EDUCAÇÃO E EMANCIPAÇÃO a libertação das crianças sob o olhar da filosofia política



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Transcrição:

EDUCAÇÃO E EMANCIPAÇÃO a libertação das crianças sob o olhar da filosofia política Suzana Guerra Albornoz 1 UNISC INTRODUÇÃO Quando os profissionais da educação se reúnem em torno do tema PESQUISA E INSERÇÃO SOCIAL, como nesta ocasião, expressam uma evidente preocupação científica, mas esta possui também uma clara dimensão ética e, além disto, uma importante conotação política. As pesquisas que se desenvolvem sobre as questões da inserção social distribuem-se generosamente pelos domínios das ciências biológicas da saúde, física e mental, bem como dos estudos sociais aplicados, variados como a administração, a economia, o serviço social, o direito, e o das ciências humanas e sociais, ou seja, a história, a sociologia, a antropologia cultural e assim, atingem muito especialmente o domínio da educação, que é o foco comum dos que se reúnem neste Encontro. Portanto, suponho que muitos dos colegas aqui presentes farão suas comunicações relatando a riqueza das pesquisas científicas que se vêm fazendo no Brasil, pesquisas de cunho empírico ou teórico e com as diversas metodologias que a ciência autoriza, sejam qualitativos, quantitativos ou mistos, mesmo inovadores, e levando a interpretações igualmente inovadoras, introduzindo no debate dados que informam e surpreendem, e assim contribuirão para o aperfeiçoamento das práticas educativas. Tais enriquecimentos das ciências humanas a serviço da educação possuem o mérito de estarem preocupados com e de contribuir efetivamente para o bem-estar daqueles que precisam de mais atenção dos educadores, dos socialmente menos bem situados. Portanto, estas pesquisas contam com todo o meu respeito e apoio, e meu reconhecimento de seu acerto moral e político. Meu constrangimento inicial, pois, minha perplexidade ao começar a preparar esta fala, deve-se a que não disponho propriamente de uma pesquisa a comunicar sobre 1 Doutora em Filosofia pela UFMG e Professora do Mestrado em Educação da UNISC.

2 nenhum dos objetos de estudo relevantes que farão a riqueza desta semana de debates, relativos à realidade dos grupos tradicionalmente marginalizados no Brasil: às camadas sociais tradicionalmente mais exploradas e desfavorecidas economicamente em nosso sistema, como operários de chão de fábrica, da construção, trabalhadores braçais, urbanos e rurais, servidores domésticos ou da limpeza pública; relativos aos grupos étnicos minoritários ou bem, até mais ou menos tempo, historicamente não reconhecidos como aptos para a liberdade e para a participação política, tais como o têm sido os descendentes de nossos primeiros habitantes indígenas e os nossos concidadãos de descendência africana; ou relativos a outras formas de exclusão social, como a possivelmente sofrida por grupos imigrantes mais recentes, pelos grupos de indivíduos diferentes ou deficientes, fisica ou psicologicamente, ou por aqueles, não poucos, marcados pelo sistema prisional. É, pois, com a consciência de carecer de resultados concretos de pesquisa de caráter empírico; e não querendo tampouco afetar uma pesquisa livresca que ameace desviar a atenção da tessitura vivencial de problemas tão relevantes e complexos. Ainda assim, com a esperança de contribuir para maior clareza da compreensão dos problemas envolvidos e para o encaminhamento de soluções, como uma introdução para o debate coletivo, peço licença para apresentar aqui duas considerações: (1) uma dúvida de conceito, em torno do movimento de ligação e contraposição entre a busca da inserção social e o ideal da emancipação humana, coletiva e individual; (2) um breve registro sobre o que se pode chamar a libertação das crianças, a partir da filosofia política e apoiada em pesquisas de caráter histórico. Procurarei apresentar uma nova interpretação, quem sabe, ainda menos conhecida entre nós, da realidade das crianças, que são, sem dúvida, o objeto principal da prática dos educadores e, por outro lado, parecem estar-se constituindo hoje em dia, mundialmente, num grupo em rebelião, no front da mudança, do movimento pela inserção e a emancipação social. POR QUE DIZER INSERÇÃO E NÃO EMANCIPAÇÃO OU LIBERTAÇÃO? Parece-me evidente que existe um conjunto de noções, valores, convicções, também no terreno do latente e do não dito, quando se chega a uma formulação como inserção social. Talvez minha estranheza tenha origem já numa distância de época e se

