Marcela Maria Tordin. Saúde Mental e Geração de Renda: Uma Experiência de Coletividade e Empoderamento



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Transcrição:

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS DEPARTAMENTO DE SAÚDE COLETIVA - FCM RESIDÊNCIA MULTIPROFISSIONAL EM SAÚDE MENAL Marcela Maria Tordin Saúde Mental e Geração de Renda: Uma Experiência de Coletividade e Empoderamento CAMPINAS 2015

Trajeto pela Saúde Mental de Campinas A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço. - Notas sobre a experiência e o saber de experiência (Jorge Larrosa Bondía). A Reforma Psiquiátrica propôs uma nova forma de cuidar dos sujeitos em sofrimento psíquico, criando vários equipamentos de assistência, os quais se interligam em uma rede de atenção psicossocial, dentro de um território. A clínica praticada é extremamente versátil, realizada de inúmeras maneiras, em diversos espaços, através de diferentes recursos. E é isso que me encanta! A partir da experiência como residente multiprofissional, conheci uma enfermaria psiquiátrica em hospital geral, passei por Caps III, realizei matriciamento em Centros de Saúde, participei de oficinas de geração de renda, e vivenciei os potentes encontros que acontecem no Centro de Convivência. Nesse percurso, passei por diversos serviços de saúde e de saúde mental, com o sentido comum de construir uma formação ampliada e diversificada. Certamente foram anos intensos, cheios de descobertas, dúvidas, desafios, e muito aprendizado. Escolher apenas um tema para escrever esse trabalho é uma tarefa difícil, mas acredito que através desse relato, seja possível interligar conceitos como Reabilitação Psicossocial, Geração de Renda, Empoderamento de Usuários e Cidadania, ideais tão valiosos para a Reforma Psiquiátrica.

Reabilitação Psicossocial e Geração de Renda Durante as últimas décadas, a Reforma Psiquiátrica vem criando alternativas para o modelo assistencial do tipo manicomial com tendência à exclusão e ao descaso. Sua proposta é um tratamento realizado a partir da Rede de Atenção Psicossocial, composta por serviços abertos, de base territorial, cujo objetivo é proporcionar acolhimento às pessoas com transtornos mentais graves, buscando a preservação de seus laços sociais, autonomia e reinserção na sociedade. Esse é um movimento de inclusão social, e não diz respeito apenas à organização de serviços de saúde e leis, mas também à mudança de conceitos sobre a questão da loucura. Amarante (2007) coloca que o ponto de partida é começar a pensar o campo da saúde mental e atenção psicossocial não como um modelo ou sistema fechado, mas sim como um processo social complexo. A construção da cidadania diz respeito a um processo social complexo, é preciso mudar mentalidades, mudar atitudes, mudar relações sociais, (...) construir um novo imaginário social em relação à loucura e aos sujeitos em sofrimento, que não seja de rejeição ou tolerância, mas de reciprocidade e solidariedade (AMARANTE, 2007 p.71). Dentro das diversas abordagens de atenção psicossocial, voltadas para uma nova forma de atenção à saúde, encontra-se a Reabilitação Psicossocial. O conceito de Reabilitação Psicossocial é amplo, e abrange indivíduo e sociedade, em um exercício de cidadania, ou seja, em um processo de restituição do poder contratual do usuário de saúde mental dentro da comunidade, visando ampliar sua autonomia (ANASTÁCIO & FURTADO, 2012 apud PITTA,1996). No modelo proposto por Saraceno (1999), o autor descreve a Reabilitação Psicossocial como um exercício de cidadania e contratualidade estabelecida em esferas distintas e complementares, sendo estas: o habitar (moradia), a rede social e o trabalho. O habitar é a apropriação sobre o espaço no qual se vive. A rede social compreende a participação do sujeito nas trocas de identidades sociais ou a invenção de lugares, nos quais essas trocas sejam possíveis. E, o trabalho é visto como fundamental para promover a articulação

