Ementa: ASSISTÊNCIA SOCIAL E OSCIPs. DISTINÇÃO ENTRE QUALIFICAÇÃO (OSCIP) E INSCRIÇÃO EM CONSELHO DE POLÍTICAS PÚBLICAS. OBRIGATORIEDADE DE INSCRIÇÃO Assistência Social e OSCIPs: paralelismo ou parceria 1? As novas figuras de fomento criadas ao longo da década de 90 pelo Estado brasileiro, como as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs), por vezes, geram confusão e dúvida aos aplicadores do Direito, dirigentes públicos, membros de organizações do Terceiro Setor, enfim, aos diversos segmentos da sociedade. Torna-se indispensável, a meu ver, clarear e precisar alguns pontos aparentemente nebulosos, ainda que a reflexão sobre eles como é de se supor não se esgote nestas linhas. Algumas questões integram nitidamente a ordem do dia. Cumpre delinear algumas delas e, em seguida, tentar responder uma a uma. Para tanto, três indagações podem ser formuladas para problematizar a relação Assistência Social OSCIPs: I. A outorga de título jurídico denominado OSCIP se assemelha em alguma medida ao ato de inscrição de entidade no Conselho Municipal de Assistência Social (ou Conselho de Assistência Social do Distrito Federal), considerando que a segunda espécie de provimento administrativo representa exigência indispensável ao funcionamento das entidades de assistência social? 1 Parceria na acepção de complementar, portanto não excludente.
2 II. Determinada pessoa jurídica pode gozar simultaneamente da condição de OSCIP e de entidade de assistência social? III. Os Conselhos Municipais de Assistência Social (ou o Conselho de Assistência Social do Distrito Federal) podem inscrever (ou renovar a inscrição de) pessoa jurídica portadora do título de OSCIP? I. Primeiramente, cumpre observar que o ato administrativo de outorga do título de OSCIP não se confunde com a inscrição (também provimento administrativo) de entidade de assistência social no respectivo Conselho Municipal (ou no Conselho de Assistência Social do Distrito Federal). Não se trata de atos análogos, equivalentes. Nem se deve supor o estabelecimento pelo ordenamento jurídico de figuras semelhantes e dotadas de idênticas finalidades, pois as nomenclaturas e, o que é mais importante, as características fundamentais, não são as mesmas. Tais atos têm natureza bem diversa para o Direito Administrativo, apesar de revelarem o exercício de função administrativa; ambos, portanto, produzidos no bojo das atividades infralegais (subordinadas diretamente à lei infraconstitucional). Com efeito, a outorga do título de OSCIP pelo Ministério da Justiça denota o exercício de atividade típica de fomento por parte do Estado, isto é, incentivo a determinadas atividades privadas de interesse público, enquanto a inscrição nos Conselhos de Políticas Públicas (Assistência Social) representa o que a doutrina clássica denomina de exercício do Poder de Polícia. O Poder de Polícia (ou, simplesmente, polícia administrativa), exercido pela Administração Pública, nada mais é do que a atividade (...) expressa em atos normativos ou concretos, de condicionar, com fundamento em sua supremacia geral e na forma da lei, a liberdade e a propriedade dos
3 indivíduos, mediante ação fiscalizadora, ora preventiva, ora repressiva, impondo coercitivamente aos particulares um dever de abstenção ( non facere ) a fim de conformar-lhes os comportamentos aos interesses sociais consagrados no sistema normativo. 2 A exemplo disto, verifica-se que o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n 8.069/90) prevê a produção de ato expedido no típico exercício da polícia administrativa (registro): Art. 91. As entidades não governamentais somente poderão funcionar depois de registradas no Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (...) Parágrafo único. Será negado o registro à entidade que: a) não ofereça instalações físicas em condições adequadas de habitabilidade, higiene, salubridade e segurança; b) não apresente plano de trabalho compatível com os princípios desta lei; c) esteja irregularmente constituída; d) tenha em seu quadro pessoas inidôneas. que: Por sua vez, a Lei n 9.790/99 (OSCIPs) em seu artigo 1 estipula Art. 1. Podem qualificar-se como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público as pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, desde que os respectivos objetivos sociais e normas estatutárias atendam aos requisitos instituídos por esta Lei. (...). Pois bem. A Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS Lei n 8.742/93) prevê competência própria de polícia administrativa (inscrição): Art. 9º O funcionamento das entidades e organizações de assistência social depende de prévia inscrição no respectivo Conselho Municipal de Assistência Social, ou no Conselho de Assistência Social do Distrito Federal, conforme o caso. 2 Celso Antônio BANDEIRA DE MELLO, In Curso de Direito Administrativo, Malheiros Editores, São Paulo, 14 a. edição, pp. 712.
