A perversão e a clínica psicanalítica
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- Vergílio Fernandes Canela
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1 A perversão e a clínica psicanalítica Norton Cezar Dal Follo da Rosa Jr 1 Os seguintes apontamentos visam estabelecer um diálogo com algumas das questões apresentadas pelo psicanalista, Rolando Karothy -, membro da Lazos Institución Psicoanalítica de La Plata -, concernentes ao texto: A perversão e a clínica psicanalítica. Desde já, agradecemos esta parceria de trabalho, haja vista as relevantes elaborações teóricas presentes neste artigo e sua contribuição para a clínica psicanalítica. Além de realizar um percurso pela obra de Lacan com o propósito de situar a especificidade da clínica psicanalítica em relação ao tema da perversão, as construções do autor trazem importantes contribuições, sobretudo, em relação a certas concepções cristalizadas neste campo. Na contramão destas leituras, Karothy destaca: o perverso não está a serviço da transgressão, como facilmente se admite; o essencial da perversão não é a satisfação da pulsão, mas como o sujeito se coloca; reconhecer a proposição lacaniana de que o perverso se faz instrumento do gozo do Outro, implica o fato de que, no sentido estrito, ele não goza. E ainda, há uma familiaridade lógica entre a moral e a perversão, pois o perverso é o moralista por excelência. Ao destacarmos estes pontos, nosso recorte tem por objetivo problematizar as possibilidades de direção de cura na perversão. Karothy aponta a distinção lógica inerente à posição do sujeito em relação à castração no campo da neurose, e sua especificidade, na perversão. Neste caso, o perverso, além de não se sentir dividido, seu ato consistiria em dividir o outro, pois sua Vontade de gozo visa localizar a divisão subjetiva do outro, com o propósito de lhe produzir angústia. Ao resgatar a passagem onde Lacan (1966) diz que o perverso imagina-se ser o Outro para garantir seu gozo 2, o autor chama a atenção para um equívoco em relação ao tema da perversão. A saber, fazer a leitura do ato perverso, como algo, eminentemente, transgressor, ou ainda, como se na perversão estivesse em causa apenas a busca frenética de transpor limites. Como observa Karothy, a questão é 1 Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre APPOA. 2 LACAN, J. (1966). Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar,
2 mais sutil, pois não se trata de extrapolar os limites, mas tencioná-lo, forçando-o até as últimas consequências. Desse modo, o perverso vai tencionar o limite em busca de interdição. Um exemplo disso se encontra no livro de Sade: A filosofia na Alcova, quando a mãe da jovem Eugénie, a senhora Mistival, antes de ser expulsa aos pontapés da alcova, ouve da filha, no instante que costurava os seus orifícios, a sentença: afastai as coxas, mamãe; vou coser vos para que não me deis mais irmãos ou irmãs 3. Para Lacan o ato de Eugénie, mais do que uma cruel transgressão aponta um moralismo exacerbado, pois condena a mãe a nunca mais ter relações sexuais. Ao finalizar o escrito Kant com Sade, Lacan resgata esta passagem e diz que costurada, a mãe continua proibida. Está confirmado nosso veredicto sobre a submissão de Sade à lei. 4 Isto nos faz pensar na proposição de Karothy de que a perversão busca restituir o gozo ao corpo, anulando assim, a incompatibilidade entre ambos. Neste caso, a interdição da mãe colocaria em causa, além do ódio ao feminino e a diferença, o ódio ao útero? E ainda, o imperativo categórico perverso requer a subtração da filiação? 5 Neste livro de Sade há uma recusa da herança do patrimônio simbólico das gerações que antecedem o sujeito, onde qualquer resíduo de dívida com os pais não é passível de ser reconhecido. Além disso, há recusa da responsabilidade com a transmissão as novas gerações. Isto também pode ser lido em nossa prática clínica? Ao afirmar a pulsão não é a perversão, Karothy sublinha o quanto a posição do sujeito é preponderante em relação a uma suposta ideia de satisfação direta da pulsão. Isto nos parece fundamental, pois apesar de o perverso imagina ser o Outro para garantir seu gozo [...]. isso não quer dizer que, no perverso, o inconsciente esteja plenamente a céu aberto 6. Assim, do ponto de vista psicanalítico, o essencial é a posição do sujeito. Trata-se de um detalhe importante, pois não ter isso presente, facilmente, toma-se a perversão pelo viés fenomenológico. Neste caso, quando o analista formula uma hipótese de perversão, isso se dá pela leitura da transferência que lhe é endereçada. Caso contrário, ele terá dificuldades de fazer a distinção entre perversidade e perversão. Como destacou Karothy, ao contrário da neurose, na 3 SADE, M. (1795). A filosofia na alcova, ou, os preceptores imorais. SP: Iluminuras, 2008, p LACAN, J. (1966). Kant com Sade. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p ROSA JR, N. C. D. DA. Perversão e filiação: o desejo do analista em questão. 321f. Tese (Doutorado em Psicologia Social e Institucional). Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre: LACAN, J. (1966). Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p
