Soraide Isabel Ferreira 1

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Transcrição:

VIOLÊNCIA SEXUAL DOMÉSTICA CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES: algumas considerações a partir das intricadas questões referentes à família, ao gênero e ao poder Soraide Isabel Ferreira 1 Resumo: Este artigo busca, sob o olhar do Serviço Social, enquanto profissão investigativa, apresentar de forma sucinta, algumas discussões acerca da questão da violência sexual doméstica contra crianças e adolescentes, compreendendo que esse fenômeno da violência emerge como um dos grandes desafios da sociedade brasileira, bem como tendo em vista que tal problemática constitui-se como objeto de intervenção da referida profissão. Dessa forma, torna-se de suma importância apontar os elementos desencadeadores de tal fenômeno, sinalizando para a gravidade dessa questão que tem alcançado um número cada vez mais expressivo em nossa sociedade. Palavras-chave: Violência. Família. Poder. Gênero. Assistência Social. Abstract: This article seeks, under the gaze of Social Work as a profession investigative present succinctly some discussions about the issue of domestic sexual violence against children and adolescents, understanding that this phenomenon of violence emerges as one of the great challenges of Brazilian society, and considering that this is problematic as the object of intervention of that profession. Thus, it becomes extremely important to point out the elements that trigger this phenomenon, signaling the seriousness of this issue that has reached an ever more prominent in our society. Keywords: Violence. Family. Power. Gender. Welfare. 1 Estudante. Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). ysa.ferreira21@gmail.com

1. INTRODUÇÃO Em decorrência da grande manifestação da questão da violência sexual doméstica contra crianças e adolescentes nos últimos anos, torna-se relevante abordar sobre a gravidade de tal fenômeno, considerando esse debate como um elemento necessário no processo de compreensão das intricadas relações que perpassam as questões referentes à família, ao gênero e ao poder. Diante dessa problemática, muitos estudiosos de diversas áreas das ciências humanas e sociais, em especial, o Serviço Social enquanto profissão interventiva e investigativa tem problematizado acerca desse fenômeno, visto que se apresenta como uma das expressões multifacetadas da questão social e, assim requer um estudo mais profundo. Nessa direção, o artigo busca discutir essa questão, objetivando explicitar conceitos, problematizar a correlação de poder no contexto intrafamiliar, bem como apontar para a gravidade desse fonômeno que ainda atinge um número expressivo de crianças e adolescentes. 2. BREVES APROXIMAÇÕES ACERCA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E DA VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES A violência, nas suas múltiplas formas de manifestação, constitui-se num fenômeno complexo, assim para melhor compreendê-la é preciso considerar o contexto histórico, social cultural, geracional e econômico em que se estrutura a sociedade brasileira, caracterizada como uma sociedade patriarcal, na qual os homens ainda detêm o poder de determinar a conduta das categorias sociais. Ao se comparar a violência doméstica com as demais formas de violência, nota-se esta merece especial destaque. Assim, ela é definida como [...] todo ato ou omissão praticado por pais, parentes ou responsáveis contra crianças e/ou adolescentes que sendo capaz de causar dano físico, sexual e/ou psicológico à vítima implica, de um lado, uma transgressão do poder/dever de proteção do adulto e, de outro, uma coisificação da infância, isto é, uma negação do direito que crianças e adolescentes têm de ser tratados como sujeitos e pessoas em condição peculiar de desenvolvimento (GUERRA, 2011, p. 32-33).

Cabe notar que ao contrário de Guerra (2011), que trata dessa questão de forma mais geral, Araújo (2002) apresenta uma maior distinção entre violência intrafamiliar e violência doméstica. Violência intrafamiliar designa a violência que ocorre na família, envolvendo parentes que vivem ou não sob o mesmo teto, embora a probabilidade de ocorrência seja maior entre parentes que convivem cotidianamente no mesmo domicílio. A violência doméstica, por sua vez, não se limita à família. Envolvem todas as pessoas que convivem no mesmo espaço doméstico, vinculadas ou não por laços de parentesco. (ARAÙJO, 2002, p. 4) Desse mesmo ponto de vista, Saffioti (2001) também estabelece uma diferenciação ao destacar que violência doméstica não é o mesmo que violência intrafamiliar, [...] Enquanto na segunda a violência recai exclusivamente sob membros da família nuclear ou extensa, não se restringindo, portanto ao território físico do domicílio, cabem na primeira vítimas não -parentes consaguineos ou afins (SAFFIOTI, 2001, p. 130). Apesar das distinções apresentadas, crianças e adolescentes têm sido vítimas reiteradas práticas de violência, tanto no âmbito intrafamiliar como no ambiente doméstico, sendo que a violência sexual é uma das modalidades mais expressiva nesses espaços, de tal forma a observar que é no próprio recinto familiar onde essa grande parcela da população sofre o maior índice de abuso. Disso pode-se inferir que o agressor na maioria das vezes é uma pessoa do recinto familiar ou que mantém uma relação próxima da vítima. Guerra (2011) descreve que existem quatro tipos de violência doméstica: violência física, violência sexual, violência psicológica e negligência. Mais especificamente, neste artigo, daremos ênfase exclusiva à violência sexual. Por assim dizer, a violência sexual é entendida como um ato ou jogo sexual que ocorre nas relações homo ou heterossexuais e visa estimular e utilizar a vítima para obter prazer sexual e práticas eróticas, pornografias e sexuais impostos por meio de aliciamento ou de violência (MONTEIRO, 2010, p. 484). Isso implica que o ato pode ser praticado tanto por iniciativa materna quanto paterna, configurando numa dimensão tão complexa e íntima que o torna extremamente difícil ser detectado. Para Faleiros (2008), a violência sexual contra crianças e adolescentes é uma violação de direitos, uma transgressão, uma relação de poder perversa e desestruturante. O combate a essa forma de violência é dificultado pelo fato de que ela resulta muitas vezes do envolvimento de diversos grupos que atuam em rede. Essa definição aponta para o