do campo dos interesses, das necessidades e dos desejos (SARACENO,1999 p.111). Considerando que a parceria entre Saúde Mental e Trabalho esteve presente em toda história da psiquiatria e da atenção em saúde mental, Santiago e Yasuí (2010) retomam três teses centrais sobre as quais essa articulação foi se construindo, sendo elas: 1) O trabalho como instrumento de ocupação, evitando a ociosidade e restabelecendo à ordem para que as pessoas pudessem retornar à sociedade de forma produtiva; 2) O trabalho como prática curativa, a partir da prescrição médica; 3) O trabalho como estratégia de atenção, socialização e inserção social. No contexto da reabilitação psicossocial, o trabalho é concebido como um recurso para a produção e a troca de mercadorias e de afetos, não simplesmente como instrumento de combate ao ócio e laborterapia. Ao caracterizar o trabalho enquanto prática que integraliza e legitima socialmente os indivíduos, as oficinas de geração de renda na saúde mental se constituem com o objetivo de ofertar trabalho para pessoas em sofrimento psíquico, contribuindo para a construção efetiva de autonomia e criando possibilidades de trocas sociais e subjetivas. Lima (2004) ao tratar de genericamente sobre a temática das oficinas, coloca que: Nessa perspectiva, as oficinas como dispositivos para a Reabilitação Psicossocial, remetem à idéia de produção e desta para a idéia de produção de subjetividade. É nesses espaços que se engendram, se experimentam, se criam novas formas de se relacionar, novos espaços para existir, novos modos de ser (LIMA, 2004 p.10). Sendo assim, as atividades desenvolvidas nas oficinas transversalizam o trabalho clínico com a prática social, construindo significados coletivos para suas produções materiais, e possibilitando a inclusão do indivíduo em grupos e redes de interação social. As oficinas de trabalho na lógica da Reforma Psiquiátrica vêm ao encontro do que a Economia Solidária propõe, como aponta Paul Singer na

Cartilha do Ministério da Saúde sobre Saúde Mental e Economia Solidária (BRASIL, 2006): A economia solidária é, antes de qualquer coisa, uma opção ética, política e ideológica, que se torna prática quando os optantes encontram os de fato excluídos e juntos constroem empreendimentos produtivos, redes de trocas, instituições financeiras, escolas, entidades representativas, etc., que apontam para uma sociedade marcada pela solidariedade, da qual ninguém é excluído contra vontade (p.11). Na mesma Cartilha, Gabriel Delgado (BRASIL, 2006) discorre sobre a importância de construir com o mercado real, alternativas reais e concretas de inclusão das pessoas com transtorno mental, em vez de apenas aceitar que esse mercado real e essa sociedade concreta permaneçam com sua posição de exclusão do diferente. Caberia construir alternativas, de fato, de inclusão nesse cotidiano real de um mundo capitalista, de um mundo onde a inclusão social não é regra, onde a regra é a exclusão, fazendo isso de uma maneira pragmática, tenaz e permanente (p.18). Nessa perspectiva, é possível construir uma interface entre a saúde mental e a geração de renda englobando as dimensões do cuidar, criar, produzir e reabilitar.

Experiência na Oficina de Vitral Artesanal: Acompanhei a oficina de Vitral Artesanal do Núcleo de Oficinas e Trabalho (NOT - SSCF), sendo este um dos campos de atuação como residente, entre abril/2014 e fevereiro/2015. A oficina de Vitral Artesanal existe desde 1997, e teve origem a partir da demanda dos usuários que frequentavam outras oficinas, e buscavam uma atividade mais rentável. Passaram, então, a criar produtos para iluminação, como luminárias, abajures, lustres, arandelas, cachepôs para velas, entre outros artigos, utilizando como principal matéria prima o vidro. Atualmente, é composta por 1 coordenadora, 1 monitor e aproximadamente 18 oficineiros, usuários dos diversos serviços de saúde mental do município de Campinas (Centros de Saúde, CAPSIII, CAPSad). A confecção das peças é um processo complexo e minucioso, e o domínio da técnica para trabalhar com o vidro demanda treino, concentração e cuidado. Algumas das principais atividades desenvolvidas na oficina consistem em cortar o vidro, montar as peças a partir dos moldes, dar acabamento utilizando uma massa específica, fazer a instalação elétrica, limpar e embalar os produtos prontos, e garantir a organização do espaço comum. Além da produção, outro momento crucial para a rotina do Vitral é a roda de conversa que acontece semanalmente. Esse é um espaço bastante valorizado pelos oficineiros e pela equipe, conforme escrito pela própria coodenadora, Luiz (2012): Essas rodas, que acontecem à sombra de um belo pé de amora em frente à oficina, são os momentos mais importantes na construção da contratualidade social dos participantes, por se tratar de um espaço de troca, de tomada de decisões coletivas, exposição de diferentes opiniões e pontos de vista, resoluções de conflitos, e cada opinião é importante para a construção do coletivo o do papel de cidadão (LUIZ, 2012 p.67).

