O RECONHECIMENTO DA UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA PELO STF: AVANÇOS, CRÍTICAS E CONSEQUÊNCIAS



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Transcrição:

O RECONHECIMENTO DA UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA PELO STF: AVANÇOS, CRÍTICAS E CONSEQUÊNCIAS Monique Ximenes Lopes de Medeiros 1 Resumo: Em termos históricos só muito recentemente podemos falar em reconhecimento de direitos aos homossexuais. O exercício da sexualidade de forma plena, incluindo todas as derivações decorrentes, em especial no que tange ao direito das famílias, ainda é algo a ser alcançado. Na atualidade observamos o poder legislativo do nosso país inerte diante dessas demandas em face da pressão de parcela da sociedade que tem se manifestado contrariamente ao reconhecimento desses direitos. Contudo, vivemos num país que a Constituição Federal denomina como Estado Democrático de Direito e, assim sendo, somente aplicaremos efetivamente o tão sonhado princípio da igualdade se reconhecermos à população LGBT todos os direitos inerentes ao ser humano e dentre eles o de constituir família e de educar/criar seus filhos. E nessa perspectiva o julgamento dos processos de ADI nº 4277/DF e ADPF nº 132/RJ pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal representou um importante passo ao reconhecer a união estável entre pessoas do mesmo sexo. A partir desse marco jurídico o artigo analisa o que muda no direito brasileiro, os pontos positivos e negativos da decisão, e quais consequências podemos esperar, em especial quanto ao acolhimento do termo família para essas uniões e a possibilidade de adoção por elas. Palavras-chaves: Judiciário; união homoafetiva; famílias; adoção. 1- Introdução É certo que as relações homossexuais existem desde tempos remotos, contudo, por diversos motivos, a sociedade não tem aceito facilmente essas uniões. No decorrer da história temos a criminalização da homossexualidade, através da qual o Direito intervinha diretamente para reprimir tais comportamentos, e também incontáveis casos de violência em que a população externava seu preconceito, seja segregando, humilhando ou agredindo as pessoas que declaravam atração sexual pelo mesmo sexo. Quando voltamos nossa visão para o mundo atual podemos constatar uma série de incongruências. Enquanto alguns países, como Espanha, Portugal e Estados Unidos já reconhecem a união de duas pessoas do mesmo sexo como entidade familiar e por consequência possibilitam o gozo dos demais direitos inerentes à família, outros, como 1 Especialista em Direito Processual e mestranda em Direitos Humanos pelo CCJ/UFPB. Email: moniqueximenes@yahoo.com.br 1

Arábia Saudita, Sudão e Irã continuam a criminalizar e castigar com pena de morte os casos de homossexualidade. No que tange ao Brasil, podemos dizer que há uma evolução no reconhecimento dos direitos aos homossexuais. As primeiras mudanças ocorreram nos campos previdenciário e fiscal. Nessa área a Receita Federal passou a aceitar a condição de dependente para aquelas pessoas do mesmo sexo que vivessem em coabitação, e na esfera previdenciária foi admitido como companheira(o) a pessoa que mantem união estável com o(a) segurado(a), seja heterossexual ou homossexual. Outros avanços também foram ocorrendo através de decisões judiciais em todo o país que declaravam a existência de uniões estáveis homoafetivas. Entretanto, o Poder Legislativo Federal, órgão cuja principal função é a elaboração de leis, permanecia inerte diante de tal realidade fática e social. Enquanto isso milhares de homossexuais brasileiros tinham sua dignidade violada pelo silêncio eloquente da legislação. Até que em maio do presente ano, em julgamento histórico, o Supremo Tribunal Federal, atuando como legislador positivo, reconheceu a união estável de homossexuais ao dar interpretação conforme à Constituição Federal ao artigo 1723 do Código Civil. Apesar da conclusão do julgamento ter sido extremamente positiva é necessário uma análise pormenorizada dos votos dos ministros da Suprema Corte para que possamos entender quais as consequências jurídicas podemos esperar desta decisão, em especial, no que tange à adoção de crianças por casais do mesmo sexo. Para tal finalidade utilizaremos o voto do ministro Celso de Melo e o áudio completo do julgamento disponibilizado no site do STF que contém a integra dos pronunciamentos dos ministros, bem como as intervenções das partes e dos amici curiae admitidos nos processos. Essa metodologia foi utilizada em face da ausência de publicação do acórdão do julgamento no Diário Oficial da União e porque foi entendida como a forma mais fiel e segura de extrair conclusões acerca dos pronunciamentos dos ministros integrantes da Corte. 2

