O URBANO E O RURAL: DISCUSSÕES TEÓRICAS E PESPECTIVAS DE ANÁLISE Cláudio Smalley Soares Pereira (URCA/CNPq) 1 Resumo: As discussões sobre a constituição de um modo de vida pós-revolução Industrial emergiram com vigor através das ciências sociais no fim do século XIX. Surge, a partir da invenção da máquina e de sua inserção no processo produtivo, uma nova organização social, modificando a estrutura política, econômica, cultural e filosófica herdadas da Idade Média pelo Feudalismo, as quais eram predominantemente agrárias. Um novo espaço começa a surgir e novas formas de relações sociais aparecem, agora sob o predomínio das atividades urbano-industriais, engendrando novas formas de pensar, sentir e viver. Os sociólogos foram os primeiros a discutir a influência da industrialização nas formas de sociabilidade e de interação social protagonizadas pelos indivíduos em sociedade. Os geógrafos começam a dar a sua contribuição a partir do início do século XX, com a busca do entendimento do espaço criado pela indústria. Nesse sentido, as duas disciplinas, com perspectivas de estudo que apresentam proximidades e distanciamentos, dão uma grande contribuição a um debate que permeia até a contemporaneidade, a saber, a discussão sobre o urbano e o rural. O presente artigo constitui uma reflexão acerca da contradição urbano/rural enquanto ferramenta de análise para o entendimento da realidade atual. São enfocadas duas perspectivas de análise distintas, primeiramente a da Escola de Chicago, com seus principais autores e suas abordagens sobre o urbano e o rural; posteriormente, abordou-se o pensamento do filósofo francês Henri Lefebvre. Ambas são discutidas e analisadas no intuito de conhecer suas contribuições para a explicação do mundo atual. Palavras-chave: urbano, rural, Sociologia, Geografia. Introdução Vivemos em um mundo permeado de transformações que atingem todas as esferas da vida social. A técnica e a ciência configuram a cada dia que passa um meio geográfico informatizado e cada vez mais obediente a uma racionalidade vertical, seguindo os interesses do capital. O espaço passa, nesse contexto, por notórias mutações que vão do local ao global, influenciando a dinâmica da sociedade e denotando novas configurações territoriais cada vez mais complexas, interferindo no cotidiano das pessoas e nas relações sociais que elas estabelecem. Dentre tais transformações observadas na sociedade atual, o plano teórico e prático sobre as questões referentes ao urbano e ao rural atinge o ápice do debate. Tais conceitos vêm sendo discutidos desde o início do século XX e ainda hoje suscitam pesquisas e direcionam questionamentos teóricos e práticos na sociedade atual. No presente trabalho, pretende-se oferecer ao leitor uma análise da discussão das categorias urbano e rural no que se refere a uma leitura interdisciplinar, contemplando o ponto de vista geográfico, mas tomando de empréstimo as contribuições teóricas de outras áreas do saber, como a Sociologia e a Filosofia, respectivamente. O caminho metodológico usado para a realização do presente trabalho consiste em revisão bibliográfica da contribuição de diversos autores acerca da discussão entre as categorias urbano e rural. Sendo assim, o plano teórico é privilegiado na análise que se segue, pois diz respeito a uma realidade que está no cerne das discussões já há muito tempo e que vem provocando muitos debates dentro da academia recentemente. 1 Graduando em Geografia pela Universidade Regional do Cariri URCA. Bolsista de Iniciação Científica do CNPq. E-mail: clasmalley@hotmail.com. Pesquisador do grupo de pesquisa GEOMAC (Geografia, Meio Ambiente e Cidadania) cadastrado no CNPq. É orientando do Prof. Dr. João César Abreu de Oliveira. 71