4 (...). Portanto, a Lei n 9.790/90 (OSCIPs) 3 institui em seu artigo 1 a competência para a expedição de ato administrativo próprio da atividade de fomento, enquanto a Lei n 8.742/93 (LOAS) prevê competência própria da polícia administrativa (inscrição). II. Passando os olhos sobre o ordenamento jurídico, resta ao intérprete concluir pela absoluta compatibilidade entre a inscrição de entidade em Conselho de Política Pública (Assistência Social) e a qualificação como OSCIP. Conforme salientado anteriormente, em outras palavras, o ato de qualificação (OSCIP) não substitui o de inscrição (entidade de assistência social), ao contrário, ambos se complementam. A Lei n 9.790/99 estabeleceu, logo ao princípio, a relação de possíveis finalidades sociais a serem encartadas no plano estatutário da OSCIP, a promoção da assistência social (artigo 3, inciso I). Não há dúvida que o legislador pátrio ao cravar a promoção da assistência social como um item autônomo a título de objetivo social, acolheu a figura da entidade de assistência social como passível de qualificação na categoria OSCIP, ainda que a mesma se dedique tão-somente à consecução de atividades de assistência social. Nesta linha, verifica-se que a norma legal estabeleceu a faculdade de qualificação mediante a adoção de uma das finalidades relacionadas no texto. A redação legal aponta para a qualificação (...) conferida às pessoas jurídicas de 3 A Lei n 9.790/99 ao tratar do termo de parceria (art. 9 ) traz expressamente a noção de fomento: Art. 9 o Fica instituído o Termo de Parceria, assim considerado o instrumento passível de ser firmado entre o Poder Público e as entidades qualificadas como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, destinado à formação de vínculo de cooperação entre as partes, para o fomento e a execução das atividades de interesse público previstas no art. 3 o desta Lei.
5 direito privado (...) cujos objetivos sociais tenham pelo menos umas das seguintes finalidades: (...) (artigo 3, caput da Lei n 9.790/99). É correto afirmar que a noção de assistência social, apesar de certa fluidez, possui contornos próprios e inconfundíveis a serem resgatados a partir da interpretação dos dispositivos contidos no Texto Constitucional (art. 203) e na Lei n 8.742/93 (Lei Orgânica da Assistência Social LOAS). Em verdade, a OSCIP que exerça atividade nesse campo social deve manter, sobretudo, uma comunhão de objetivos, de finalidades com a Assistência Social, cujo fundamento decorre diretamente da Constituição Federal e da LOAS 4. O constituinte de 1988 estabeleceu (art. 203): A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente da contribuição à seguridade social, e tem por objetivos: I a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice; II o amparo às crianças e adolescentes carentes; III a promoção da integração ao mercado de trabalho; IV a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária; V a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei. termos: A LOAS define entidade de assistência social nos seguintes Art. 3º Consideram-se entidades e organizações de assistência social aquelas que prestam, sem fins lucrativos, atendimento e assessoramento aos beneficiários abrangidos por esta lei, bem como as que atuam na defesa e garantia de seus direitos. 4 O próprio artigo 6 do Decreto n 3.100, de 30 de julho de 1999, que regulamenta a Lei n 9.790/99, como não podia ser de outra forma, fixou: para fins do art. 3 da Lei n 9.790 de 1999, entende-se: I como Assistência Social, o desenvolvimento das atividades previstas no art. 3 da Lei Orgânica da Assistência Social;(...).