2- A decisão do STF que equipara a união homoafetiva à união estável O julgamento do Supremo Tribunal Federal sobre o reconhecimento da união homossexual no Brasil foi decorrente da análise em conjunto de duas ações por identidade de pedidos, quais sejam, ADI nº 4237/DF interposta pela Procuradora da República e da ADPF nº 132/RJ impetrada pelo governador do Estado do Rio de Janeiro, sendo esta última convertida em ação direta de inconstitucionalidade em decorrência do prejuízo do seu pedido principal. Na sessão de julgamento houve sustentação oral das partes Procurador Geral da República e Procurador do Estado do Rio de Janeiro e de vários amici curiae, entre eles a organização não governamental Conectas, IBDFAM Instituto Brasileiro de Direito de Família, Grupo Arco-Íris, Associação Brasileira de LGBTT, Subsecretaria de Direitos Humanos de Minas Gerais e Conferência Nacional dos Bispos do Brasil 2. A participação dessas entidades da sociedade civil foi de fundamental importância na medida que possibilitou a pluralização do debate constitucional. Todos os pronunciamentos, inclusive dos ministros, foram mesclados de razão e emoção. Os fundamentos ultrapassaram a esfera jurídica para abarcar história, biologia, psicanálise e outras áreas das ciências humanas e sociais e analisaram conceitos de gênero, sexo, reprodução, instinto sexual ou libido, amor, busca da felicidade, casamento e família. Todavia, no transcorrer do julgamento vários questionamentos foram levantados. A Constituição Federal é silente sobre relações homoafetivas? E se houver silêncio isso representaria uma proibição? Qual o conceito de família? Diante da ausência de regulamentação legislativa poderia o Judiciário atuar como legislador positivo sem transbordar os limites da atividade jurisdicional? Houveram divergências entre os ministros, pois alguns entendiam que havia uma lacuna na Lei Maior sobre o assunto e outros argumentavam que não havia omissão, pois os princípios constitucionais da igualdade, liberdade e dignidade da pessoa humana indicavam apenas uma resposta para o caso em questão. Já quanto a última indagação 2 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Informativo de Jurisprudência nº 625: inteiro teor em áudio dos julgamentos da ADI 4277/DF e ADPF 132/RJ. Disponível em: <http://www.stf.jus.br//arquivo/informativo/documento/informativo 625.htm.>. Acesso em: 28/07/2011. 3

parece ter havido concordância da necessidade de interferência direta do Poder Judiciário em casos de omissão legal, com a ressalva de que tal pronunciamento não exclui a participação do Legistivo, mas a convoca. Nesse sentido é o entendimento doutrinário sobre o neoconstitucionalismo: (...) a concepção de uma Constitução como norma afeta diretamente a compreensão das tarefas legislativa e jurisdicional. (...) o modelo dedutivista de aplicação da lei pelo julgador, típico da operação lógico-formal da subsunção, revela-se inadequado no contexto de ampliação da margem de apreciação judicial, especialmente na concretização de princípios, abrindo margem para o recurso da operação argumentativa da ponderação 3. No que concerne ao conceito de entidade familiar também houveram discordâncias entre os julgadores e devido a sua importância para o tema essa problemática será explanada adiante mais detalhadamente. Mesmo diante da discrepância entre os fundamentos de cada voto, a conclusão da Suprema Corte foi unânime no sentido de dar ao artigo 1723 do Código Civil interpretação conforme à Constituição para dele excluir qualquer significado que impeça ou vede o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo. Apesar do consenso entre os ministros ter culminado na procedência das ações, os fundamentos de cada pronunciamento foram divergentes, como já indicado. Isso gera opiniões diversas envolvendo outras áreas dessa temática. Assim, faz-se indispensável a análise pormenorizada para buscar compreender possíveis posicionamentos da Suprema Corte em julgamentos futuros que envolvam os direitos dos casais homoafetivos. Nesse sentido, podemos dividir as fundamentações em dois núcleos centrais. De um lado estão os ministros que defendem a união de duas pessoas do mesmo sexo como entidade familiar e, por conseguinte, com as mesmas regras e consequências jurídicas da família e em lado oposto temos aqueles que argumentam pela união estável homossexual como diferente da união estável heterossexual, havendo mera similitude entre elas. 3 SOARES, Ricardo Maurício Freire. A interpretação constitucional: uma abordagem filosófica. In: CAMARGO, Marcelo Novelino org. Leituras Complementares de Direito Constitucional: Controle de Constitucionalidade e hermenêutica constitucional. Salvador: JusPodivm, 2008, p. 110. 4