3 deva à diferença de linguagem entre gerações, sendo que o que se chamava emancipação na linguagem moderna até meados do século XX, pareceria mais sensato e realista hoje dizer como inserção social. Isto é o que proponho que voltemos a considerar com atenção. Quando se coloca como pressuposta a meta da inserção social, está-se, em primeiro lugar, afirmando uma idéia de homem, como ser social que deve e só se realiza ao se inserir como indivíduo ativo numa comunidade, como cidadão reconhecido numa cidade, como sujeito de direitos num estado, numa nação. Essa é uma pressuposição correta, que corresponde ao conceito de homem e de cidadão que se construiu em toda a história do pensamento sobre o homem e que se tem afirmado também na modernidade, não se deixando esquecer facilmente. Por outro lado, ao falar em inserção social, ao mesmo tempo, no entanto, parece-me que também vem pressuposta, como que insinuada, a aceitação de que o todo social em que nos situamos é dado como algo no qual vale a pena ser-se inserido e, quem sabe, seja o único possível para o indivíduo-cidadão em consideração. Este pressuposto, se real, não é sem problema e merece ser meditado com mais vagar. Se com a educação e a pesquisa na educação se tivesse em vista realizar a inserção social como adaptação ao sistema atual em que nos encontramos, com todas as suas benesses inegáveis e dinamismos contraditórios, ou seja, no sistema competitivo da sociedade de consumo do capitalismo tardio, sem se abrir a possibilidade para pensar o que significa essa adaptação, mesmo em sacrifício de forças humanas físicas e espirituais, é bem questionável esta meta que, sem dúvida, vista sob o prisma do pressuposto anterior, da compreensão do ser humano como alguém que só se realiza em sociedade, parecia bem fundamentada. No termo libertação ou emancipação se mantém uma conotação de ultrapassagem de limites, de superação de dominações, de quebra de grilhões de escravos, que não aparece mais no modo de expressão, digamos, mais positivo, de inserção social. Neste sentido, pareceria haver uma diminuição de alcance e um empobrecimento da finalidade da educação, bem como do seu serviço pela pesquisa, quando se passa da forma de expressão libertação ou emancipação para a de inserção ou inclusão social.

4 Embora no nível menos exato do nosso pensamento, pela intuição já podemos perceber as diferenças. Quem liberta ou se liberta luta contra uma realidade ou uma lei que domina, coloniza, invade, sem contemplação do direito do outro, o dominado. Quem emancipa ou se emancipa reconhece no emancipado seu pleno direito de autonomia, sua capacidade de dirigir-se pela ponderação e escolha próprias. Quem se insere socialmente, não sabemos se o faz apenas por impulso de sobrevivência e necessidade, logo, quem sabe mesmo, por obediência e submissão, ou se sua vontade livre está implicada e presente. Há alguns honrosos exemplos de filósofos, cuja posição levamos muito a sério, e que se manifestaram contra as definições muito estritas; nesse sentido, não me sinto motivada a confrontar estritamente as definições de inserção e inclusão com as de emancipação e libertação, e me parece mais inspirador buscar unir uma constelação 2 de conceitos e aprender a combiná-los de modo harmonioso, de modo que possam iluminar nossa reflexão sobre as coisas, os fatos, os fenômenos, as experiências, assim como uma noite estrelada pode iluminar a visão na ausência do sol. E nesse sentido, podemos ver que na constelação conceitual de emancipação se encontram os conceitos de autonomia e de liberdade, mais ligados à filosofia prática do que às ciências sociais, tanto à ética como à filosofia política. Estas são apenas pequenas sugestões introdutórias para a continuação das pesquisas e para o fazer concreto dos trabalhadores da educação. A LIBERTAÇÃO DAS CRIANÇAS UM TEMA DE FILOSOFIA POLÍTICA A libertação das crianças, ou sua atual reivindicação de maior autonomia e pouca disposição para a obediência, pode parecer lugar-comum da reflexão pedagógica contemporânea, ou mesmo ser entendida como uma queixa geral dos responsáveis pela educação, na família como na escola. Para superar as reflexões ingênuas e observações simplificadoras, pensamos ser recomendável considerar o fenômeno, que dá muito que falar e desperta a opinião pública, provocando a manifestação de pessoas com os mais diversos pontos de vista, à luz das pesquisas mais que se valem da erudição como das 2 Lanço mão da metáfora atribuída a Theodor Adorno, da constelação de conceitos.