Nas rodas são compartilhadas todas as questões da oficina, seu funcionamento, resolução de conflitos do grupo, debate de estratégias para melhora do cotidiano, pedidos, o processo de trabalho, e um dos principais temas recorrentes: sua situação financeira. Há algum tempo, a oficina operava com saldo negativo, ou seja, o valor gasto com materiais e com a bolsa paga aos oficineiros era maior do que o lucro obtido a partir das vendas. Por se tratar de uma situação que trazia implicações para o grupo todo, essa questão passou a ser discutida na roda, com a finalidade de criar soluções conjuntas para o problema. A primeira ação coletiva foi tentar evitar o desperdício de materiais durante a confecção das peças. Uma atitude simples, porém pouco eficaz isolada de outras condutas. O próximo passo foi, depois de muito debate, diminuir o valor da bolsa, o qual varia de acordo com a função/estágio de aprendizado do oficineiro, e a frequência do mesmo. Em votação, a maioria concordou com a redução, visando à recuperação do saldo do caixa. No entanto, essa seria uma solução temporária, tornando necessária a criação de alternativas que visassem não somente a diminuição dos gastos, mas também o aumento das vendas, para além das parcerias já estabelecidas, loja Armazém das Oficinas e outros revendedores. E assim, o grupo começou a se organizar para ocupar outros espaços de comercialização, pensando na questão do protagonismo do usuário, além da implicação destes para o crescimento da oficina. A ideia que veio a se concretizar foi alugar uma barraca itinerante na feira de artesanato que acontece no Centro de Convivência do Cambuí aos sábados. Mas para isso, precisavam que alguém fosse registrado como artesão pela Sutaco (organização que regulamenta o desenvolvimento do artesanato no estado de São Paulo). Uma oficineira teve a iniciativa de obter a certificação, e apesar do medo e da insegurança, demonstrou seu ofício diante da Comissão Técnica que avalia o trabalho de acordo com normas estabelecidas, e foi aprovada. A partir daí, foi necessário entrar em contato com o responsável pelas barracas e se inscrever na lista de espera, planejar como iriam se dividir para estar na feira, pois esta acontece fora do horário normal de funcionamento da oficina, organizar o transporte dos produtos, pensar na remuneração, montar tabelas de preço, separar dinheiro para o

troco. Enfim, uma sequencia de atividades para pactuar com o grupo que estava disposto a desbravar esse novo espaço para a oficina, e, então, surgiu a Equipe de Vendas do Vitral. Durante a semana, na roda, já era definido quem iria para a feira, e quais peças seriam vendidas. No sábado, a rotina começava cedo, antes das 7 da manhã o oficineiro escalado já estava no Centro de Convivência para garantir a reserva da barraca, e aguardava a coordenadora chegar com os produtos. Em seguida a coordenadora ia embora, e a responsabilidade de organizar a exposição dos produtos, realizar as vendas, administrar o dinheiro, anotar no caderno todas as transações feitas, e as possíveis encomendas, passava a ser inteiramente do oficineiro. Alguns contratempos como falta de troco e problemas com a máquina de cartão de débito/crédio eram constantes, mas nesses momentos, os eles se articulavam e pediam ajuda para alguém da barraca ao lado, ou mesmo para próprio cliente. Normalmente, os oficineiros eram acolhidos de maneira solidária pela população, até o supervisor das barracas, que no início cobrava a presença de um responsável pelo grupo, de tanto ouvir nosso monitor está no banheiro, mas já volta! passou a confiar na equipe do Vitral. No início, interagiam pouco com as pessoas das barracas vizinhas, mas era só alguém se aproximar e demonstrar interesse pelos produtos, que já explicavam detalhadamente como as peças eram feitas, e mostravam o catálogo do Vitral com muito orgulho. Na medida em que o grupo se fortaleceu, outros oficineiros se voluntariaram para entrar na escala da feira, até mesmo alguns de outra oficina do NOT começaram a participar e expor seus produtos na barraca. Participei algumas vezes da feira junto com os oficineiros, esclarecendo que estava ali para observar, e dar algum apoio somente quando fosse extremamente necessário, ressaltando que os protagonistas do projeto eram eles. Pude ser testemunha do desenvolvimento do poder contratual desses oficineiros, conquistando habilidades de comunicação e socialização a partir das inúmeras trocas sociais que aconteciam naquele espaço. Enquanto ficávamos ali sentados, era comum o compartilhamento histórias e experiências, muitos relembravam os trabalhos que realizaram antes

de começarem a fazer tratamento, como entraram na oficina, e o que mudou em suas vidas desde então. Também conversávamos sobre a divulgação produtos, diferentes estratégias de vendas, como abordar os clientes, uma vez que cada um tinha sua maneira de estar naquele espaço. E o que era vivenciado ali voltava para a roda na semana seguinte em forma de relato, crítica ou sugestão. Em meados de novembro o grupo decidiu suspender temporariamente as idas à feira de artesanato. Depois de tantos esforços, consideraram que os ganhos objetivos financeiros não atingiram as expectativas. No entanto, avaliaram positivamente o projeto em relação à produção de responsabilização, protagonismo, autonomia e subjetividade, compreendendo essa experiência como uma ressignificação do lugar social que ocupam.