Destarte, aborda um estudo interdisciplinar, onde estão presentes as contribuições de sociólogos, geógrafos e filósofos, os quais versam sobre perspectivas teórico-metodológicas diferenciadas, mas se ocupam do mesmo objeto de estudo, a problemática urbano-rural. O trabalho consiste, então, em uma análise da contribuição de duas 2 escolas de pensamento distintas, a saber: a da Escola de Chicago, que influenciou bastante e ainda influencia os estudos sobre o urbano e o rural, marcada por um forte aspecto empirista e positivista; e a perspectiva crítica, pautada nas idéias marxianas, sobretudo com a contribuição de Henri Lefebvre. Mostrar-se-á a contribuição teórica dessas duas perspectivas de análise para o entendimento da realidade dessa contradição na atualidade, enfocando temáticas como as relações sociais, o espaço e o modo de vida. A Sociologia, a Geografia e o debate urbano-rural: breve contextualização histórica As discussões sobre a constituição de um modo de vida pós-revolução Industrial emergiram com vigor através das ciências sociais no fim do século XIX. Surge, a partir da invenção da máquina e de sua inserção no processo produtivo, uma nova organização social, modificando a estrutura política, econômica, cultural e filosófica herdadas da Idade Média pelo Feudalismo, as quais eram predominantemente agrárias. Um novo espaço começa a surgir e novas formas de relações sociais aparecem, agora sob o predomínio das atividades urbano-industriais, engendrando novas formas de pensar, sentir e viver. Os sociólogos foram os primeiros a discutir a influência da industrialização nas formas de sociabilidade e de interação social protagonizadas pelos indivíduos em sociedade. Os geógrafos começam a dar a sua contribuição a partir do início do século XX, com a busca do entendimento do espaço criado pela indústria. A Sociologia foi uma das pioneiras na discussão da temática urbana do ponto de vista científico. Este fato pode ser observado nos trabalhos de Simmel (1979) 3 e Weber (1979) no final do século XIX e início do século XX. Outros autores que vieram posteriormente também colocaram o urbano-rural nas suas discussões, como, por exemplo, os norte-americanos Park (1979) e Wirth (1979), ambos pertencentes à Escola de Chicago. Na Geografia, a discussão a respeito da cidade vem desde a época de Ratzel, mas somente na década de 1920 é que haverá uma preocupação mais científica com o estudo do espaço urbano do ponto de vista geográfico (ABREU, 1994). Por outro lado, a discussão sobre o campo só aconteceu no início da década de 1950, com a transformação das relações sociais e o desenvolvimento do sistema urbano-industrial (FERREIRA apud SUZUKI, 2007). Na década de 1950 e 1960, a Sociologia começa a abordar os estudos urbanos e rurais, sobretudo, este último, em uma nova perspectiva, a qual será sedimentada nos anos 1970 e 1980 como uma nova vertente teórica, baseada fundamentalmente nas idéias de Karl Marx. São os estudos de Henri Lefebvre sobre a urbanização, a sociedade urbana e as transformações propiciadas pela industrialização, que vão fundamentar a grande maioria de pesquisas, sejam elas teóricas ou práticas, engendradas pelos sociólogos e geógrafos marxistas após a década de 1970. 2 Sabemos da existência de outras perspectivas de análise sobre o urbano e o rural. No entanto, para a nossa argumentação apenas as duas correntes citadas foram escolhidas, por formarem um corpo teórico-conceitual e empírico solidificado nas pesquisas urbanas e rurais. 3 O artigo original Die Grosstädte und das Geistesleben discute o modo de vida urbano e a influência da cidade no pensamento e nas atitudes do ser humano. Foi publicado originalmente em 1903, em uma conferência proferida pelo Georg Simmel (1858 1918) na Exposição das Cidades, em Dresden Alemanha, em 1902-1903. No Brasil foi publicado pela primeira vez no livro O Fenômeno Urbano com o título A Metrópole e a vida Mental, organizado por Otávio Velho no final da década de 1960. Cf. VELHO, Otávio (Org.). O Fenômeno Urbano. 4. ed. Rio de janeiro: Ed. Guanabara, 1979. 72
