COLÉGIO SAGRADA FAMÍLIA LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA PROF. DALMIR B. SERAPHIM Proposta de um modelo de análise de ROMANCE A presente proposta é apenas um ponto de partida e uma sugestão do professor. Ela parte das lições de teoria literária de René WeIlek e Austin Warren e tem por base a resposta ao levantamento de dados, como segue: Questionário para levantamento de dados para análise de romance 1. Análise do enredo a) reconstituição da história o que conta o romance? b) começo e epílogo do romance como se organiza o relato? c) andamento da ação qual o ritmo do narrado? 2. Análise do tempo Quando se passa a história que tempo ela abrange? É possível medir o lapso temporal? Trata-se de um romance de tempo cronológico ou de tempo psicológico? Há algum uso especial do tempo psicológico? Que importância tem isso? 3. Análise do espaço Onde ocorre o relato? Que lugares são descritos e quais as locações privilegiadas? Há preocupação com a paisagem? Que ambientações predominam? Externas? Internas? 4. Análise dos personagens Quantos são os personagens? I - Quais os personagens principais e quais os secundários? Faça uma análise dos personagens principais: como são? são analisados psicologicamente? que tipo de comportamento têm? Existe algum personagem-tipo? 5. Análise do foco narrativo Quem conta a história? Existe onisciência narrativa?
Existe intromissão do narrador? Isso é importante? 6. Análise da linguagem Qual o tipo de discurso predominante direto, indireto ou indireto-livre? Existe descrição? Comentar. Como é a narração? Há dissertação? 7. Comentário final Que tipo de níveis o romance oferece? Quais são os temas enfocados? Que tipo de mensagem foi transmitida? Que tipo de crítica social se teceu? O TEXTO-BASE PARA A APLICAÇÃO DESTA PROPOSTA SENHORA, DE JOSÉ DE ALENCAR. 1. Análise do enredo a) reconstituição da história Aurélia Camargo vive com sua mãe, D. Emília Lemos, e seu irmão Emílio, num subúrbio do Rio de Janeiro. É noiva de Fernando Seixas e estão para se casar, quando o rapaz a abandona por outra mulher, por causa de um dote. Aurélia, que continua apaixonada por Fernando Seixas, recebe uma herança inesperada que lhe dá a oportunidade de reconquistar o noivo e também vingar-se dele. Como Aurélia ainda não tem 21 anos, seu tio e tutor Lemos toma as rédeas de sua fortuna e propõe a Seixas um casamento com uma moça de grande dote, com a condição de que ele não a conheça antes do casamento. Seixas concorda (porque está muito endividado) e assina um recibo. Ao saber que a noiva é Aurélia, fica muito feliz, pois ainda a amava. Na noite de núpcias, Aurélia revela-lhe a verdade que ele é um homem vendido. Expulsa-o do quarto. O relacionamento dos dois se torna hipócrita, porque, para os outros, eles representam um casal perfeito. A sós, Aurélia o trata como sua proprietária e Seixas aceita, porque não saldou a sua dívida, Até que um dia, o rapaz reúne a quantia necessária para pagar Aurélia, ficando, assim, resgatado. Desse modo, reconquista o amor de sua mulher e o casal vive feliz para sempre. b) começo e epílogo do romance A história de Senhora, reconstituída no item a numa seqüência de acontecimentos, não é narrada dessa forma no romance, que é cheio de idas e vindas do presente para o passado e vice-versa. O conteúdo do enredo está dividido em 4 partes e cada uma delas recebe um nome especial: 1ª parte: O preço (13 capítulos) 2ª parte: Quitação (19 capítulos) 3ª parte: Posse (10 capítulos) 4ª parte: Resgate (9 capítulos)
A 1ª parte é um apanhado geral da situação de Aurélia rica-herdeira, já rompida com Seixas. A 2ª parte é um flashback, que retrocede à origem do drama, à história de Aurélia e às causas que a levaram a praticar a sua vingança. A 3ª parte é um apanhado sobre a difícil vida de casados dos protagonistas, que aparentemente não se amam. A 4ª parte é a reconciliação triunfal (epílogo). c) andamento da ação A ação do romance se centraliza em torno da complicada convivência entre dois seres que, aparentemente, se odeiam. O andamento da ação é bem dosado, bem elaborado, sendo que a 2ª parte do romance que é a mais longa traz um detalhadíssimo flashback para justificar a razão pela qual Aurélia, que era paupérrima, ficou tão rica. Assim, os passes narrativos que são dados nessa 2ª parte chamada de Quitação, têm os seguintes núcleos: D. Emília Lemos