2.1- União estável homoafetiva como entidade familiar com mesmas regras e consequências No decorrer das suas declarações, alguns ministros deixaram claro que a união homossexual à luz dos princípios constituicionais, é idêntica a união estável heterossexual e, portanto, compõe entidade familiar com todos os deveres e direitos a ela inerentes. Enquanto outros, apesar de votarem favoravelmente ao pleito, não transpareceram seus posicionamentos sobre as consequências dessa equiparação. Quanto aos primeiros destacamos os pronunciamentos dos ministros Celso de Mello e Ayres Britto. Eles foram os únicos que obiter dictum se declararam expressamente favoráveis a adoção por casais do mesmo sexo, por não comportar qualquer distinção quanto aos casais heterossexuais. O ministro Celso de Mello ao discorrer sobre o direito à busca da felicidade, liberdade, laicidade estatal, direito de constituir família independente da orientação sexual ou identidade de gênero conclui seu voto: julgo procedente a presente ação constitucional, para, com efeito vinculante, declarar a obrigatoriedade do reconhecimento, como entidade familiar, da união entre pessoas do mesmo sexo, desde que atendidos os mesmos requisitos exigidos para a constituição da união estável entre homem e mulher, além de também reconhecer, com idêntica eficácia vinculante, que os mesmos direitos e deveres dos companheiros nas uniões estáveis estendem-se aos companheiros na união entre pessoas do mesmo sexo (grifo nosso) 4. O relator Ayres Britto também se posicionou no mesmo sentido 5. Analisou a evolução do direito civil, em especial do direito de família, esclarecendo que não havia mais espaço para o viés econômico e que a união estável homoafetiva não se trata de mera sociedade de fato ou de interesseira sociedade mercantil, como já classificada por algumas decisões judiciais. Também esclareceu que a união estável e o casamento tem igual patente, não havendo inferioridade daquelas famílias não constituídas pelo casamento civil, por não 4 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Informativo de Jurisprudência nº 626. Disponível em: <http://www.stf.jus.br// arquivo/informativo/documento/informativo626.htm.>. Acesso em: 28/07/2011. 5 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Informativo de Jurisprudência nº 625: inteiro teor em áudio dos julgamentos da ADI 4277/DF e ADPF 132/RJ. Disponível em: <http://www.stf.jus.br//arquivo/informativo/documento/informativo 625.htm.>. Acesso em: 28/07/2011. 5

existir sub-família. Seriam apenas dois meios diferentes de constituição de família, sendo que o núcleo e a finalidade são idênticos. Posteriormente, ao descrever inúmeros artigos da Constituição Federal conclui que entidade familiar é sinônimo de família, sem qualquer hierarquia ou subordinação. E nessa linha de argumentação esclarece que a Constituição remete à lei a regulamentação da adoção, não fazendo qualquer distinção entre adotantes homossexuais ou heterossexuais ou adotantes casados ou não, tampouco entre adotantes no plural e no singular. Portanto, o silêncio da Carta Magna deve ser entendido como autorização e não como vedação. 2.2- União homossexual como diferente da união estável Na segunda linha de argumentação, de que a união estável homossexual é diferente da união estável heterossexual, destacamos os votos dos ministros Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Cesar Peluso 6 atual presidente da Corte. Através de análise histórica-constitucional do conceito de família Ricardo Lewandowski explica que tradicionalmente a instituição da família estava ligada ao casamento, contudo a atual Constituição não faz mais essa necessária vinculação, estabelecendo três modalidades de família: monoparental, união estável e casamento. Ressalta, ainda, que durante a Assembleia Constituinte houve amplo debate sobre a questão de gênero e se reconheceu a união estável unicamente entre homem e mulher. Portanto, o ministro defende que a união homossexual é outro gênero de entidade familiar distinto da união estável que só acontece entre homem e mulher, e neste caso seria uma quarta modalidade. Dispõe que através de uma integração analógica do art. 226, 4º da CF a correta denominação não seria união estável homossexual, mas o que ele chama de união homossexual estável. E conclui estabelecendo que a essa união homossexual estável se equiparam certos direitos da união estável heterossexual, mas somente no que não for próprio da diversidade de sexo para o seu exercício. Destarte, não necessitamos de mais palavras 6 Ibidem. 6