Cidade e campo, urbanidade e ruralidade, urbanização e ruralização são algumas das contradições que permeiam as discussões a respeito dessas realidades (urbana e rural) que são, ao mesmo tempo, contrárias e complementares. Dentro do debate, duas perspectivas sobressaem no tocante à discussão sobre o que seria urbano e rural. A primeira diz respeito a ambas como modo de vida; e a segunda trata do urbano enquanto processo histórico, que modifica as relações sociais e os espaços urbanos e rurais. Destarte, essas duas perspectivas se complementam. A perspectiva da Escola de Chicago A Escola de Chicago é uma corrente norte-americana da Sociologia, também conhecida como Escola de Ecologia Humana, a qual teve sua criação na cidade de Chicago, nos Estados Unidos. Essa escola de pensamento foi fundada por Robert Ezra Park em 1915 com a publicação do artigo The City: Suggestion for the Investigation of Human Behavior in the City Environment 4. Essa corrente sociológica utilizava o pensamento de Robert Spencer e seu darwinismo social nos estudos relacionados ao espaço urbano (CORRÊA, 1993). Essa perspectiva de estudo da realidade urbana se baseou na forma como a cidade de Chicago crescia repentinamente, surgindo bairros periféricos, segregação sócioespacial, imigração, crescimento demográfico, criminalidade, desordens sociais entre outros. O sociólogo Max Weber (1979) não fez parte da Escola de Chicago, mas seu pensamento sobre a cidade influenciou a discussão dentro do debate na Sociologia como um todo. Ele discute essa questão da cidade do ponto de vista econômico e político, enfocando as transformações pertinentes às funções urbanas, que definem o papel que a cidade exerceria. Quem influenciou decisivamente os pensadores da Escola de Chicago foi Georg Simmel (1858-1918). Seu pensamento sobre a cidade refletia sobre como ela, a cidade (sobretudo a grande cidade) e o dinheiro influenciavam a vida social e provocavam atitudes psíquicas de forma individualizada. O dinheiro e a vida na grande cidade teriam uma forte influência na vida mental dos indivíduos, diferentemente da vida no campo ou até mesmo na pequena cidade, provocando o que ele chamou de atitude blasé (SIMMEL, 1979). Para os seus seguidores e fundadores da Escola de Chicago, a cidade era como um laboratório social, onde foram empregadas técnicas e teorias para o estudo no ambiente urbano de forma etnográfica. O empirismo era a marca dessa corrente e o método era o positivismo, baseado na observação e descrição dos fenômenos que ocorriam no espaço dos grandes centros urbanos (SANT ANNA, 2002). Park (1979), considerado fundador da Escola de Chicago, coloca seu ponto de vista sobre os processos sociais que aconteciam no meio urbano merecedores de uma investigação mais detalhada. Sobre as relações sociais e o modo de vida na cidade, acompanhada do desenvolvimento e do crescimento urbano, ele nos diz que a natureza geral dessas mudanças é indicada pelo fato de que o crescimento das cidades foi acompanhado pela substituição de relações diretas, face a face, primárias, por relações indiretas, secundárias, nas associações de indivíduos na comunidade (PARK, 1979, p. 46). Louis Wirth (1979), outro representante da Escola de Chicago, discutiu o urbano, ou melhor, o urbanismo 5. Para ele, o urbanismo é tido como um modo de vida que é específico de quem habita a cidade. A cidade é marcada por um tipo de vivência onde prevalecem as relações secundárias, de negociações, onde 4 Em português foi publicado com o título de A Cidade: sugestões para investigação do comportamento humano no meio urbano em VELHO, Otávio (Org.). O Fenômeno Urbano. 4. ed. Rio de janeiro: Ed. Guanabara, 1979. 5 O artigo original se chama Urbanism as way of Life (O urbanismo como modo de vida). Publicado em The Americam Jorurnal of Sociology, em 1938. 73