se casa secretamente com Pedro de Sousa Camargo e o casal tem dois filhos: Emílio e Aurélia; Pedro rompe relações com seu pai, o fazendeiro Lourenço de Sousa Camargo; Pedro morre e, logo depois, Emílio também morre, ficando D. Emília e Aurélia na miséria; Aurélia fica noiva de Seixas, que a deixa por Adelaide; O velho Lourenço morre e deixa toda a sua herança para a neta O andamento detalhado da ação, nessa 2ª parte, determina pontos centrais de enredos românticos: matrimônio secreto, orfandade dos filhos, herança inesperada, sofrimentos impostos pelo destino. No romance há ações secundárias, que gravitam em torno da ação central que é o casamento entre Aurélia e Seixas. Uma delas é o casamento entre a Amaralzinha e Torquato Ribeiro, moço pobre, que Aurélia trata de prover d um dote, para que a Amaralzinha possa sair de seu caminho 2. Análise do tempo Senhora é um romance típico de tempo cronológico. Os fatos temporais dizem respeite à cronologia histórica, desde o início da narração: Há anos raiou no céu fluminense uma nova estrela Tinha ela 18 anos quando apareceu pela primeira vez em sociedade. Uma noite, no Cassino, a Lísia Soares, que fazia-se íntima com ela... A pormenorização cronológica prossegue no capítulo II: Seriam nove horas do dia. Um sol ardente de março esbate-se nas venezianas... Etc. Igualmente, no capítulo II, a narração começa com a notação temporal: Era hora do almoço. Seriam nove horas do dia. Um sol ardente de março esbate-se nas venezianas...
etc. Igualmente, no capítulo III, a narração começa com notação temporal: Era a hora do almoço. O narrador se preocupa em dar, sempre, pistas de que as coisas acontecem em sucessão matemática: Resolvia na mente as recordações da noite anterior. Assim prossegue o narrador por toda a primeira parte do relato que compreende 13 capítulos. Ao iniciar a segunda parte, novamente se preocupa com a perfeita localização temporal, para que o leitor não se perca: o narrador vai começar um flashback para contextualizar a maneira como Aurélia ficou rica: Dois anos antes deste singular casamento, residia à Rua de Santa Teresa uma senhora pobre e enferma Dentro do flashback, cuja função e dar conta de fatos ocorridos anteriores ao acontecimento principal do relato, igualmente o tempo é cronológico. Haviam decorrido doze anos depois do casamento de Pedro Camargo e estava ele com trinta e seis quando seu caráter fraco e irresoluto foi submetido a uma prova cruel. De sorte que, se continuarmos esse mapeamento de tempo, verificaremos que o narrador o usa disciplinadamente, sem momentos de análise ou verticalidade. Trata-se do uso modelar do tempo cronológico. 3. Análise do espaço O lugar dos acontecimentos, em Senhora, é totalmente urbano. O espaço fechado é privilegiado. Ora a ação se passa dentro da ópera, ora dentro do Cassino. As vezes, é o salão de baile que sobressai. Outras vezes, é um cômodo da casa, um quarto. Para exemplificar esse espaço fechado, vejamos como o narrador descreve o espaço no capítulo II, da 1ª parte: Havia à rua do Hospício, próximo ao campo, uma casa que desapareceu com as últimas reconstruções. Tinha três janelas de peitoril na frente; duas pertenciam à sala de visitas, a outra a um gabinete contíguo. O aspecto da sala revelava, bem como seu interior, a pobreza da habitação. A mobília da sala consistia num sofá, seis cadeiras, dois consoles de jacarandá, que já não conservavam o menor vestígio de verniz, O papel da parede de branco passara a amarelado (...). Havia no aposento uma cômoda de cedro que também servia de toucador, um armário de vinhático, uma mesa de escrever, e finalmente a marquesa, de ferro, como o lavatório, e vestida de mosqueteiro verde. Tudo isso, se tinha o mesmo ar de velhice dos móveis da sala, era como aquele cuidadosamente limpo e espanejado, respirando o mais escrupuloso asseio O espaço mais importante do romance é, sem dúvida alguma, o aposento nupcial, onde acontece o drama principal, que é a vingança de Aurélia contra Seixas. Trata-se do capítulo XIII da 1ª parte, em que se nota como o narrador dispensou extremo cuidado na descrição: Afastemos indiscretamente uma dobra do reposteiro que recata a câmara nupcial. E uma sala em quadro, toda ela de uma alvura deslumbrante, que realça o azul celeste do tapete de rico recamado de estrelas e a bela cor de ouro das cortinas e do estofo dos móveis.