reconhecimento dos direitos humanos, dentro da legislação nacional, considerando a criança e o adolescente como sujeito de direitos de segurança e proteção da pessoa humana. Os dados da Organização Mundial de Saúde OMS estimam que 150 milhões de meninas e 73 milhões de meninos abaixo de dezoito anos foram forçados a manter relações sexuais ou sofreram outras formas de violência sexual que envolveram contato físico em 2002 (MONTEIRO, 2010 apud WORLD HELKTH ORGANIZATION, 2006). Ainda sobre os números referentes à violência, cabe notar que no no Brasil, inexistem dados globais a respeito do fenômeno, estimando-se que menos de 10% dos casos chegam às delegacias, o que reafirma a questão da subnotificação (RIBEIRO, FERRIANI, REIS, 2004, p. 457). 3. VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES: as intricadas questões referentes à família, ao poder e ao gênero A violência sexual contra a criança e o adolescente sempre esteve presente na vida dessa parcela da população, ainda que pareça ser um problema do contexto da contemporaneidade, ela na verdade, é resultado de um processo histórico de profunda violação de direitos. Em assim sendo, historicamente a família tem praticado as mais diversas modalidades de violências contra esse segmento populacional, que, por sua vez, tem sido vítima de seus pais, de suas mães e/ou de seus responsáveis. A violência é um fenômeno que se desenvolve e se dissemina nas ralações sociais e interpessoais, implicando sempre em uma relação de poder que não faz parte da natureza humana, mas que é da ordem da cultura e perpassa todas as camadas sociais de uma forma tão profunda que, para o senso comum, passa a ser concebida e aceita como natural a existência de um mais forte dominando um mais fraco (SILVA, 2002, p. 19). Não se pode, evidentemente, deixar de notar que o modelo de predominantemente de família caracterizado pelo padrão burguês, que apresenta a emergência do espaço privado, a estrutura patriarcal de poder e as dificuldades sócio-econômicas decorrentes da crise do capitalismo e do socialismo são elementos propícios que podem contribuir para o aumento da violência doméstica contra esse segmento da população. O ambiente familiar privado é o lugar privilegiado de agressões contas crianças e adolescentes, pois o fato de ocorrer num recinto fechado dificulta o diagnóstico e,

consequentemente impede a notificação do crime, gerando a impunidade, que leva cada vez mais pessoas a praticarem esse delito. Especificamente, no Brasil, o marco teórico para explicar o fenômeno da violência contra crianças e adolescentes tem por base a teoria do poder. Nesse sentido, segundo Faleiros (2008), O poder é violento quando se caracteriza numa relação de força de alguém que a tem e que a exerce visando alcançar objetivos e obter vantagens (dominação, prazer sexual e lucro) previamente definidos. A relação violenta por ser desigual, estruturase num processo de dominação, através do qual o dominador, utilizando-se de coação e agressões, faz do dominado um objeto para seus ganhos. A relação violenta nega os direitos do dominado e desestrutura sua identidade (FALEIROS, 2008, p. 29). Ao reforçar o poder do homem, por meio da função patriarcal, ele passa a deter o poder de determinar a conduta das categorias sociais, em que a ideia de execução do projeto de dominação-exploração de mando auxiliada pela violência (SAFFIOTI, 2001, p. 115). Nesse sentido, a referida autora propõe o uso do termo violência de gênero como um conceito mais amplo, abrangendo vítimas como mulheres, crianças e adolescentes de ambos os sexos. [...] gênero diz respeito às representações do masculino e do feminino, a imagens construídas pela sociedade a propósito do masculino e do feminino, estando estas inter-relacionadas. Ou seja, como pensar o masculino sem evocar o feminino? Parece impossível, mesmo quando se projeta uma sociedade não ideologizada por dicotomias, por oposições simples, mas em que masculino e feminino são apenas diferentes (SAFFIOTI, 2004, p.116). A postura autoritária do adulto em tratar a criança e o adolescente em um contexto de submissão, afirma o seu desejo de poder absoluto sobre essa camada da população, tanto que reproduz as formas dominantes numa determinada família. É dentro desse contexto de poder que as configurações de violência intrafamiliar, se perpetra como uma forma de violência que envolve poder, coação e/ou sedução. É uma violência que envolve duas desigualdades básicas: de gênero e geração [...] é frequentemente praticado sem uso de força física e não deixa marcas visíveis, o que dificulta sua comprovação, principalmente quando se trata de crianças pequenas (ARAÚJO, 2002, p. 5-6).