3 perversão, o sujeito se coloca no lugar do objeto que a pulsão rodeia, fazendo-se de instrumento para a restauração do Outro. Isto implica em destituir o semelhante de sua condição de sujeito, pois ao negar a alteridade, o perverso situa o outro na condição de objeto inanimado. Lacan, na lição de , a partir de sua leitura de Proust 8, demonstrou que a lógica do perverso exige a captação inesgotável do desejo do outro, jogando-o e fixando-o na condição de objeto inanimado. Assim, o perverso se coloca de modo precário no registro das trocas e da experiência. Neste sentido, Lacan transpõe a tentação de pensar a perversão relacionada a supostas anomalias. Vejamos: o que é a perversão? Ela não é simplesmente aberração em relação a critérios sociais, anomalia contrária aos bons costumes, se bem que esse registro não esteja ausente [...]. A perversão situa-se, com efeito, no limite do registro do reconhecimento e é isso que a fixa, a estigmatiza como tal 9. Logo, há um traço próprio à perversão: o reconhecimento. Em relação ao saber, Karothy destaca: o perverso consegue articular gozo e saber para se posicionar como um pretenso saberfazer com o gozo, pois diferente da neurose, o gozo do Outro não se configura como um enigma. Isto o faz a se apresentar como um apaixonado pela verdade. Por isso, como observa o autor, reconhecer o ato de fé perverso de se fazer instrumento do gozo do Outro, nos leva a compreender que, no sentido estrito, ele não goza. Assim, mais do que capturar o seu parceiro, o perverso estaria capturado pelo roteiro ao qual estão alienadas as suas modalidades de gozo? Diante disso, o sujeito ignora o fato de estar escravizado por uma lei muito mais rígida do que as leis que ele contesta, qual seja, manter o Outro pleno. Será justamente essa dimensão de ignorância a possibilidade de abrir alguma brecha para busca de uma analise? Pode-se falar em análise quando supomos a posição de um sujeito que recusa a alteridade e a todo instante tenciona os limites com o intuito de produzir angústia no outro? Não são raros os posicionamentos de que perversos não buscam tratamento, pois não sofrem, apenas gozam em função dos sofrimentos infligidos às suas vítimas. E ainda, os poucos que procurariam, estariam apenas em busca de algum ganho para fazer uso em nome de um gozo próprio. 7 LACAN, J. ( ). O Seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, PROUST, M. (1913). No caminho de Swamm; À sombra das moças em flor. In: Em busca do tempo perdido. Rio de Janeiro: Ediouro, LACAN, J. ( ). O Seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996, p
4 Neste sentido, ou o sujeito na perversão não reconhece o lugar de suposto saber, pois ele detém o saber sobre como fazer o outro gozar, ou ele apenas viria ao analista para fazê-lo cúmplice de suas obscenidades, vouyer de suas encenações performáticas. Em nossa clínica já testemunhamos estas afirmações, pois a mostração do gozo na perversão, também será encenada na transferência. Mas, como menciona Pommier (1998), isto seria suficiente para fechar a porta de nossos consultórios 10? Ou ainda, haveria alguma espécie de drama subjetivo na perversão? Desde o nosso ponto de vista, se existe alguém que toma a regra analítica de falar tudo o que vem a cabeça, ao pé da letra, é o perverso. Ainda que esta seja executada como um dever, não simplesmente uma possibilidade. Por isso, ele irá infligir sem pudor, os ouvidos do analista, com o objetivo de desestabilizá-lo e destituir a diferenças de lugares. Logo, o desafio será palavra de ordem na transferência perversa. Interrogar a posição do analista frente a isso poderá trazer contribuições para a formação do psicanalista. Para essa prática se dar, faz-se imprescindível o analista reconhecer algum índice de sofrimento, ou ainda, reconhecer que a dimensão da alteridade não está totalmente excluída. Cabe ressaltar o fato de que, Karothy, apesar