A um lado, duas estatuetas de bronze dourado representando o amor e a castidade (...). (...) percebe-se o molde elegante de uma cama de pau-cetim predicamente em seus véus nupciais (...). Esse detalhamento esmerado na descrição do espaço da câmara nupcial não significa que o narrador se descuide de outros lugares, na narrativa., Existe uma preocupação de contextualizar o leitor, a todo momento: (...) residia à rua de Santa Teresa uma mulher pobre e enferma Seixas ouvira falar da menina de Santa Teresa (...). Fernando freqüentou assiduamente a modesta casa de Santa Teresa. A/essa casa da Rua das Mangueiras morava o Tavares do Amaral, empregado da alfândega. Mas, embora se perceba que o narrador não deixa o leitor descontextualizado, a grande preocupação é sempre em descrever com maior riqueza o espaço fechado. O quarto de Fernando, na terceira parte, é exemplo disso: O rico toucador, esclarecido por duas arandelas de cristal com velas cor-de-rosa, ostentava os primores do luxo (...) Seixas aproximou-se da elegante escrivaninha de mirapininga, e a abriu. Ainda chegou a puxar a parte de chamalote escarlate (...) O ambiente externo só raras vezes vem descrito: A noite estava plácida e serena. Aio céu recamado de estrelas, a brisa cariciava uns froços de nuvens alvas como a penugem das garças. Uma onda trépida garrulava na bacia de mármore coberta de nenúfares (...).O arvoredo, que recortava-se bizarramente no horizonte luminoso como um relevo gótico, estremecia como um relevo gótico, estremecia com o doce arrepio da aragem, que esparzia os aromas das rosas e das magnólias. O número de personagens, no romance, é limitado. Cabe ao ficcionista dosar a presença deles, no sentido de não povoar a sua narrativa desnecessariamente. Há personagens principais (protagonistas) e personagens secundários (antagonistas). Haverá 4. Análise dos personagens a) personagens protagonistas O personagem feminino central do romance é Aurélia, cujas primeiras características aparecem já na 1ª página da narração: Era rica e formosa. Duas opulências que se realçam como a flor no vaso de alabastro; dois explendores que se refletem como o raio do sol no prisma do diamante. Vamos, aos poucos, sabendo de outras características dela: Tinha 18 anos, era órfã, tinha a expressão cheia de desdém e um certo ar provocador, que eriçavam a sua beleza aliás tão correta e cinzelada para a meiga expansão d alma Já o próprio narrador faz menção a uma duplicidade no caráter da moça, apontando para sua esfericidade: Se o lindo semblante não se impregnasse constantemente, ainda nos momentos de cisma e distração dessa finta de sarcasmo, ninguém veria nela a verdadeira fisionomia da Aurélia, e sim a máscara de alguma profunda decepção.
De modo que a descrição de Aurélia, feita aos capítulos I e II da 1ª parte, toma duas direções: exterior e interior, conforme ela esteja em sociedade, nos salões de baile na corte, ou no isolamento de seu escritório. No convívio com os outros, Aurélia é sarcástica, altiva e fria, a zombar constantemente dos que se aproximam dela. Na intimidade é doce, sonhadora, cheia de uma indisfarçada amargura, como se carregasse nos ombros um grave problema: Reclinada na conversadeira com os olhos a vagar pelo crepúsculo do aposento, a moça parece imersa em intensa cogitação. O recolho apaga-lhe no semblante, como ao porte, a reverberação mordaz que de ordinário ela desfere de si, como a chama sulfúrea de um relâmpago. Sombreia o formoso semblante uma tinta da melancolia que não lhe é habitual desde outro tempo e que não obstante se diria o matiz mais próprio das feições delicadas. O perfil de mulher, conforme é o subtítulo do romance, proporciona, portanto: a visão de uma mulher ambígua, que ora é suave e meiga, ora é sarcástica e irônica; a imagem de uma mulher delicada, vaporosa (um talhe de sílfide ) ao lado da imagem de uma mulher forte e decidida ( da leoa ferida ); a imagem de uma doce namorada ( seria difícil conhecer a quem mais adorava a gentil menina, e de quem mais vivia, se do homem que visitava todos os dias ao cair da tarde, se do ideal que sua imaginação copiara daquele modelo ); a imagem de uma mulher calculista ( era uma expressão fria, pausada, inflexível, que