os interesses pessoais, influenciados pela heterogeneidade encontrada no espaço urbano, na forma e na estrutura social, prevalecem. Já no campo prevalece o oposto; são relações primárias, face a face, onde há um sentimento 6. Contudo, o modo de vida urbano não se restringe aos limites físicos da cidade, pois os desenvolvimentos tecnológicos no transporte e na comunicação, que virtualmente assinalam uma nova época na história humana, acentuam o papel das cidades como elementos dominantes na nossa civilização e estenderam enormemente o modo de vida urbano para além dos limites da própria cidade (WIRTH, 1979, p. 93, grifo nosso). Sendo assim, a cidade se apresenta como o espaço da diferença, da diversidade, como também da exclusão e da segregação. O urbano é colocado nessa perspectiva como modo de vida específico de quem vive na cidade, mas que extrapola os limites da urbe. Para Wirth, a cidade exerce influência sobre o modo como as pessoas se comportam, mas essa influência não é capaz de eliminar completamente modos de associação humana que predominavam anteriormente (WIRTH, 1979, p. 91-92). A vertente crítica e a contribuição de Henri Lefebvre Henri Lefebvre (1901-1991) foi um filósofo marxista que viveu quase o século XX inteiro, presenciando intensas transformações nas relações sociais, na política, na vida cotidiana, no espaço e no tempo. Seu pensamento é muito amplo e ao mesmo tempo complexo por se tratar de um contexto eminentemente filosófico 7, sendo difícil tentar buscar uma síntese da sua contribuição intelectual. A reflexão aqui apresentada se refere a um dos momentos 8 da obra do grande pensador francês. O referido período é no final da década de 1960 e primeira metade da década 1970, durante a qual o autor faz uma intensa incursão a respeito da realidade urbana, fato esse que lhe rendeu a publicação de sete livros e a fundação de uma revista 9. Lefebvre passou a discutir as questões relacionadas ao urbano e ao rural a partir das transformações que ele presenciava na sua terra natal, na Região dos Pirineus (sudoeste da França), onde o modo de vida rural estava sendo modificado pelas intervenções do Estado. A partir da análise dessas intervenções estatais sobre os territórios dos Pirineus Atlânticos 10, Lefebvre começou a discutir as questões voltadas para o modo de vida rural, estando algumas das suas primeiras produções nessa perspectiva, no final da década de 1940 e 1950, voltadas para a Sociologia Rural (da qual resultou sua tese de doutorado em 1954 11 ), passando depois pela Sociologia do Cotidiano e Sociologia Urbana (VEIGA, 2004). Para Lefebvre (apud ENDLICH, 2006), o rural se refere a uma comunidade de homens débeis em relação à natureza, os quais dispõem de precária condição técnica para a produção de sua sobrevivência. São grupos sociais coesos que produzem sua sobrevivência através de um árduo trabalho no campo. É característica dessa forma de agrupamento social as relações sociais de base patriarcal, onde os pais eram extremamente rígidos, intolerantes. Existia uma alta taxa de natalidade e mortalidade infantil. O trabalho nesse tipo de comunidade era baseado na coletividade. Sendo assim, era uma sociedade 6 Mesmo com a expansão das relações capitalistas para o campo, este ainda apresenta características que o distinguem da cidade em termos de conteúdo, ou seja, nas formas de sociabilidade, com mais proximidade e sentimento de pertencimento com o lugar. 7 Lefebvre é filósofo de formação. Foi professor da Faculdade de Nanterre de Sociologia na França. 8 Sobre os momentos da obra de Lefebvre, consultar MACHADO, 2008. 