O NOVO HOSPITAL DE TODOS OS SANTOS. (Palestra proferida na Cerimónia de Assinatura do Protocolo do Hospital de Todos os Santos no dia 26-12-2007)



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Transcrição:

O NOVO HOSPITAL DE TODOS OS SANTOS (Palestra proferida na Cerimónia de Assinatura do Protocolo do Hospital de Todos os Santos no dia 26-12-2007) O novo Hospital de Todos os Santos, cuja construção hoje se anuncia, marca o quarto momento de viragem nas instituições hospitalares da cidade de Lisboa. Pelo nome que foi escolhido, fica simbolicamente ligado ao primitivo hospital do século XV, num reconhecimento de que o presente mergulha as suas raízes em acontecimentos que vêm de longe. Não se trata de uma decisão saudosista mas da clara compreensão de que o futuro é feito também de passado. Por isso me arrisco hoje a esta breve incursão na longa história dos hospitais desta cidade, esperando tornar assim mais claro o significado e a importância do acontecimento que estamos a viver. O primeiro momento de viragem que marcou a história dos hospitais de Lisboa foi a decisão tomada por D. João II em 1492 de construir um grande hospital que se chamaria Hospital Real de Todos os Santos. D. João II foi um Rei que levou à prática uma política centralizadora. Não admira, por isso, que tenha decidido reunir num único hospital todas as pequenas instituições medievais albergarias, hospícios, hospedarias, leprosarias que se encontravam espalhadas pela cidade, cuja vocação estava mais virada para salvar as almas do que para tratar doenças e cujas condições sanitárias e assistenciais não correspondiam às exigências de um tempo que era já outro tempo. Para trás, ficaria um modelo medieval de assistência. O novo hospital, iria ser um Hospital do Renascimento semelhante a outros que estavam a surgir na Europa. Embora a importância do componente religioso continuasse presente o altar da igreja estava situado no cruzeiro das três principais enfermarias para que os doentes acamados pudessem assistir aos ofícios religiosos havia já a preocupação, não só de criar condições de salubridade, mas também de levar à prática alguns dos escassos conhecimentos que tinham por objectivo tratar doenças. O Hospital não teve vida fácil e viu-se confrontado com problemas financeiros graves. Mas iria ficar marcado por alguns factos importantes, entre os quais se destaca o seu Regimento, redigido ainda no tempo de D. João II. Além de ser um modelo exemplar de organização, criou aquilo que se pode considerar o embrião da brilhante escola de cirurgia dos Hospitais Civis, ao tornar obrigatório que os cirurgiões-barbeiros tivessem aprendizes que iniciavam nos segredos da profissão. Com o tremor de terra de 1755 o Hospital ficou em grande parte destruído e o Marquês de Pombal decidiu, em 1775, transferir os doentes para o

Colégio de Santo Antão-o-Novo que tinha sido a casa da Companhia de Jesus até à expulsão dos jesuítas em 1759. Mas isto não foi apenas uma transferência. Estava-se, mais uma vez, num tempo que era já outro tempo e o novo Hospital Real de S. José, não iria ser um hospital do Renascimento mas sim um hospital do Iluminismo. Tinhase dado a Revolução Científica, com Copérnico, Kepler, Galileu e Newton e nascera uma visão diferente do mundo. Era a entrada no Século das Luzes. A medicina, longe de ficar para trás, tinha acompanhado o progresso científico. Vesálio publicara em 1543 as sua célebres pranchas anatómicas que marcaram a fundação da anatomia moderna e Harvey descrevera pela primeira vez e com grande rigor a circulação de sangue. Morgagni realizara o seu longo trabalho que permitiu estabelecer pela primeira vez a relação entre quadros clínicos e lesões anatómicas dos órgãos. Começara com ele a medicina anatomo-clínica moderna. O Hospital Real de S. José teve, logo no início, de fazer frente aos problemas criados pelas Invasões Francesas, pela guerra civil de 1832-34 e pelas epidemias que eram frequentes naquela época, como a cólera, a varíola e o tifo. As dificuldades financeiras eram muitas e agravaram-se quando, conseguida a estabilidade política após a Regeneração, a população de Lisboa registou um rápido crescimento a partir da segunda metade do século XIX. Foi por isso necessário anexar outros edifícios a leprosaria de S. Lázaro, o convento do Desterro e o noviciado de Arroios. Finalmente foi construído um hospital de raiz: D. Estefânia. Este conjunto passou a chamar-se Hospital Real de São José e Anexos. No século XIX, vários acontecimentos importantes iriam marcar a vida da Instituição. Em 1825 foi criada por D. João VI, contra a vontade da Universidade de Coimbra, a Escola Régia de Cirurgia que, em 1936, foi transformada por Passos Manuel na Escola Médico-Cirúrgica. Em 1860 foi publicado o regulamento do Banco que incluía as regras a que obedecia a carreira do Cirurgião do Banco e que constituiu mais um passo importante no desenvolvimento da escola de cirurgia. Em 1890 foi criado o internato médico que seria o embrião da futura carreira dos HCL. Mas no início do século XX os problemas do Hospital Real de S. José e Anexos eram enormes: instalações de má qualidade, lotações largamente ultrapassadas, deficiente organização. É então que surge a terceira grande viragem com as reformas de Curry Cabral e a construção de dois novos hospitais: Santa Marta e Rêgo. As reformas foram pressionadas, com certeza, pelas péssimas condições do Hospital e pela necessidade de criar mais espaço para o internamento de doentes. Mas, por trás destas motivações estava outra mais importante: a

