Capítulo 2 Endogamia. Acasalamentos Preferenciais. Introdução



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Transcrição:

Capítulo 2 Endogamia Acasalamentos Preferenciais Introdução No capítulo anterior foi demonstrado que se os acasalamentos forem aleatórios, as populações têm proporções genotípicas equivalentes às calculadas pela distribuição binomial a partir de suas freqüências gênicas, ou seja, estão em Equilíbrio de Hardy-Weinberg. Com isso, se os indivíduos preferirem, por algum motivo, acasalar-se com indivíduos aparentados, a população sai do EHW. Este acasalamento preferencial por indivíduos aparentados pode ocorrer simplesmente porque indivíduos aparentados estão geograficamente próximos e isolados de outros indivíduos. Algumas cidades do interior de Minas Gerais são conhecidas pelo alto grau de endogamia na população. São cidades pequenas, onde as pessoas em geral guardam algum grau de parentesco umas com as outras e os casamentos entre primos são comuns. Alguns animais de hábito gregário também apresentam um alto grau de endogamia. Com isso, populações muito pequenas sempre apresentam algum grau de endogamia, já que os membros destas populações compartilham ancestrais recentes. Tecnicamente a endogamia é constituída pela ancestralidade comum entre pares de acasalamento. Para compreender a endogamia em termos populacionais, é preciso relembrar o que significa a endogamia em termos individuais. Se tivermos um acasalamento entre indivíduos aparentados, é possível que um fruto deste acasalamento tenha dois alelos idênticos por descendência (aid). O Box 1 mostra a probabilidade de termos 2 aid num casamento entre primos. Esta probabilidade é chamada de f. Se em uma determinada população o acasalamento entre indivíduos aparentados for comum, podemos pensar na probabilidade de encontrar um indivíduo que tenha dois alelos idênticos por descendência quando fazemos uma amostragem aleatória da população. Esta probabilidade é chamada de F, ou coeficiente de endogamia. Este F pode ser compreendido como uma medida populacional e não a simples probabilidade de um indivíduo ter dois alelos idênticos por descendência. Sendo assim, não basta saber quais as freqüências dos alelos na população para poder prever as freqüências genotípicas, como fazíamos com uma população em EHW, é preciso levar em conta o valor de F, ou a probabilidade de encontrar indivíduos com alelos idênticos por descendência, frutos de acasalamentos entre indivíduos aparentados. Para tentar compreender o que acontece quando há endogamia, pense numa planta que faz autofecundação (o grau máximo de endogamia que pode haver, cujo F = 1). Se tomarmos um indivíduo heterozigoto, A/a (p = 0,5; q = 0,5). Na primeira geração, apenas metade de sua prole será heterozigota, a outra metade será dividida entre indivíduos A/A e a/a, que por sua vez só produzirão, deste ponto em diante, indivíduos homozigotos. Na segunda geração, somente metade dos heterozigotos gerará indivíduos heterozigotos e assim por diante. Isso significa que sob endogamia, o número de heterozigotos é reduzido a cada geração. A figura 1 mostra o gráfico desta situação. Repare que o número de indivíduos heterozigotos cai à metade em cada geração.

Frequência Genotípica 1 0,9 0,8 0,7 0,6 0,5 0,4 0,3 0,2 0,1 0 1 2 3 4 5 6 7 8 Número de Gerações A/A A/a a/a Figura 1: Freqüência de indivíduos homozigotos (A/A e a/a) e heterozigotos (A/a) ao longo das gerações em uma planta cleistógama (planta que se reproduz exclusivamente por autofecundação), cujo indivíduo inicial era um heterozigoto A/a. Generalizando, podemos dizer que quando há qualquer grau de endogamia, o número de heterozigotos é menor que o esperado pelo EHW. Em outras palavras, o número de homozigotos é maior que o esperado. Pensando em um lócus com apenas dois alelos, sabemos que se os acasalamentos fossem aleatórios, as freqüências genotípicas dependeriam apenas das freqüências gênicas e estariam em EHW. Agora, se pensarmos que numa determinada população os acasalamentos entre primos é muito freqüente, então podemos utilizar o f calculado no Box2 (f = 1/16) como o F desta população. Em termos matemáticos, precisamos saber o quanto os homozigotos são aumentados e os heterozigotos diminuídos pela endogamia. Os cálculos em geral são bastante simples e intuitivos:

Devemos primeiro calcular o quanto da heterozigozidade foi perdida devido à endogamia. Com isso devemos subtrair uma porção dos heterozigotos, que equivale a 1-F: 1 / 2 1 onde A/a é a proporção de heterozigotos, e 2pq é a proporção esperada de heterozigotos pelo EHW. 2 / 2 2 Repare que 2pqF foi retirado dos heterozigotos, o que significa que este valor deve ser acrescentado aos homozigotos na mesma proporção, já que a soma das freqüências genotípicas em uma população sempre deve ser igual a 1. Assim: 3 / 4 / Onde A/A e a/a são as freqüências de homozigotos dominantes e recessivos e p 2 e q 2 são as freqüências esperadas destes genótipos pelo EHW. Estas fórmulas mostram a comparação das freqüências gênicas esperadas sob endogamia com as esperadas pelo EHW. Com a endogamia, há deficiência no número de heterozigotos igual a 2pqF e um excesso de cada homozigoto igual á metade da deficiência de heterozigotos (pqf). Se 5 / 2 2 E se os valores de p e q forem conhecidos, bem como a quantidade de heterozigotos presentes na população, então o F é dado por: 6 2 / 2 O ponto mais importante que deve ser observado é que a endogamia por si só não altera as freqüências gênicas de uma população. Conforme já foi dito, ela altera as freqüências genotípicas, mas as freqüências gênicas permanecem inalteradas. Com isso, pode-se dizer que a endogamia isoladamente não é um mecanismo evolutivo, já que não provoca evolução. No entanto, se pensarmos em seleção natural + endogamia, o cenário se modifica. Imagine uma população que tenha a freqüência q de um alelo recessivo muito raro de 0,01. Pelo equilíbrio de Hardy- Weinberg, a probabilidade de se obter um indivíduo homozigoto para este alelo é q 2 = 0,0001. No entanto, se houver endogamia, com F = 0,5, a probabilidade de se obter este indivíduo homozigoto sobe para q 2 + 2pqF= 0,01 (100 vezes maior!). Assim, se este alelo recessivo for deletério, a chance de que seja detectado pela seleção natural é muito maior quando há endogamia do que quando os acasalamentos se dão ao acaso. Neste caso, a endogamia colabora para acelerar o processo de seleção natural e portanto colabora para que haja evolução. Falaremos mais sobre as conseqüências de endogamia combinada à seleção no capítulo dedicado à seleção natural.

Cenário Adaptativo: Conforme veremos quando estudarmos seleção natural, as populações podem ser teoricamente colocadas em um cenário adaptativo. Imagine uma serra, como a Mantiqueira. Há picos e vales, comparáveis aos picos e vales adaptativos nos quais podem encontrar-se as populações. A coisa funciona mais ou menos assim: a seleção natural atua no sentido de manter as populações em picos adaptativos altos. Isso significa que sempre que aparecer um indivíduo menos adaptado, ele será eliminado pela seleção (deixará menos descendentes que os outros melhor adaptados e tenderá a ter seus alelos extintos pela seleção natural). No caso de doenças genéticas recessivas, a seleção natural só é capaz de eliminar indivíduos que sejam duplo recessivos. Com isso, e se houver acasalamentos ao acaso, muitos alelos recessivos deletérios são mantidos na população, escondido nos heterozigotos (ver item sobre heterozigozidade em EHW). No entanto, se por algum motivo uma população anteriormente panmítica começar a fazer acasalamentos endogâmicos, haverá uma alta freqüência de indivíduos duplo heterozigotos para os alelos recessivos (com frequencia q 2 + pqf). Estes indivíduos serão obviamente banidos pela seleção natural. Com isso, o valor adaptativo médio da população cairá, de modo que a população entrará em um vale adaptativo. Se conseguir sobreviver a este vale, a população terá as freqüências dos alelos deletérios recessivos diminuída, de modo que vai começar a subir em outro pico adaptativo. Como estes alelos terão freqüência menor, o próximo pico adaptativo será ainda maior. A conclusão disso é que o início da endogamia em uma população anteriormente panmítica pode ter conseqüências terríveis para a população, e pode mesmo levá-la à extinção. No entanto, com o passar das gerações, e se a população conseguir sobreviver, ela entrará em um novo pico adaptativo, mais alto.

Box 1: Na figura abaixo temos a representação de um acasalamento entre primos. Note que foi calculada a probabilidade de que o indivíduo resultante deste acasalamento (IV-1) tenha o genótipo A1/A1. Para que este indivíduo seja A1/A1, ele deve ter herdado este o alelo A1 exclusivamente de sua avó, e isto acontece com probabilidade: / 1 2 1 64 No entanto, estamos interessados em saber qual a probabilidade f de que este indivíduo, fruto do acasalamento entre primos, tenha dois alelos idênticos por descendência. Neste caso, devemos considerar todas as possibilidades deste indivíduo ter dois alelos idênticos por descendência. Repare que ele pode ter alelos idênticos por descendência herdados tanto do indivíduo I-1 quando do indivíduo I-2. Com isso, se seu genótipo for A1/A1, A2/A2, A3/A3, ou A4/A4., ele terá dois alelos idênticos por descendência. Assim, f pode ser calculado como: 1 64 4 1 16 Ou seja, a probabilidade de que um indivíduo fruto do acasalamento entre primos tenha dois alelos idênticos por descendência é de 1/16.