Empoderamento: um processo construído de dentro para fora da Oficina Construir um novo lugar para a loucura não deve restringir-se aos limites da saúde, mas estar atrelado também à invenção de novos espaços e formas de sociabilidade e de participação do usuário de saúde mental. Nesse caso, os oficineiros, atuaram de forma engajada na organização do seu espaço de tratamento e trabalho, uma potente estratégia de empoderamento. Na saúde mental, o conceito de empoderamento é tido como o fortalecimento do poder, participação e organização dos usuários no âmbito do cuidado nos serviços substitutivos e também nas estratégias de defesa de direitos e no exercício do controle e da militância social. O empoderamento parte de uma construção recente no campo da saúde mental e da Reforma Psiquiátrica, mas está atrelado a noções de distintos campos do conhecimento, tendo suas raízes nas lutas pelos direitos civis e sociais, a partir dos movimentos sociais populares da segunda metade do século XX (ALVES; OLIVEIRA; VASCONCELOS, 2013). Vasconcelos (2013) sugere uma aproximação do conceito na direção do aumento do poder e autonomia, pessoal e coletiva, de indivíduos e grupos sociais nas relações interpessoais e institutionais. Portanto, o projeto da oficina de Vitral pode ser compreendido como uma ação articulada à reinserção social e ao exercício da cidadania. Isso porque sua proposta extrapola o espaço da oficina e da própria instituição a qual está vinculada, e realmente adentra na comunidade, aplicando concretamente todo o potencial objetivo e subjetivo que foi desenvolvido no espaço protegido da oficina. Carvalho (2004) também discorre sobre o empoderamento, o caracterizando como: a possibilidade de que indivíduos e coletivos venham a desenvolver competências para participar da vida em sociedade, o que inclui habilidades, mas também um pensamento reflexivo que qualifique a ação política (CARVALHO, 2004 p.1092).

A apropriação desse conceito no contexto brasileiro permite identificar diferentes níveis de práticas e estratégias de empoderamento em saúde mental: o cuidado de si, a ajuda mútua, o suporte mútuo, a transformação da cultura difusa em relação ao transtorno mental na sociedade, a defesa de direitos, a militância social e política (VASCONCELOS, 2013). Nesse sentido, legitimar a presença do usuário/oficineiro em um espaço comunitário de trocas, de forma autônoma e independente, vai de encontro à ideia do empoderamento como mudança em direção a uma maior igualdade nas relações sociais de poder. Considerando que o empoderamento emerge das práticas de coletivização, as quais permitem ao sujeito sair da compreensão individualista para considerar o grupo, a roda de conversa da oficina é um dispositivo essencial para seu desenvolvimento. Pois, a partir dela, os oficineiros são constantemente estimulados a construir pactuações coletivamente e desempenhar uma gestão democrática e participativa da oficina, seguindo os moldes do cooperativismo. A autogestão, segundo os princípios das cooperativas, exige um esforço adicional dos trabalhadores, pois além de cumprir as tarefas a seu cargo, cada um também tem de se preocupar com os problemas gerais do grupo. Singer (2002) coloca que o maior inimigo da autogestão é o desinteresse dos sócios, e sua recusa ao esforço adicional que a prática democrática exige. As intervenções dos profissionais (coordenadora e monitor) durante a roda auxiliam na construção de contratos, compartilhando as informações e as técnicas, e clarificando os papéis de cada um naquele espaço. Esse poder compartilhado proporciona e reforça a autonomia dos oficineiros/usuários, desenvolvendo a participação, a conscientização e a humanização, tanto do projeto da oficina quanto do tratamento que é ali desenvolvido. Alves, Oliveira e Vasconcelos (2013) fazem a seguinte colocação: Podemos verificar que, na definição de empoderamento como autonomia, responsabilização e participação dos sujeitos nas tomadas de decisões, configuramos um indivíduo que não se mantém refém de determinações únicas, que é capaz de estabelecer relações pessoais e

sociais em diversos lugares, diversos contextos e, muitas vezes, ser protagonista destas, montando redes potentes de cuidado (ALVES, OLIVEIRA & VASCONCELOS, 2013 p.63). Ao colocar o foco nas mudanças e no fortalecimento de grupos e indivíduos, os dispositivos de empoderamento em saúde mental tornam-se instrumentos importantes para a Reabilitação Psicossocial. Isso, somado ao trabalho como geração de renda, geração de capacidades, que gera liberdade, que gera desenvolvimento pessoal e social, a partir de responsabilização coletiva e não apenas individual (SEN, 2000 apud SANTIAGO; YASUÍ, 2010).