clara percepção de que, mais uma vez, se estava num tempo que era já outro tempo. De facto, os rápidos progressos científicos verificados no século XIX, constituíram um legado deixado ao século XX que iria modificar muita coisa e, naturalmente, o exercício da medicina. Basta lembrar os conhecimentos trazidos à fisiologia humana pelos trabalhos de Claude Bernard e o nascimento da bacteriologia, fruto das investigações de Pasteur e Koch. Surge assim a assepsia e a antisepsia que juntamente com a descoberta dos anestésicos vão permitir rápidos progressos da cirurgia. Podia então dizer-se que a ciência, depois de tentar compreender o mundo, se mostrava agora capaz de o transformar e o Iluminismo dava lugar ao Positivismo que não era mais do que a afirmação da superioridade do conhecimento científico em relação a todas as outras formas de conhecimento. Em 1913, o regime republicano, provavelmente sem a intenção de fazer história, mas seguramente por razões políticas, iria assinalar todas estas transformações ao dar o nome de Hospitais Civis de Lisboa (HCL) ao grupo hospitalar, o qual com a anexação do Hospital dos Capuchos, em 1928, iria ficar finalmente completo. Nunca é demais recordar a importância dos HCL na formação de técnicos de saúde: médicos em primeiro lugar e, mais tarde, enfermeiros e outros profissionais. Mas é acerca da carreira médica dos HCL, cuja história está ainda por fazer que eu quero deixar aqui um forte testemunho. A carreira dos HCL deve ser recordada por muitas razões entre as quais pelas grandes figuras da medicina portuguesa que a ela estiveram ligadas. Mas quero hoje destacar outras duas razões: o alargamento da rede hospitalar portuguesa a partir dos anos 70, só foi possível porque estavam disponíveis médicos em número elevado e de reconhecida competência que em grande parte tinham sido formados nos HCL; e quando mais tarde, depois de épocas de extrema carência e penúria, foram disponibilizadas meios técnicos que durante décadas escassearam, os médicos dos HCL mostraram estar preparados para produzir uma medicina de nível europeu. Mas, há muito tempo se começara a perceber que o modelo dos HCL estava esgotado. Era uma estrutura pesada, instalada em edifícios velhos e pouco funcionais com dificuldades de adaptação aos novos modelos hospitalares e às novas tecnologias. A própria carreira médica, alvo de ataques constantes, quer internos quer externos, só conseguira sobreviver até hoje porque tinha raízes numa tradição hospitalar de vários séculos e porque se revelara sempre extremamente eficaz. Entretanto, os progressos registados no século XX, não apenas no campo científico mas em consequência de transformações conceptuais ligadas à