6 Assim, esse passa a ser o arcabouço jurídico das OSCIPs que desenvolvam atividade de assistência social. Além disso, a OSCIP, ao obter a inscrição no Conselho de Políticas Públicas, assim como ao celebrar termo de parceria com o Estado, ingressa de maneira inequívoca no sistema de Seguridade Social via Assistência Social. Nesta linha, a eventual celebração de termo de parceria com OSCIP de assistência social deve ser precedida, sob pena de nulidade, de manifestação do Conselho de Políticas Públicas (art. 10, parágrafo 1 da Lei n 9.790/99). No âmbito federal, o referido órgão colegiado é o Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) 5. Portanto, nada impede que uma OSCIP receba inscrição de entidade de assistência social desde que possua efetiva identidade com a Assistência Social, compreendida na plena adequação de seus objetivos institucionais (propósitos) e, ademais, de sua efetiva prática com a concretização dos direitos dos beneficiários/usuários da Assistência Social. III. O terceiro ponto diz respeito à possibilidade de inscrição (ou renovação) de entidade portadora do título de OSCIP pelos Conselhos Municipais de Assistência Social (ou Conselho de Assistência Social do Distrito Federal). Relativamente a este aspecto, torna-se imprescindível salientar que a condição de OSCIP não é fator de discrimen para apartá-la das atividades próprias da Assistência Social. Poderia se indagar: mas o regime jurídico das OSCIPs faculta a remuneração de dirigentes (art. 4, inciso VI da Lei n 9.790/99), enquanto o das entidades/organizações de assistência social não prevê tal faculdade? 5 O Decreto n 3.100, de 30 de julho de 1999, em seu artigo 10 (parágrafo 2 ), dispensa a consulta a ser encaminhada pelo órgão estatal parceiro, caso não exista Conselho de Política Pública da área de atuação correspondente. Evidentemente, esta hipótese não está em questão, haja vista a existência do CNAS.
7 Não importa. Remunerar dirigente de entidade não representa, ao menos aos olhos da legislação em vigor, elemento de discrímen para encartar ou apartar determinada pessoa jurídica de direito privado do rol daquelas consideradas de assistência social (art. 3, LOAS). Com efeito, a entidade de assistência social que remunere dirigentes não poderá ser considerada entidade beneficente de assistência social (art. 195, parágrafo 7 da Constituição Federal). Mas isto é outro problema 6. Logo, inexiste fator jurídico impeditivo para que uma OSCIP, ainda que remunere seus dirigentes, venha a obter a inscrição no respectivo Conselho Municipal de Assistência Social (ou, ainda, no Conselho de Assistência Social do Distrito Federal), a não ser que deixe de preencher os requisitos legais para tanto (artigo 3 e demais dispositivos pertinentes contidos na LOAS). Entendimento oposto, a meu ver, implicaria em considerável fonte de controvérsias e, mesmo, de insegurança jurídica. Assim sendo, o Conselho Municipal de Assistência Social (ou o Conselho de Assistência Social do Distrito Federal) não só PODE como DEVE inscrever ou, ainda, renovar a inscrição de pessoa jurídica portadora do título de OSCIP, desde que esta preencha, obviamente, os requisitos legais pertinentes para fins de prestação de serviços de assistência social, sob pena de violação à ordem jurídica. Na hipótese de que determinada OSCIP tenha seu pedido de inscrição indeferido pelo simples fato de ser OSCIP, poderá se valer de medidas corretivas próprias do Estado de Direito (artigo 5, inciso XXXV combinado com o inciso LXIX da Constituição Federal) 7. 6 José Eduardo Sabo Paes, in Fundações e Entidades de Interesse Social, Brasília Jurídica, Brasília, 2 a edição, 2000, p. 423. 7 Art. 5 (...) inciso LXIX: conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas-data, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público.
8 Enfim, por todo o exposto, parece razoável afirmar que o título deste texto está respondido: as OSCIPs não se prestam ao paralelismo ou à fragmentação da política de assistência social concebida como instrumento legítimo e consagrado pela Constituição Federal para assegurar, nos termos da LOAS, direitos fundamentais aos cidadãos em situação de exclusão social. Não há conflito (sequer aparente) entre a legislação que instituiu as OSCIPs, editada ao final dos anos 90, e a LOAS, produzida na primeira metade daquela década. A figura da OSCIP surge fundamentalmente para fortalecer a relação de parceria com o Estado e, por conseqüência, representa instrumento idôneo e legítimo (não o único) de revigoramento dos institutos de fomento nas diversas áreas sociais, inclusive na Assistência Social, conforme assegurado pela Carta Magna e pela legislação ordinária. São Paulo, 13 de maio de 2005 Luis Eduardo Patrone Regules Advogado Mestre em Direito do Estado pela PUC/SP Dissertação: Terceiro Setor e Estado Subsidiário: o perfil jurídico das OSCIPs