Trans-Imagens. Antônio Fatorelli

Documentos relacionados
A estética de Hegel. Antonio Rodrigues Belon

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS CURSO DE ARTES VISUAIS. FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO UL


NÃO DIGA MEU NOME devaneios de proximidade

BEM-VINDO AO ESPAÇO DO PROFESSOR. interação e inter-relação que esperamos potencializar.

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS CURSO DE ARTES VISUAIS. FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO UL

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

LONGE. ESTADO INDEFINIDO Lela Martorano

InSolitus Urbanus: e s p a ç o s m e t a f í s i c o s

Disciplina de Desenho A do Décimo primeiro ano de escolaridade

Passagem de imagens 1

Protagonismo investigativo: (re) leituras socioambientais por meio de lentes fotográficas em seus múltiplos sentidos.

Por que as comunicações e as artes estão convergindo?

A sua obra, maioritariamente em fotografia e vídeo, tem um grande carácter subjetivo e é bastante marcada por referências literárias e históricas.

A cultura digital é a cultura da contemporaneidade.

ARTISTAS EM RESIDÊNCIA

o fotógrafo. São instantes memoráveis do cotidiano, registros de momentos alegres, guardados para a posteridade: casamentos, refeições em família, fér

6 Terceiro experimento

Obturador. o obturador de cortina mostrado em detalhes.

Mostra Fotográfica: Olhares 1. Ricardo da Silva MAGALHÃES 2 Maria da Conceição Lopes 3 Faculdade Atual da Amazônia, Boa Vista, RR

ENSAIO Área Temática: Educação Visual, Linguagens Visuais e Arte

3º p. 144 Orlando, Virginia Woolf C736d = 690

Material de apoio. Por Chris Dornellas.

Engenharia de Faixa de Dutos Terrestres

Figura Nº 66. Figura Nº 68. Figura Nº 67

Está aí pensou Alice já vi muitos gatos sem sorriso. Mas sorriso sem gato! É a coisa mais curiosa que já vi na minha vida. 162

Mulheres. Código ProAC: 24727

O ARRÍTMICO DELÍRIO DO SILÊNCIO ou A ACIDÊNCIA DO AGORA

Paisagem transitória espaço fugaz

Meu Mundo Teu. Alexandre Sequeira 1. Meu Mundo Teu

Contacto: PROJETO Territórios, Paisagens e Vivências Ver o mundo através da lente do fotógrafo. Regulamento. 1. Âmbito do Concurso

Ketchup: Fotografia Publicitária 1

O JOGO DA PINTURA Wagner Barja 1

Radiômetros imageadores

Plano de aulas. Curso Referencial UM e DOIS

PROGRAMA DA PÓS-GRADUAÇÃO. Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho Franca. Foucault, a história e os modos de subjetivação no Ocidente

Apresentação e Aplicações de Óptica Geométrica (ENEM/UERJ)

Outro aspecto que vale destacar é o modo como as imagens são feitas. Modos de fazer, determinam categorias específicas, independente de se parecerem

Análise de discursos textuais: questões

TEORIA DO DESIGN. Aula 03 Composição e a História da arte. Prof.: Léo Diaz

Uma Janela para a alma: a fotografia de Michele Angelillo

Medos, Sociabilidade e Emoções.

3.3.3 As imagens de Alexandre França

Atuar com fotografia, audiovisual, educação e/ou jornalismo, em busca de novos aprendizados, técnicas e experiências

Composição fotográfica é a seleção e os arranjos agradáveis dos assuntos dentro da área a ser fotografada.

O que é Fotogrametria?

II ENCONTRO "OUVINDO COISAS: EXPERIMENTAÇÕES SOB A ÓTICA DO IMAGINÁRIO"

Planificação Desenho A 11º Ano

O som de uma infância desaparecendo 1. Fernando Luiz FAVERO 2 Maria Zaclis VEIGA 3 Universidade Positivo, Curitiba, PR

Resenha do livro A Câmara Clara, de Roland Barthes

DESENHO PARA QUE E COMO?


Planos e Ângulos Prof. Dr. Isaac A. Camargo

Fotografias Gustavo Takatori Tiago Santana Marcos Sêmola Entrevista Tiago Santana.

INTRODUÇÃO À FOTOGRAFIA O Equipamento Fotográfico. PROFESSOR JORGE FELZ

Liberte-se: um exercício usando a técnica alternativa do fotograma 1

Processo criativo na fotografia

INTRODUÇÃO CONCURSO DE PINTURA NORMAS ORIENTADORAS I. OBJETIVOS. a) Promover e divulgar o Património Cultural, nas suas diversas configurações;

História e Sistema de Arte

DANILO ARNALDO BRISKIEVICZ LINHA DO TEMPO. Fotografias P&B / Belo Horizonte

Exposição Almandrade INSTALAÇÃO E POEMAS VISUAIS

- Gostava de falar da tua dinâmica de criador e da tua dinâmica de gestor de uma organização como as Oficinas do Convento. Como as equilibras?