Considerações Finais A potência das oficinas de geração de renda como dispositivos terapêuticos na saúde mental já é legitimada nas produções clínicas e acadêmicas. No entanto, a partir desse relato, procurei demonstrar que quando essas práticas avançam para dentro do território, garantindo o aumento da participação social do usuário de saúde mental/oficineiro, os ganhos subjetivos são imensuráveis. Pois, projetos assim tem a finalidade de combater a passividade e a cristalização de uma rotina de produção, levando o usuário a ser protagonista do seu processo de reabilitação psicossocial. Considerando o projeto da feira, desenvolvido pela Oficina de Vitral Artesanal, é possível refletir que quando o usuário se refere apenas à sua experiência individual, o trabalho assume um caráter terapêutico. Porém, quando se refere à experiência do sujeito dentro de um coletivo com o qual compartilha construções, o significado do trabalho também passa a ser articulado com o mundo social, através do qual torna-se possível exercer e conquistar a cidadania, em uma experiência de empoderamento. Sendo assim, a geração de renda pode significar uma ruptura da exclusão promovida pela loucura, e a construção de outra condição existencial para os sujeitos em sofrimento psíquico.

Referências Bibliográficas ALVES, T.C.; OLIVEIRA, W.F.; VASCONCELOS, E.M. A visão dos usuários, familiares e profissionais acerca do empoderamento em saúde mental. Physis Revista de Saúde Coletiva 23(1), 51-71, 2013. AMARANTE, P. Saúde Mental e Atenção Psicossocial. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2007. ANASTÁCIO, C.C; FURTADO J.P. Reabilitação Psicossocial e Recovery: Conceitos e influências nos serviços oferecidos pelo sistema de saúde mental. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental, Florianópolis, v.4, n.9, p. 72-83, 2012. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Saúde Mental e Economia Solidária: inclusão social pelo trabalho. Brasília: Editora do Ministério de Saúde, 2006. CARVALHO, S.R. Os múltiplos sentidos da categoria empowerment no projeto de promoção à saúde. Cad. Saúde Publica, v.20, n.4, p.1088-95, 2004. LIMA, E.A. Oficinas, Laboratórios, Ateliês, Grupos de Atividades: Dispositivos para uma clínica atravessada pela criação. In.: Oficinas terapêuticas em saúde mental: sujeito, produção e cidadania. Costa, C.M.; Figueiredo, A.C. (orgs.). Rio de Janeiro: Contra Capa, 59-81, 2004. LUIZ, C.C.A., CARNEVALLI M.E.C. Oficina de Vitral: construindo a trajetória com rodas, causos e histórias. In: Armazém das Oficinas: um olhar para além da produção. Rimoli, J.; Cayres, C.O. (orgs.) Campinas-SP: Editora Medita, 2012. PITTA, A. O que é a reabilitação Psicossocial no Brasil, hoje? In: PITTA, A. (org.). Reabilitação psicossocial no Brasil. São Paulo: Hucitec, p.19-26, 1996. SANTIAGO, E., YASUÍ, S. O trabalho como dispositivo de atenção em saúde mental: trajetória histórica e reflexões sobre sua atual utilização. Revista de Psicologia da UNESP 10(1), 195-210, 2010. SARACENO, B. Libertando identidades: da reabilitação psicossocial à cidadania possível. Rio de Janeiro: Te Corá/Instituto Franco Basaglia, 1999. SEN, A. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. SINGER, P. Introdução à Economia Solidária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2002. VASCONCELOS, EM. Conceitos básicos para se entender as propostas e estratégias de empoderamento em saúde mental. In: Vasconcelos, E.M. (org). Manual [de] ajuda e suporte mútuos em saúde mental: para facilitadores, trabalhadores e profissionais de saúde e saúde mental. Rio de Janeiro: Escola do Serviço Social da UFRJ; Brasília: Ministério da Saúde, Fundo Nacional de Saúde, 2013.