Sistemas eleitorais. Lisboa, 12 de Setembro de 2018

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Transcrição:

Sistemas eleitorais Lisboa, 12 de Setembro de 2018 1. Tudo o que diga respeito a eleições ou mais exatamente, tudo o que diga respeito às normas jurídicas ou ao sistema de normas jurídicas que regulam os atos eleitorais é em Portugal extraordinariamente estável. Dizer que esta estabilidade, de que goza aquilo que em geral se pode denominar como «direito eleitoral», é entre nós inusual, é dizer pouco. Num ordenamento jurídico em que impera a mudança, a permanência no tempo das regras respeitantes às eleições políticas tem que surgir como um dado merecedor de nota, a exigir reflexão. É que não foi apenas o sistema eleitoral isto é, as regras que determinam os critérios que delimitação dos círculos eleitorais e os métodos de conversão dos votos em mandatos a manter-se intocado nas últimas quatro décadas. Muitos outros aspetos do regime respeitante a eleições políticas permaneceram fiéis a uma matriz originária que nós optámos por manter intocada. Dou dois exemplos. Um deles é a inexistência de um código eleitoral. Outro é a competência atribuída ao Tribunal Constitucional para ser a última instância do contencioso eleitoral. Há trinta anos que se fala da necessidade de facilitar o conhecimento e a aplicação das normas que regem todas as eleições, e, portanto, da necessidade de pôr termo ao estado de coisas em que cada eleição a do Presidente da República, da Assembleia da República, do Parlamento Europeu, dos Parlamentos Regionais ou das autarquias locais tem a sua própria lei. O facto de não haver codificação nesta matéria dificulta tanto a 1

harmonização das soluções quanto o conhecimento e a aplicação delas. Ora, num domínio em que tal aplicação não é nem pode ser deixada só ao cuidado de especialistas, é incompreensível a permanência desta dificuldade. Há mais de trinta anos que se fala da necessidade de lhe pôr termo. Há mais de trinta anos que as coisas se mantêm inertes. Por outro lado, desde o início da década de oitenta desde que foi criado o Tribunal Constitucional que se estabeleceu consenso quanto à seguinte ideia: como as eleições são matéria «constitucional», ou seja, são de fundamental importância jurídico-política, tem que haver uniformidade na interpretação das normas que as regem, em caso de conflitos levados a tribunal. E nada melhor do que o Tribunal Constitucional para ser o garante dessa uniformidade, sendo este o tribunal de última instância (e nalguns casos, também o tribunal de primeira instância) em todas o contencioso que emerja das eleições. Ninguém põe em dúvida que as eleições são, no sentido da sua relevância jurídico-política, «matéria» constitucional. Mas a mim faz-me impressão que se retire dessa premissa incontestável a conclusão segundo a qual deve caber a um órgão como o Tribunal Constitucional a função de ser juiz em matéria eleitoral. Mais do que isso, faz-me impressão que não tenha merecido a curiosidade de ninguém esta situação tão particular: o Tribunal que julga (porque de um Tribunal se trata, e de um julgamento se trata) matérias como as referentes ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, ou à maternidade de substituição, ou às reduções do montantes de pensões de reforma já em pagamento, e julga-as na exata medida em que tem o poder de decidir se são válidas as leis em que tais matérias se regulam, é o mesmo tribunal que é chamado a decidir se a cruz no boletim de voto foi validamente inscrita, ou se as listas contendo as candidaturas às eleições foram regularmente instruídas. Salta-me à vista 2

que as aptidões «técnicas» - e uso um termo que é propositadamente redutor que são requeridas para julgar um e outro tipo de matérias são bem diversas. Que ninguém ao longo de quase quarenta anos se tenha interrogado sequer quanto a este ponto causa-me espanto. 2. De todo o modo, uma coisa é certa. Entre todas estas várias matérias eleitorais que se foram mantendo extraordinariamente estáveis ao longo de quatro décadas, as referentes ao sistema eleitoral ao modo de delimitação dos círculos eleitorais e ao modo de conversão dos votos em mandatos são as mais importantes. A razão por que tal sucede é bem clara. Como alguém disse, o sistema eleitoral é uma espécie de infraestrutura de todo o sistema político. O sistema de partidos depende dele, ou pode ser por ele conformado. O sistema de governo também. A legitimidade da governação também. De modo que se há algo que seja por excelência «constitucional», no sentido de tudo quanto é politicamente determinante ou fundante, esse «algo» é o sistema eleitoral. Nós escolhemos o sistema proporcional, e, dentro dele, o Método de Hondt. E escolhemo-lo com um tal fervor, com uma tal intensidade, que fizemos algo que (julgo) dificilmente terá paralelo em qualquer outra constituição de uma cultura que nos seja próxima, excetuando a brasileira. Não apenas fixámos o método de Hondt como método a seguir, por imposição constitucional, na conversão de votos em mandatos no que diz respeito à eleição para a Assembleia da República, como impusemos, também com forma e força constitucional, o sistema de representação proporcional para todas as eleições que o comportem (só escapa, pela natureza das cosias, a eleição presidencial). Não contentes com isso, elevámos a representação proporcional a limite material de revisão 3