jaspeava a sua beleza, dando-lhe quase a gelidez da estátua. Mas no lampejo de seus grandes olhos pardos brilhavam as irradiações da inteligência ). Por outro lado, o narrador faz questão de oferecer uma imagem de Aurélia em que fica acentuada a perfeição física e moral, numa composição que lembra bastante o modelo dos clássicos. Esse deslize de José de Alencar é, aos poucos, corrigido quando ele propõe a visão romântica da reconciliação, no final. Fernando Seixas é o protagonista masculino e corresponde à seguinte descrição física, feita no capítulo V: É um moço que não chegou aos trinta anos. Tem uma fisionomia tão nobre, quanto sedutora; belos traços, tez finíssima, cuja alvura realça a macia barba castanha. Os olhos rasgados e luminosos, às vezes coalham-se em um enlevo de ternura (..) que há de torná-los irresistíveis quando o amor os acender A boca vestida por um bigode elegante, mostra o seu molde gracioso, sem contudo perder a expressão grave e sóbria, que deve ter o órgão da palavra viril. (..) E esbelto sem magreza, e de elevada estatura Seus traços correspondem aos de um perfeito herói é belo, nobre, viril. Seixas mantém um alto padrão social, embora pobre. Daí vem a sua dupla existência, conforme o narrador. Homem da família no interior da casa, partilhando com a mãe e as irmãs a pobreza herdada, tinha na sociedade, onde aparecia sobre st a representação de um moço rico. Trata-se de um herói honesto como todos os heróis devem ser, que se vende com a desculpa de que por amor tudo se pratica: Era incapaz de apropriar-se do alheio, ou de praticar um abuso de confiança; mas professava a moral fácil e cômoda, tão cultivada atualmente em nossa sociedade. Segundo essa doutrina, tudo é permitido em matéria de amor.
Seixas é mundano, mimado pelas mulheres de sua família e indivíduo voltado à sedução da vida de opulência. Com o passar dos acontecimentos e com a imposição do castigo de Aurélia, vai se purificar tornar-seá resignado e disposto a expiar culpas. b) personagens antagonistas A rival de Aurélia é Adelaide Amaral, a Amaralzinha. Ela ficou noiva de Seixas, que foi atraído pelo seu dote. Na verdade, o jovem Seixas não a ama. Quem realmente gosta dela é o Dr. Torquato Ribeiro no que é correspondido. A Amaralzinha é assim descrita: uma menina galante, bem educada, toca piano perfeitamente, tem uma voz muito agradável. Afora a Amaralzinha, o romance carece de outros antagonistas. A certa altura, pode-se dizer que Aurélia funciona como antagonista de Seixas, em face do tratamento vingativo que dispensa a ele. c) personagens figurantes D. Firmina Mascarenhas, personagem de fundo, espécie de dama de companhia de Aurélia, é, sem dúvida, uma figurante. Quase nada tem a desempenhar no enredo. Velha viúva, ela é uma componente do cenário. A propósito de seu papel ornamental, ela tem uma gordura semi-secular. Outros personagens ocasionais que podem ser arrolados: D. Camila, mãe de Seixas; as duas irmãs de Seixas; Pedro de Sousa Camargo e D. Emília Lemos Camargo pais de Aurélia; o velho Lourenço de Sousa Camargo avô paterno de Aurélia, que lhe deixa a sua herança; Emílio, o irmão de Aurélia. d) personagem-tipo Lemos é, sem dúvida, a grande caricatura que aparece no romance. A sua aparição já é descrita a partir desse ponto de vista caricaturesco: Era o Sr. Lemos um velho de pequena estatura, não muito gordo mas rolho e bojudo como um vaso chinês. Apesar do seu corpo rechonchudo tinha certa vivacidade buliçosa e saltitante que lhe dava petulâncias de rapaz, e casava perfeitamente com os olhinhos de azougue. Logo à primeira apresentação, reconhecia-se o tipo desses folgazões que trazem sempre um provimento de boas risadas com que se festejam a si mesmos. Geralmente, é sob um ângulo pejorativo que o narrador enfoca a sua figura. O Lemos ficara roxo de vermelho que já era, e para disfarçar o seu vexame remexia a cabeça meio desinquieto, com o dedo a repuxar e alargar o colarinho, como se este o sufocasse. Geralmente, os personagens do romance são planos. Pode-se dizer que Seixas é semiplano, pelo tipo de pequenas mudanças sofridas. Esférico, só mesmo Aurélia, a quem o narrador dispensa um tratamento bem pormenorizado do aspecto psicológico.