Exercício do Olhar. Luz 25/08/ Luz

A ciência deveria valorizar a pesquisa experimental, visando proporcionar resultados objetivos para o homem.

Exercício do Olhar. Luz 10/09/ Luz

Brincando de Sonhar¹

Fotografando com um SRL Digital

ANEXO I. QUADRO DE OFICINAS INTEGRANTES DOS PROGRAMAS DE FORMAÇÃO ARTÍSTICA DO CUCA (COM EMENTAS) Categoria I

Como é que um filho que é artista se pode aproximar

Multi Forme. Natascha Lohraine de Oliveira Silva dos SANTOS. Leandro Pimentel ABREU. Universidade Federal do Rio de Janeiro, RJ

Marcas: Sem Nome PAULO LIMA BUENOZ

ENSAIOS SOBRE LITERATURA

SANTAELLA, L. Por que as comunicações e as artes estão convergindo? São Paulo: Paulus, 2005.

Programa de Formação Básica Ano letivo Cursos com inscrições abertas

Desenvolvimento das habilidades docentes no ensino da fotografia III

À guisa de pórtico. Neles ecoam ainda as palavras de Fernando Pessoa: «A busca de quem somos / na distância de nós.»

Fotografia entre confronto e arte

Parte II. A fotografia nos arquivos: etapas de trabalho, processos de significação

O significado público da Obra de Arte: A natureza do gênio. Da Cunha, E. Murari, Da

HENRY, Michel. Ver o invisível: Sobre Kandinsky. São Paulo: Realizações, 2012.

Definição: ( PÉRES, 2006)

Exercício do Olhar. Paulo Scarazzato Prof. Dr. CAU, IAB, ANTAC, IESNA, CIE, SLL

várius expõem catálogo 4 a 30 de abril carlos SANTANA antónio FONSECA herlander GOMES rodrigo VARGAS

ESCOLA ARTÍSTICA SOARES DOS REIS DISCIPLINA DE IMAGEM E SOM B - 12º Ano Ano lectivo 2011 / 2012 : Nuno Lacerda PLANIFICAÇÃO ANUAL

ALVAIÁZERE CAPITAL DO CHÍCHARO Maratona fotográfica

Abra os seus olhos. Descubra lugares e coisas que ama com cada foto que faz! PLANOS DE AULAS

UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI

ESTESIA E CINESTESIA

Da fotografia à pintura A construção do olhar a partir de um imagético processual lírico

LITERÁRIOS. Soneto, ode, etc. Lírica. POESIA Épica. Poema, poemeto, epopéia... Conto, novela, romance. PROSA

Introdução: Entendendo a distância focal

DAVID HUME ( )

ESTÉTICA e ARTE 10/02/2017 1

AGENDA NOVEMBRO /QUINTA

VI Encontro Ouvindo Coisas - Das crianças imaginadas, às vozes das infâncias

O Espectador Emancipado Jacques Rancière

Júlio Diniz (Poesia Sempre)

Transcrição:

Trans-Imagens Antônio Fatorelli 188

Paisagens invisíveis Rogério Luz O século XVIII, no Ocidente europeu, inventou uma disciplina: a estética. A partir daí, o domínio da sensibilidade é objeto de um discurso não apenas normativo artesanal ou técnico mas filosófico. O sensível aparece como irredutível às outras ordens da razão. A arte poderá resistir a essa encampação? A invenção do estético, acompanhada da criação da história e da crítica de arte, precede e prepara a revolução nos circuitos da produção de imagem e cria esse objeto chamado sujeito sensível. Nossa sensibilidade é, portanto, destino histórico. A fotografia emerge dos desdobramentos desse contexto. Há quase dois séculos, ela veio abrir uma dimensão inesperada em nossas relações de espaço e tempo. Arte ou técnica? Registro ou invenção? Ficção ou realidade? Dilemas que a fotografia terminou por abandonar, arrebatada pela paixão de imagens novas. Hoje, desfez-se sob a pressão dos complexos processos de gestão do sensível presentes na sociedade contemporânea e da tarefa que, nessa circunstância histórica, incumbe à arte a fronteira entre gêneros (artes gráficas e plásticas, fotografia, cinematografia, vídeografia, infografia). Grafias portanto, escritas pelas quais busca inscrever-se um mutante corpo de sensações. Ora, desde seu surgimento, a fotografia uma escrita da luz e com a luz, dependente tecnicamente do espaço perspéctico da camera obscura transformou os pressupostos mesmos daquele espaço. Com isso, radicalizou-os e terminou por contrapor-se à produção de um mundo centrado e unificado, mundo mimético das analogias e das semelhanças. O que torna possível a emergência de um sujeito fotográfico não é a reprodução de formas historicamente naturalizadas, mas o registro de uma vizinhança imaginária e em princípio aleatória, que faz surgir uma nova figura do momento e do lugar. Na fotografia, o sujeito resulta da conexão entre um aparato tecnológico, produtor de olhar, e um instante qualquer em que a imagem real ou virtual se manifesta em um espaço sem raiz, no distanciamento de uma duração contida. Essa é uma das maneiras de a fotografia pensar a realidade e processar um sujeito para a realidade. As imagens de Antonio Fatorelli surgem do clássico procedimento da ampliação, a que a tecnologia do computador na busca do acidente de imagem empresta a potência de um delírio. Figuras da distância, elas se encobrem sem profundidade na superfície mesma do plano. O irreconhecível, que contorna a dicotomia do visível e do invisível, avança até nós sob um disfarce impenetrável ao ECO-PÓS- v.9, n.1, janeiro-julho 2006, pp.188-197 189