constitucional, isto é, a decisão que não pode ser tocada sequer por alteração da constituição. No mundo do direito público europeu, chamamse agora a estas cláusulas, que querem fixar para a eternidade certas escolhas feitas no tempo e no espaço por uma certa assembleia constituinte, «cláusulas de identidade». Por exemplo, em Itália, a forma republicana de governo não pode ser alterada por revisão constitucional. Na Alemanha, não pode sê-lo a estrutura federal do Estado de direito democrático. E são chamadas cláusulas de «identidade» porque se entende que qualquer revisão constitucional que as anulasse traria um outro modo de ser para a comunidade política. Nós elevámos a estre nível identitário o sistema eleitoral de representação proporcional. Resta saber por que é que o fizemos, e as consequências que tal nos trouxe. 3. Estas opções vêm da Assembleia Constituinte. Eu encontro-me hoje entre dois constituintes, e por isso sinto que seria estultícia da minha parte estar a alongar-me muito sobre os motivos das escolhas que a ela remontam. Mas para quem (como eu) procurou estudar o que lá se passou e o resultado do que lá se passou embora lá não tenha estado - há algumas conclusões que me parecem ser seguras. A escolha do modelo que ainda hoje temos para a eleição dos deputados à Assembleia da República (representação proporcional; método de Hondt; apresentação de candidaturas só por partidos políticos em listas fechadas e bloqueadas) é feita logo em maio de 1974, quando o Primeiro Governo Provisório nomeia uma comissão de juristas para elaborar a lei eleitoral para a Assembleia Constituinte. E creio que foi nessa altura escolhido este sistema por três razões fundamentais. Em primeiro lugar, por não ser maioritário. A representação proporcional divergia de tudo quanto se tinha experimentado até então; respeitava a pluralidade social; não contribuía para a criação do 4

que mais se receava, e que eram as maiorias artificiais. Em, segundo lugar, o sistema era de aplicação relativamente simples. Para quem nunca tinha tido antes eleições competitivas em sufrágio universal este argumento da simplicidade era (creio) de peso. E em terceiro e último lugar, era, entre os sistemas de representação proporcional, aquele que menos potenciava o risco inerente às ideias de proporcionalidade o risco da ingovernabilidade pela impossibilidade de formação de maiorias parlamentares estáveis - por potenciar os resultados, em mandatos, das forças vencedoras. Creio também que o modelo «migrou» para a Constituição por causa destas três razões, e como tal aí foi ficando. É hoje para nós evidente que, depois de 1986, o espectro da ingovernabilidade que este modelo simples poderia causar se desfez. Mas em lugar dele surgiu um outro, que explica as três grandes alterações que até agora nele se introduziram: (i) a diminuição do número de deputados à Assembleia da República; (ii) a possibilidade de apresentação de listas de cidadãos independentes nas eleições autárquicas; (iii) a autorização para a criação de círculos uninominais, a par de círculos plurinominais, na eleição dos deputados parlamentares. O espectro que paira sobre o sistema, e que justifica estas alterações, é o do enquistamento do sistema partidário, que fica entregue a si próprio pela natureza das candidaturas, apresentadas em listas fechadas e bloqueadas de estrita composição partidária. Todos o sabemos. Não têm sobre o assunto faltado debates. Recordo particularmente aquele que foi feito logo a seguir à revisão constitucional de 1997, por iniciativa do XIII Governo Constitucional, e que teve a participação (a propósito da criação de círculos uninominais, que permitiriam ao eleitor ter uma palavra a dizer sobre a composição efetiva das candidaturas) de gentes de proveniência disciplinar tão diversa quanto geógrafos, politólogos, historiadores, juristas. Foi um debate de grande 5

qualidade. Não deu frutos. Passaram desde essa altura mais de vinte anos. Entretanto, o problema que o desencadeou manteve-se e foi-se agravando. 6