9 Os livros são os seguintes: Le detroit à la ville - 1968 (O direito à cidade); Du rural a lúrbain 1970 (Do rural ao urbano); La revolucion urbaine 1970 (A revolução urbana); La pensée marxiste et la ville 1972 (o pensamento marxista e a cidade); Espace et politique, Droit à la ville II - 1973 (Espaço e política); e La Production de l espace 1974 (A produção do espaço). A revista é a Espace et societ - 1970 (Espaço e sociedade) onde constava a participação de Bernard Kayser e Manuel Castells dentre outros especialistas. 10 Conforme Soja (1993), Lefebvre desenvolveu o interesse para estudar o espaço a partir das transformações ocorridas nos Pirineus Atlântico, transformações que ele chamou de emergência de uma nova prática social e política (p. 64). 11 Ver em Martins (2000) LEFEBVRE, Henri. La Vallée de Campan (Étude de Sociologia Rurale), Presses Universitaires de France, Paris, 1963. 74
extremamente autoritária e permeada de costumes e expressões de disciplina coletiva (ENDLICH, 2006, p. 24). Mas isso tudo começou a mudar quando as estruturas rurais foram sendo corroídas pelas formas de relações capitalistas, que dissolveu a comunidade rural, abrindo espaço para relações territorializadas (residenciais). Lefebvre aponta que a dissolução da vida rural começou com o progresso na agricultura (apud ENDLICH, 2006). A partir daí a temática urbana torna-se o centro das atenções do filósofo francês. A hipótese principal de sua obra sobre a cidade e o urbano é a urbanização completa da sociedade, ou melhor, a sociedade urbana, [...] hoje virtual, amanhã real (LEFEBVRE, 2008b). Isto é, a expressão sociedade urbana não pode ser empregada a qualquer cidade ou cité; na perspectiva assim definida ela designa uma realidade em formação, em parte real e em parte virtual, ou seja, a sociedade urbana não se encontra acabada. Ela se faz. É uma tendência que já se manifesta, mas que está destinada a se desenvolver (LEFEBVRE, 2008c, p. 81, grifo do autor). Sendo assim, o urbano se apresenta como um processo, um movimento constante, uma realidade inacabada, uma virtualidade, onde o centro da contradição são as relações sociais. Nessa perspectiva, o urbano invade e corrói a vida rural, seus costumes, suas tradições, dando um sentido novo ao espaço e ao modo de vida rural. Dessa forma, [...] o tecido urbano prolifera, estende-se, corrói os resíduos da vida agrária. Estas palavras, o tecido urbano, não designam, de maneira restrita, o domínio edificado nas cidades, mas o conjunto das manifestações do predomínio da cidade sobre o campo [...] (LEFEBVRE, 2008b, p. 15, grifo do autor). É nessa perspectiva que o autor vem advertir sobre a revolução urbana. Uma revolução que será acabada quando todos tiverem o direito à cidade. Este direito provocará um novo humanismo, que dará a todos o direito à centralidade, participando da vida social urbana. As proposições lefebvrianas foram criticadas por alguns autores, a saber: Castells (2000), Harvey (1980), Kayser (1990) e Veiga (2004). Castells (2000) reconhece a importância da reflexão urbana encabeçada por Lefebvre, mas se afasta de suas proposições sobre a urbanização completa da sociedade. Ele coloca que o urbano (o espaço urbano) é uma superestrutura social, não influenciando a estrutura (a base econômica). Nesse sentido, o espaço urbano e a cultura urbana seriam um reflexo dos processos econômicos e ideológicos. Já Harvey (1980) coloca que existem paralelos entre o pensamento do francês e o seu. Contudo, para este autor, Lefebvre está próximo da utopia. Já Kayser (1990) e Veiga (2004) seguem direções opostas às colocadas por Lefebvre. Veiga (2002, 2004), por exemplo, é um dos autores que criticam esta tese lefebvriana. Para ele, é um absurdo a tese da sociedade urbana total. No entanto, Veiga é criticado 12 por trabalhar nas suas análises com dados estatísticos, desconsiderando o conteúdo de tais realidades (urbana e rural) e dando ênfase a padrões formais, como limites físicos, dados puramente matemáticos e estatísticos (CARLOS, 2007). Desse modo, conforme Carlos (2007, p. 105): o problema é que urbano e rural não são meras palavras, são conceitos que reproduzem uma realidade social concreta, e ainda completa dizendo que a simples delimitação espacial do que se acredita ser urbano ou rural nos diz muito pouco sobre os conteúdos do processo de urbanização [...]