para entender que de acordo com o ministro Ricardo Lewandowski a adoção por casais do mesmo sexo estaria vedada. O presidente do STF na mesma linha de raciocínio destaca que às uniões entre casais do mesmo sexo só podem ser aplicadas as normas correspondentes aquelas que, no direito de família, se aplicam a união estável entre homem e mulher. Entretanto, ressalta que evidentemente nem todas, porque no seu entender não se tratam de situações absolutamente idênticas, mas de equiparação. Termina destacando que é preciso respeitar aquilo que cada instituição em si tem de particular, não apenas por sua natureza extrajurídica, mas também pela própria natureza normativa. No que tange à fundamentação do ministro Gilmar Mendes ele aduz que o reconhecimento da união entre duas pessoas do mesmo sexo deve ocorrer para evitar que a omissão gere agravamento da situação da minoria e para própria defesa de direitos fundamentais. Contudo, dispõe que a Corte não está se pronunciando sobre os desdobramentos possíveis da procedência das ações e declara que a equiparação pura e simples entre a união estável homossexual e heterossexual gera surpresas, sem estabelecer maiores esclarecimentos. Estabelece, ainda, que o artigo 1723 do Código Civil é de idêntica redação ao 226, 3º da Carta Magna, o que impossibilitaria a interpretação conforme à Constituição. Entretanto, apesar de ambos os dispositivos expressarem a união estável como ocorrida entre homem e mulher, ousamos discordar desse posicionamento apoiando a argumentação defendida pela ministra Cármen Lúcia, Celso de Mello e Ayres Britto de que a interpretação da Constituição deve ser feita como conjunto harmônico de normas e de que o corpo da Lei Maior possui não apenas regras, mas princípios e, portanto, não haveria qualquer lacuna a ser preenchida, mas uma verdadeira interpretação conjunta de todo o texto constitucional. Ademais, com a proteção conferida pela atual Carta Magna à dignidade da pessoa e aos direitos humanos não poderiamos admitir outro caminho, como observa a doutrina: É indispensável que se reconheça que os vínculos homoafetivos muito mais que as simples e esporádicas relações homossexuais configuram uma categoria social que já não pode ser discriminada ou marginalizada pelo preconceito. É a hora do Estado, que se diz democrático e que consagra como princípio maior o respeito a dignidade da pessoa, passe a reconhecer que todos os cidadãos dispõe 7

de direito individual a liberdade, do direito social de escolha e do direito humano à felicidade (tradução nossa) 7. Outrossim, concordamos com a brilhante defesa oral do professor Luís Roberto Barroso, então procurador do estado do Rio de Janeiro, de que o artigo 226 foi um dispositivo de inclusão e emancipação feminina ao reconhecer a legitimidade da união mesmo fora do casamento. Seu principal objetivo foi de exterminar o preconceito existente na sociedade contra aquelas mulheres que viviam com seus companheiros mas não eram casadas oficialmente. Assim, o texto inclusivo não deve servir para discriminação dos homossexuais, pois isso implicaria ferir sua própria finalidade e seria um nítido retrocesso. 3- Perspectivas para a população LGBT: quais as consequências do julgamento? A decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal tem força vinculante e eficácia erga omnes, ou seja, para todos. Assim sendo, os demais órgãos do Judiciário e da Administração Pública estão obrigados a reconhecer como legítima e constitucional a união estável homoafetiva. Esses efeitos conferidos à decisão são de fundamental importância pois permitem sua utilização por qualquer pessoa, sendo que eventual descumprimento pelo Poder Judiciário ou órgãos administrativos enseja a utilização da reclamação constitucinal para garantir a autoridade da decisão do Supremo Tribunal 8. No que se refere à adoção, infelizmente, não podemos concluir que esta decisão confere plena certeza sobre a possibilidade de adoção de crianças por casais homoafetivos, posto que, conforme já observado, houve discordância de alguns ministros quanto aos efeitos do reconhecimento da união estável e outros foram silentes quanto aos possíveis desdobramentos do julgamento. Contudo, entendemos que com a equiparação da união estável homossexual à heterossexual pela Suprema Corte não há mais motivo que impossibilite a adoção por 7 DIAS, MARIA BERENICE. Uniones homoafectivas. Informe de Brasil. In: Revista de Derecho Comparado: Uniones entre personas del mismo sexo. Buenos Aires: Rubinzal Culzoni, 2000, p. 21. 8 COELHO, Inocêncio M.; BRANCO, Paulo G. G.; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 1346. 8