medicina, estavam a criar uma realidade bem diferente. O que se tinha passado? A reflexão no campo da ética, desencadeada em grande parte pelas atrocidades praticadas não só pelos nazis mas também por outros países civilizados, reveladoras de um total desrespeito pela pessoa humana; os progressos nos métodos de avaliação e garantia da qualidade impostos por uma medicina que, quanto mais eficaz se tornava, mais agressiva ia ficando; as técnicas de gestão, cada vez mais exigentes à medida que os custos aumentavam; e o recurso obrigatório ao rigor científico na avaliação de novos medicamentos tudo isso foram contribuições que modificaram completamente o exercício da medicina. Há ainda que acrescentar algumas revelações mais triviais mas que tiveram grande impacte na forma de pensar os hospitais: refiro-me por exemplo à constatação de que o repouso no leito, considerado durante muito tempo a panaceia para todos os males, era afinal, em muitos casos, causa de invalidez e de morte. Mas mais importantes foram os progressos em duas áreas do conhecimento científico que se podem considerar os dois ícones da ciência do século XX: a física das partículas que nos trouxe a célula fotoelétrica, o microscópio electrónico, a televisão, os telemóveis, os computadores, as ciências de imagem e a genética, que nos colocou no limiar dos grandes segredos da vida e cujas consequências práticas são ainda hoje difíceis de avaliar. Estamos agora, mais uma vez, num tempo que é já outro tempo e o Hospital que hoje aqui se anuncia será um sinal disso mesmo. Será um hospital em que a ética, a avaliação e garantia de qualidade, a exigência de maior rigor científico na escolha dos medicamentos e as técnicas de gestão, para além de serem condição de eficiência, traduzirão igualmente um elevado respeito pela dignidade e pelo bem-estar dos cidadãos. Será um hospital em que o espaço de internamento será reduzido em favor das áreas do ambulatório. Será um hospital dotado das tecnologias de ponta no campo das ciências médicas e da informação. Mas será também um hospital, já não do Positivismo mas daquilo a que alguns chamam pós-modernidade. O que significa isto? Significa, entre outras coisas, que estamos numa época em que a ciência tradicional, que procurava sobretudo desvendar e conhecer o mundo, tem vindo a ser substituída pela tecno-ciência cujo objectivo é muito mais transformar do que conhecer. Fazer tornou-se mais importante do que saber e aos investigadores pergunta-se cada vez menos o que é que esperam acrescentar de novo ao conhecimento, para se perguntar apenas: para que é que isso serve? Estamos portanto numa época em que a tecnologia é muitas vezes identificada com progresso e em que se anuncia a superioridade da produtividade sobre a norma, da funcionalidade sobre a substância.

Neste contexto será que corremos o risco de desumanização? Face a perguntas como esta, torna-se indispensável, em momentos de viragem como este, ter presente que é de pessoas e para pessoas que estamos a falar. São pessoas, por um lado, os médicos e os outros profissionais de saúde, que têm de fazer diagnósticos, tomar decisões e lidar com o homem nas vertentes mais trágicas da sua biografia: a doença e a morte. Que têm de partilhar com os doentes o seu sofrimento, as suas angústias e as suas esperanças e que, nestas funções, não podem ser substituídos por nenhuma tecnologia. Médicos, técnicos de saúde e especialistas cuja formação exige muito tempo e um espírito de escola -- cuja raiz grega é a palavra schole que significa ócio, ou seja, tempo livre para reflectir, para debater, para ensinar e para aprender. Este espírito de escola, é talvez a mais importante herança dos HCL, facto que agora parece ser tacitamente reconhecido pelos profissionais que durante os últimos tempos lutaram pela separação das várias unidades hospitalares e que se sentem agora identificados na mesma tradição aceitando sem relutância juntar-se no novo Hospital. Mas pessoas são também os doentes com que os profissionais de saúde terão de lidar. Pessoas que não são susceptíveis de padronização porque (e os médicos sabem-no bem) cada doente é um caso particular, uma fonte permanente de incertezas e de dúvidas, ao qual raras vezes é possível aplicar à letra guidelines e protocolos. Neste momento de viragem há muito desejada, são estes alguns dos desafios que se colocam. Sinto-me à-vontade para os lembrar aqui, porque faço parte de uma geração que assistiu a estas mudanças extraordinárias e que, de certa maneira, funcionou como a ponte entre as gerações do passado e um futuro que se anuncia cheio de promessas e também de mistérios. Esperemos que em 2012, data prevista para a entrada em funcionamento do novo Hospital, possamos todos proclamar com justificada satisfação: Está encerrado o ciclo dos HCL. Viva o Hospital de Todos os Santos! António José de Barros Veloso