. Kayser (apud Veiga, 2004, p. 5-6) coloca uma hipótese do renascimento rural, onde aponta para uma recomposição das comunidades rurais nos países industrializados do mundo ocidental que vai sendo efetivada aos poucos, uma espécie de reconquista do espaço rural. Assim, não é demais colocar que a concepção de urbano extrapola a própria cidade, consubstanciando-se na relação cidade-campo, tendo a divisão técnica, social e territorial do trabalho na sua base (BERNARDELLI, 206, p. 33). 12 Sobre as criticas as idéias de Veiga ver CARLOS, 2007 e também SOBARZO, 2006. 75
É importante também lembrar que o rural, assim como o urbano, extrapola os seus limites físicos, fazendo das cidades um espaço descontínuo, conforme mostraram Rocha e Pizzolatti (2005) sobre a constituição de territorialidades rurais no espaço urbano. Considerações Finais As reflexões aqui apresentadas mostram dois caminhos teóricos pelo qual o debate sobre a problemática urbano-rural tem sido efetivado. São pontos de vista diferenciados, mas que enriqueceram e ainda enriquecem o debate e o desenvolvimento cada vez mais agudo dessa discussão. As perspectivas expostas aqui não encerram a discussão sobre a contradição urbano-rural. Pelo contrário, abrem mais perspectivas para se pensar a cidade, o campo, o urbano e o rural no mundo contemporâneo. Diante do exposto, constatamos a importância das idéias de Henri Lefebvre e de sua contribuição para o debate sobre a realidade urbana e rural mesmo passados mais de 40 anos de suas primeiras publicações sobre essa temática. O debate perdura ainda hoje, sendo as idéias do grande mestre francês uma fonte riquíssima para debater sobre tais pontos que concernem ao urbano e ao rural. Não é demais lembrar que suas contribuições teórico-metodológicas estão mais vivas do que nunca e que se tornam uma importante ferramenta para o entendimento e a explicação da realidade atual. Assim, as duas disciplinas, Sociologia e Geografia, com perspectivas de estudo que apresentam proximidades e distanciamentos, dão uma grande contribuição a esse debate que permeia até a contemporaneidade. REFERÊNCIAS: ABREU, Maurício de Almeida. O estudo geográfico da cidade no Brasil: Evolução e avaliação: Contribuição à história do pensamento geográfico brasileiro. In: CARLOS, Ana Fani Alessandri (Org.). Os caminhos da reflexão sobre a cidade e o urbano. São Paulo: Edusp, 1994. p. 199-322. BECKER, Howard. A Escola de Chicago. Mana, n. 2, p. 177-188, 1996. BERNARDELLI, M. L. F. H. Contribuição ao debate sobre o urbano e o rural. In: SPOSITO, M. E. B.; WHITACKER, A. M. (Orgs.). Cidade e campo: relações e contradições entre urbano e rural. São Paulo: Expressão Popular, 2006, v. 1, p. 33-52. CARLOS, Ana Fani Alessandri. Seria o Brasil menos urbano que se calcula? In: CARLOS, Ana Fani Alessandri. O espaço urbano: novos escritos sobre a cidade. São Paulo: Labur edições, 2007. p. 103 a 108 CARLOS, Ana Fani Alessandri. O espaço urbano: novos escritos sobre a cidade. São Paulo: Labur edições, 2007. CASTELLS, Manuel. A questão urbana. Trad. Arlene Caetano. São Paulo: Ed. Paz e Terra, 2000. ENDLICH, A. M. Perspectivas sobre o urbano e o rural. In: SPOAITO, M. E. B.; WHITACKER, A. M. (Orgs.). Cidade e campo: relações e contradições entre urbano e rural. São Paulo: Expressão Popular, 2006, p. 11-31. HARVEY, David. A justiça social e a cidade. Trad. Armando Correia da Silva. São Paulo: Hucitec, 1980. KAYSER, Bernard (1990) La renaissance rurale. Sociologie des campagnes du monde occidental. Paris: Armand Colin, 1990. 76
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