5 ciências históricas, especialmente da historiografia. Os estudos de história, mesmo depois dos primeiros tempos da modernidade e até o século XIX, detinham-se mais nos eventos da vida política em seu sentido estrito, consistindo em relatos das ações, decisões e façanhas dos homens de governo, reis e príncipes, expedições, guerras, revoluções. É especialmente com a tradição de pesquisa que se formou no grupo de historiadores ligados à Escola dos Anais, na França, quando se concentrou a lente do pesquisador também sobre o âmbito até então quase invisível da vida privada, dos eventos do cotidiano, os costumes e as experiências de longa duração. Posto no interior do doméstico, da vida das famílias, no interior da economia em seu detalhe mais próximo da experiência individual, o esforço pedagógico, como a representação social das crianças e sua história real, tornam-se recém no último século objetos de pesquisa sistematizada, esta que tem a capacidade de fazer revisar os preconceitos e provar as crenças que costumam idealizar o passado em detrimento do presente. Considerando as muitas e variadas investigações que se têm realizado nos últimos tempos sobre a história da infância, desde Phillipe Ariès 3, e sobretudo no universo da produção francesa, o filósofo Alain Renaut, 4 em sua obra A libertação das crianças 5, nos oferece uma instigante interpretação da atual crise da educação, pela consideração das mudanças operadas nas relações entre adultos e crianças nas famílias transformadas nos últimos tempos, no decorrer da afirmação dos ideais modernos de liberdade e de igualdade. A interpretação do referido autor se movimenta no âmbito filosófico e se apóia sobre o ponto de vista da filosofia política, recorrendo como base para suas considerações à pesquisa historiográfica sobre a infância, que tem sido pródiga no domínio da disciplina inaugurada por Ariès e que interessaria autores diversos, como, mesmo, Michel Foucault, no outro extremo da palheta da orientação político-ideológica. A epígrafe que introduz o livro de Alain Renaut é uma citação de Alexis Tocqueville, que me parece ainda hoje muito pertinente: 3 Principalmente em seu livro de 1960: A criança e a vida familiar sob o Antigo Regime, antecipado pelo ensaio A criança na família, de 1948, in: História das populações francesas e de suas atitudes diante da vida depois do séc.xvii, Paris, Self. 4 Alain Renaut é professor na Universidade Paris-IV Sorbonne e autor de numerosas obras, escritas em colaboração com Luc Ferry, havendo publicado, especialmente, A era do indivíduo (Gallimard, 1989) e tendo dirigido a História da filosofia política(calmann- Lévy, 1989) 5 A libertação das crianças. Contribuição filosófica a uma história da infância. Paris: Hachette, 2003; Calmann-Lévy/Bayard, 2002.

6 Ao mesmo tempo em que o poder escapa à aristocracia, vê-se desaparecer o que havia de austero, de convencional e de legal no poder paternal, e uma espécie de igualdade se estabelece no lar doméstico. Não sei se, tudo considerado, a sociedade perde com esta mudança, mas sou levado a crer que o indivíduo ganha com isto. Penso que à medida que os costumes e as leis são mais democráticos, as relações de pai e filho se tornam mais íntimas e mais doces; a regra e a autoridade diminuem; a confiança e a afeição freqüentemente são maiores e parece que o elo natural se fortifica, enquanto o laço social se distende. (A democracia na América, III, 8 ) A obra de Alain Renaut nos remete a pesquisas históricas detalhistas sobre a história da exclusão das crianças e sobre a longa história e tradição do abandono dos filhos, dos antigos aos modernos; envia-nos a uma revisão do humanismo educativo; e convida-nos a pensar sobre o abalo das autoridades tradicionais que atingem em cheio a educação, na família e na escola; culmina com uma reflexão sobre as questões atuais do direito e da ética ante a criança, sobre os direitos da criança e a proposta de uma ética da solicitude e do apoio moral. Com a exploração das pesquisas historiográficas das últimas décadas, Renaut realiza uma análise própria sobre a construção histórica do sentimento paternal e a compreensão da infância, sobre as novas percepções do seu comportamento e do seu lugar social, ante um universo em que a autoridade se dilui, os valores democráticos de igualdade e liberdade se afirmam, e as famílias se transformam substancialmente, também sob a influência dos novos meios de comunicação de massa. O autor se refere algumas vezes ao célebre ensaio de Hannah Arendt sobre a crise da educação 6, no qual ele vê a marca da idealização do passado, quando a filósofa afirmava que em nossa época contemporânea 7, quando as crianças parecem ter obtido mais autonomia e estaria mais controlada a repressão e a punição dentro das escolas e das famílias, por causa da crise da autoridade e aparentemente, em conseqüência, a crise da proteção paterna, a situação das crianças seria ainda pior que antes. Esta reflexão terá como eixo um diálogo com a apresentação de Alain Renaut, que se movimenta no domínio da filosofia política, e cuja posição não se identifica nem 6 A crise da educação, in: Crises da república, São Paulo: Perspectiva, 1973. 7 O momento histórico que é cenário do ensaio de Arendt não é, evidentemente, o nosso presente; trata-se dos meados do século XX.

7 com a já clássica interpretação de Phillipe Ariès, da história da infância como se o reconhecimento de sua peculiaridade fosse um fenômeno surgido nos tempos modernos; nem com a compreensão de Michel Foucault, que via na atuação da modernidade antes um falso reconhecimento da infância pela sua integração repressiva dentro do sistema; e tampouco com a posição que aparece no ensaio de Hannah Arendt, onde se detecta a marca do saudosismo de uma melhor época perdida, cuja existência as pesquisas não conseguem comprovar.