5. Análise do foco narrativo O foco narrativo, em Senhora, é do tipo onisciente. O narrador conhece todos os pormenores e acompanha os personagens em todos os pensamentos. Esse tipo de foco narrativo se desloca aqui e ali, acompanhando tudo, como se fosse cameraman. Sirvam de exemplo os seguintes trechos: Era a hora do almoço. As duas senhoras puseram-se à mesa A moça aproximou-se do sofá, reclinou-se para o irmão, que sem mudar de posição cingiu-lhe o co/o com braço esquerdo atraindo-a a jeito de pousar-lhe um beijo na face. Fernando saiu contrariado. Com a vida que tinha, avultava a sua despesa Um efeito importante que a onisciência narrativa provoca é a sensação de dirigir o leitor: Afastemos indiscretamente uma dobra do reposteiro que recata a câmara nupcial. Tornemos à câmara nupcial, onde se representa a primeira cena do drama original, de que apenas conhecemos o prólogo. 6. Análise da linguagem Senhora oferece forte exemplo do uso do recurso de linguagem mais comum dos romances lineares (ou seja, romances que progridem do passado para o presente): todo o primeiro capítulo que funciona como um prólogo é uma narração. Quando surge a necessidade de reconstituir o passado de Fernando, o narrador começa outra longa narração. As narrações, em Senhora, servem para preparar as cenas de maior densidade. Outro recurso importante, utilizado em Senhora, é o discurso direto: Ex.: Que tal a Amaralzinha, D. Firmina? A velha fez semblante de recordar-se. - A Amaralzinha... E aquela moça toda de azul? Com espigas de prata nos cabelos e nos apanhados da saia: simples e de muito bom gosto. Pode-se notar que se trata de um diálogo ágil, sem muita referência do narrador (vale dizer, sem muito auxílio dos verbos discendi): - Diga-me uma coisa, D. Firmina! - O que é, Aurélia? - Mas há de ser franca, promete-me? - Franca? Mais do que eu sou, menina? Se é este o meu defeito!... Outro recurso de que se vale o narrador é a descrição, quase sempre utilitária, isto é, com vistas a oferecer um reforço para o que o narrador está exaltando (se for a pobreza, por exemplo, descrever-se-á um aposento pobre). Exemplo acabado de descrição é o quadro de Fernando, enquanto vive na pobreza. O narrador faz questão de chamar a atenção para contrastes: Outra singularidade apresentava essa parte da habitação; era o frisante contraste que faziam com a pobreza carranca dos dois aposentos certos objetos, e de uso do morador.
Assim no recosto de uma das velhas cadeiras de jacarandá via-se neste momento uma casaca preta, que pela fazenda superior, mas sobretudo pelo corte elegante e esmero do trabalho, conhecia-se ter o chique da casa do Raunier, que já era naquele tempo o alfaiate da moda A dissertação, entendida como exposição de conceitos, é também utilizada pelo narrador. Sirva de exemplo o seguinte discurso sobre a riqueza: A riqueza também tem sua decência. (...) Os pobres pensam que só temos gozos e delícias; e mal sabem a servidão que nos impõe esta gleba dourada. Incomoda-lhe andar de carro? E a mim não me tortura este luxo que me cerca? Há cilício de clima que se compare a estes cilícios de tu/e e seda que eu sou obrigada a trazer sobre as carnes, e que me estão rebaixando a todo o instante, porque me lembram que aos olhos deste mundo, eu, a minha pessoa, a minha alma, vaie menos do que esses trapos?. 7. Comentário final Senhora traça um perfil social amargo e romântico do Brasil de outrora (ou de hoje em dia, se quisermos colocar personagens contemporâneos nos papéis). E uma história de amor, mas também é uma história de interesses comerciais. Não foi à toa que a história se dividiu em episódios cujos nomes dizem respeito a transações bancárias: O preço, Quitação, Resgate e Posse. Inúmeras são as vezes, no romance, em que a conversa se dirige para o campo financeiro, elemento único que garante (segundo a ideologia burguesa) a felicidade da família. Outro aspecto muito diferenciado desse romance é o tratamento dispensado à mulher. Pode-se dizer que é o primeiro em que a figura feminina sobressai como dona de seu destino, sem estar atrelada intelectualmente a um homem.