização e avaliação; e reforço dos sistemas reguladores e da capacidade dos reguladores. Apoiem a descentralização e a diversificação da prestação de serviços, eliminem progressivamente a influência das ONG enquanto prestadores principais de serviços e examinem, de forma crítica, o papel das ONG enquanto implementadores (e não entidades de emergências humanitárias). Entre as prioridades estão o suporte à capacitação dos governos locais e o estímulo e a profissionalização do envolvimento do setor privado na prestação de serviços. Abordem a bomba relógio dos custos do ciclo de vida não financiados. Entre as prioridades estão a avaliação de todos os fluxos financeiros esperados (tarifas ou taxas dos consumidores, impostos, transferência de auxílios, etc.) face aos custos do ciclo de vida (melhorias de capital, gestão, etc.) para garantir a existência de fundos para uma prestação de serviços sustentada; garantia de que o planeamento financeiro e a orçamentação se baseiam em evidências dos custos reais relacionados com a prestação de serviços; e ajuda aos governos na constituição e financiamento de mecanismos para um suporte permanente posterior à construção. Isto não significa que os doadores e as ONG devam necessariamente cobrir estes custos; pelo contrário, significa que é necessário esclarecer quem e como será feito.
Sobre o Triple-S A iniciativa Triple-S (Serviços Sustentáveis à Escala [ Sustainable Services at Scale, em inglês]) é dirigida pelo IRC e financiada pela Fundação Bill & Melinda Gates para abordar o problema da sustentabilidade dos serviços de água rurais. Para mais informações sobre a iniciativa Triple-S, consultar www.waterservicesthatlast. org Esta síntese baseia-se principalmente no livro Supporting rural water supply: Moving towards a service delivery approach de Harold Lockwood e Stef Smits, publicado pela Practical Action Publishing. Este livro pode ser transferido em http://www.waterservicesthatlast.org/ Resources/Multi-country-synthesis. Podem ser solicitadas cópias em papel junto da Development Bookshop no endereço http://developmentbookshop.com/ supporting-rural-water-supply.html an initiative of