casais do mesmo sexo, visto que o art. 42, 2º do Estatuto da Criança e do Adolescente permite a adoção conjunta para os adotantes casados civilmente ou em união estável, desde comprovada a estabilidade da família. Destarte, não haveria motivo plausível que inviabilizasse a constituição de nova família como dispõe a doutrina: (...) indubitavelmente, o fato de ser homo ou heterossexual não torna um indíviduo mais ou menos capacitado para exercer o papel de pai ou mãe. Nesta seara, o critério norteador a ser observado é o melhor interesse da criança, que em nada se conecta com a orientação sexual daquele ou daqueles que se propõem a adotá-la, mas sim com a capacidade dos mesmo de exercer a função parental 9. Outrossim, sabendo que nossa legislação permite a adoção individual não há nenhuma objeção que ela ocorresse por uma pessoa de orientação homossexual. Então qual seria a proibição para adoção por casais homoafetivos ou pelos que expressam livremente sua sexualidade? Não encontramos outra resposta que não o preconceito, hipocrisia e discriminação. 4- Conclusão O reconhecimento da união estável homoafetiva pelo Supremo Tribunal Federal foi um importante passo na luta em defesa das minorias, em especial dos homossexuais. Para todos aqueles que tinham sua dignidade violada diariamente quando o ordenamento jurídico fechava os olhos a sua realidade foi, como não poderia deixar de ser, um marco de importância ímpar. Destarte, a Corte Maior ao adotar decisão contra-majoritária atuou em defesa à Constituição e aos valores democráticos nela garantidos, na medida em que um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, consagrado no art. 3º, IV da Carta Magna, é promover o bem de todos e não de uma parcela ou maioria da população. Entretanto, o caminho é longo e a luta dos ativistas, da população LGBTTT e daqueles que defendem os direitos humanos deve continuar para que todos possam 9 CHAVES, Mariana. Homoafetividade e direito: proteção constitucional, uniões, casamento e paretalidade um panorama luso-brasileiro. Cutitiba: Juruá, 2011, p. 255. 9

efetivamente usufruir do tão sonhado princípio da igualdade e para que nosso país seja contituído de fato por uma democracia pluralista e sem preconceitos. Referências CHAVES, Mariana. Homoafetividade e direito: proteção constitucional, uniões, casamento e paretalidade um panorama luso-brasileiro. Cutitiba: Juruá, 2011. COELHO, Inocêncio M.; BRANCO, Paulo G. G.; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009. DIAS, MARIA BERENICE. Uniones homoafectivas. Informe de Brasil. In: Revista de Derecho Comparado: Uniones entre personas del mismo sexo. Buenos Aires: Rubinzal Culzoni, 2000 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Informativo de Jurisprudência nº 625: inteiro teor em áudio dos julgamentos da ADI 4277/DF e ADPF 132/RJ. Disponível em: <http://www.stf.jus.br//arquivo/informativo/documento/informativo625.htm.>. Acesso em: 28/07/2011.. Informativo de Jurisprudência nº 626. Disponível em: <http://www.stf.jus.br//arquivo/informativo/documento/informativo626.htm.>. Acesso em: 28/07/2011. SOARES, Ricardo Maurício Freire. A interpretação constitucional: uma abordagem filosófica. In: CAMARGO, Marcelo Novelino org. Leituras Complementares de Direito Constitucional: Controle de Constitucionalidade e hermenêutica constitucional. Salvador: JusPodivm, 2008, p. 95-115. 10