projeto de estetização do quotidiano ou de testemunho de verdade. Uma coisa qualquer, perdida e indiferenciada, habita um presente que não foi vivido nem é lembrança: a imagem começa a surgir do mais remoto, toma o nosso olhar de passagem e o arrasta para arrabaldes de sentimento. Dessa maneira, ela traça do longínquo a veloz passagem casual, que leva o pensamento a se pensar, na visão, como divagação, partida, ausência e finalmente inércia Como as coisas, com as coisas, o pensamento passa e estaciona em algum lugar inassinável, de onde então pode reunir forças para um recomeço. Os vultos se põem a caminho sem passado nem futuro. Fragmentos ou pormenores, o que sobra da coisa em vias de desaparecer é recolhido como resíduo material, rebelde a distinções entre sujeito e objeto, natureza e máquina. Tal, por exemplo, o ciclista ignorado pelo foco da lente e pela exigência de composição do quadro, em sua imobilidade apressada e difusa. Este ciclista inscreve-se em uma camada temporal situada além das fronteiras do humanismo fotográfico, seja ele documental ou formalista. Destroços da matéria de imagem, portanto. Acasos do tempo e lapsos de um espaço que se faz sem limite são convocados, pelo fotógrafo, a se manifestar. Menos uma arqueologia do que uma espeleologia do urbano: cavernas de olhos obscuros, na superfície mesma das cidades, provisoriamente iluminadas, abrem-se ao sentimento do estranho. Estas fotos não contam uma história, nem mesmo apenas esboçada, nem estabelecem, entre o autor e o espectador, um vínculo expositivo. Nessa escrita de sombra, Fatorelli exerce doce violência sobre percursos anônimos, que correm, célere ou morosamente (é impossível decidir) para o silêncio: ele resolve invocá-los do fundo indiferenciado de momentos que não são nossos e aos quais somente a tecnologia, a serviço da arte, pode aceder. Duplos de uma origem que sempre escapa, tais figuras, no limite oscilante entre o que se ensombrece e o que se ilumina, prometem uma nova temporalidade em suspenso, resultante da mistura insólita de pensamento e extensão. Para tanto, elas solicitam de nós o retraimento que lhes permita acontecer. O mapeamento curioso da superfície neutra da tela digital não é, porém, desencantado: o fotógrafo cuida desses seres fugidios, ampara sua fragilidade, celebra, à sua maneira, a alegria indiferente dos começos. Artista que ensina e pesquisa a história e a teoria da fotografia, Antonio Fatorelli encontra nessas atividades a matéria-prima de uma busca mais fundamental, anterior ao discurso e ao conceito: a de uma imagem de pensamento que agencia e contrapõe, de modo singular, as demandas atuais, mesmo trágicas, de nossa condição sensível. 190 Antônio Fatorelli Trans-Imagens

ECO-PÓS- v.9, n.1, janeiro-julho 2006, pp.188-197 191

192 Antônio Fatorelli Trans-Imagens

ECO-PÓS- v.9, n.1, janeiro-julho 2006, pp.188-197 193

194 Antônio Fatorelli Trans-Imagens

ECO-PÓS- v.9, n.1, janeiro-julho 2006, pp.188-197 195

196 Antônio Fatorelli Trans-Imagens

ANTONIO FATORELLI é fotógrafo, doutor em Comunicação e professor da Escola de Comunicação da UFRJ. ROGÉRIO LUZ é professor, poeta e artista plástico. Publicou recentemente Filme e subjetividade (Ensaios, 2002), Diverso entre contrários (Poesia, 2004) e Correio sentimental (Poesia, 2006). O prêmio Casa de Rui Barbosa 2005 concedeu-lhe menção honrosa pelo trabalho Cornelio Penna, uma leitura a menos. ECO-PÓS- v.9, n.1, janeiro-julho 2006, pp.188-197 197