Quanto à direção desse tipo de violência as vítimas podem ser tanto do sexo masculino quanto feminino. Contudo a literatura especializada mostra que pode existir uma predominância do sexo feminino, especialmente no período que transita da infância para a adolescência (Guerra, 2011). É preciso considerar que a violência se caracteriza por diversas modalidades e tipologias, contudo apresenta algumas singularidades e especificidades que a diferencia e ao mesmo tempo a caracteriza dentro de um contexto societário próprio do sistema econômico capitalista, em que a ideologia dominante culpabiliza e criminaliza a pobreza como fator desencadeador da violência. Desse ponto de vista, há uma espécie de naturalização e vinculação de todo o tipo de violência à questão da pobreza. Diante dessa postura de criminalização que impera no capitalismo, percebemos a necessidade de apontar a complexidade e multicausalidade da (re)produção violência, de modo que buscarmos uma compreensão de cunho critico/reflexivo que se afaste da simples banalização da mesma, entendendo que ela se insere dentro de um contexto de relações sociais, que envolvem questões de poder, questões de gênero, sendo que essas questões são reiteradas vezes usadas como forma de anulação do outro. No tocante à violência de natureza sexual, a relações dos agressores com os/as filhos/as vítimas se caracterizam por ser uma relação sujeito-posse, nessa configuração os/as filhos/as pertencem aos pais e, como conseguinte, eles/as devem atender as suas necessidades, inclusive as do campo sexual, nesse sentido pais, mães e/ou responsáveis, justificam os abusos praticados. Por outro lado, muitos adultos os/as responsabilizam por essa violência, assim, as causas das agressões passam para o indivíduo que sofre; de vítima passa para culpado. Tendo por base a relação de poder presente no convívio familiar, entendemos que essa concepção é pautada numa relação hierárquica de desigualdades, que objetiva a dominação, a exploração e a opressão, por meio do silêncio, da passividade e da falta de ação do outro, desconsiderando que a pessoa tem o direito a uma vida sem violência. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Este estudo possibilitou ampliar a compreensão sobre a questão da violência enquanto fenômeno multifacetado, porém com uma abordagem específica voltada a

violência doméstica sexual contra crianças e adolescentes, foi possível observar a intrínseca relação entre família, poder e gênero, considerando tais ocorrências especialmente no âmbito intrafamiliar. A compreensão deste fenômeno precisa considerar o contexto histórico-social brasileiro marcado por uma realidade de violência e de profundas raízes culturais, nas quais ainda se verifica que crianças e adolescentes são alvo de uma educação pautada em uma relação de poder bastante autoritária, de tal forma que reiteradas vezes não lhe é assegurado/a uma vida com dignidade. Considerando que a problemática da violência atinge cotidianamente uma grande parcela de crianças e adolescentes em todo o Brasil, torna-se fundamental e urgente, pensar em alternativas que efetivamente consigam enfrentar a questão da violência. Isso, por certo, exige do poder público o compromisso político de incluir na agenda as políticas públicas ações que visem à articulação e a intersetorialidade entre as diferentes políticas sociais. Trata-se de pensarmos a questão articuladamente com a política de assistência social, de educação, de saúde, de habitação, de geração de emprego e renda, entre outras. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARAUJO, M. F. Gênero e violência contra a mulher: o perigoso jogo de poder e dominação. In: Psicologia para América Latina, n 14, México out. 2008 FALEIROS, Eva T. Silveira; FALEIROS, Vicente de Paula. Escola que protege: enfrentamento a violência contra crianças e adolescentes. Brasília: 2008. GUERRA, Viviane Nogueira de Azevedo. Violência de pais contra filhos: a tragédia revisitada. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2011. MINAYO, M. C. S. Violência e saúde. Rio de Janeiro, 2006. MONTEIRO, F. O. Plantão social: espaço para identificação/notificação de violência contra crianças e adolescentes. In: Serviço Social & Sociedade: formação e exercício profissional. São Paulo, n. 103, p. 476-502, jul./set. 2010. RIBEIRO, M. A.; FERRIANI, N. G. C.; REIS, J. N. Violência sexual contra crianças e adolescentes: características relativas à vitimização nas relações familiares. Cadernos Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 20, n. 2, p. 456-464, mar./abr. 2004. SAFFIOTI, Heleieth I.B. Contribuições feministas para o estudo da violência de gênero. In: Cadernos Pagu 16, 2001, p. 115-136.

SAFFIOTI, H. I. B. Gênero, Patriarcado, Violência. São Paulo: Perseu Abramo, 2004. SILVA, L. M. P. Violência doméstica contra a criança e o adolescente. Recife: Edupe: 2002.