de apontar as diferenças entre neurose e perversão, observa: existe algo comum à neurose e a perversão: a castração opera seus efeitos em ambas. Isto demarca uma questão lógica fundamental, qual seja, há um saber na perversão sobre a castração, desmentido, mas há. Este reconhecimento terá suas implicações para que possamos problematizar os limites e as possibilidades da clínica psicanalítica com a perversão. Esta prudência já estava presente no texto Fetichismo, onde Freud (1927) 11 avança na tentativa de localizar a Verleugnung como um mecanismo de defesa específico da perversão. Nesta época, fica evidente que se o neurótico recalca a castração e o psicótico não possuiu um saber sobre ela, a posição do perverso evidencia a existência de uma primeira simbolização (Bejahung) da castração. Portanto, na perversão, há um saber sobre a castração, embora ele precise ser desmentido a todo instante. Com isso, Freud situa a lógica que ordena a posição perversa em relação ao saber: conciliar duas afirmações incompatíveis, pois o saber e o não saber, sobre a 10 POMMIER, G. O amor ao avesso: ensaio sobre transferência em psicanálise. Tradução Sandra Regina Felgueiras. Rio de Janeiro: companhia de Freud, FREUD, S. (1927). Fetichismo. In: Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu editores, 2003, v.21. 4
5 castração, coabitam simultaneamente. Mannoni (1969) 12, foi preciso ao analisar esse texto de Freud, condensando numa frase a lógica da Verleugnung: Je sais bien, mais quand même. Este enunciado materializa a lógica intrínseca do fetichista, pois o reconhecimento e o desmentido da castração coabitam simultaneamente. Assim, mais do que a recusa da percepção de uma realidade a partir da crença na manutenção do falo, o que está em questão é a sustentação de ambas as proposições. Conforme Mannoni, a condição de saber: eu sei é determinante da segunda parte do enunciado: mas mesmo assim. Então, embora recuse esse saber, o fetichista sabe que as mulheres não têm o falo. Desse modo, só há mas mesmo assim em função de algum saber sobre a castração. Logo, o mas mesmo assim, constitui-se como saída perversa para se defender da angústia de castração. Outro aspecto importante é a afirmação de Karothy: o perverso é o moralista por excelência. Esta observação coloca em questão a tentação de rotular o perverso como um imoral. Pelo contrário, moralidade e perversão podem andar de mãos dadas. Lacan em A ética da psicanálise 13, alerta que é preciso ler A filosofia na alcova, acompanhado das fórmulas Kantianas da Crítica da razão prática. Nesta ocasião, ele vai analisar a incidência da ação moral dada por Kant na Alcova de Sade: Age de tal modo que a máxima de tua vontade possa valer sempre como princípio de uma legislação universal 14. Logo, ele reconheceu a familiaridade lógica que perpassa a incidência das teses de Kant em Sade. Para o psicanalista, a moral sadiana, além de possuir pretensões universais análogas ao imperativo categórico de Kant, irá desvelar o recalcado na experiência moral kantiana, pois em Sade, o homem terá o direito ao gozo do corpo alheio. O autor sublinha a lógica implícita na utopia sadiana: Tenho direito de gozar de teu corpo, pode dizer-me qualquer um, e exercerei esse direito, sem que nenhum limite me detenha no capricho das extorsões que me dê gosto de nele saciar 15. Portanto, Sade ira completar a Crítica da razão prática de Kant justamente porque seu texto coloca em cena o objeto a que fora recalcado na ética kantiana. Assim, a ética sadiana ao desnudar o objeto oculto em Kant seria mais honesta do que a kantiana. Para Lacan, Sade vai desvelar a máxima kantiana justamente porque o seu texto não 12 MANNONI, O. Clefs pour l Imaginaire ou l Autre Scène. Le Champ Freudien. Collection Dirigée par Jacques Lacan. Paris, Éditions Seuil, LACAN, J. ( ). O Seminário. livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, KANT, I. (1788). Crítica da razão prática. Tradução Rodolfo Schaefer. 3 ed. São Paulo: Martin Claret, 2011, p LACAN, J. (1966). Kant com Sade. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p
6 propõe uma disjunção entre lei e gozo, pois a lei em questão é gozar. Diante disso, ao analisar a incidência de Kant na Alcova de Sade, o psicanalista observa que há proximidade entre o ideal de moralidade filosófica em Kant com a perversão sadiana. Rompe-se então com a tentação de propor uma disjunção entre o campo da moral e o universo da perversão. Pelo contrário, há uma moralidade implícita na perversão. Para finalizar, retomamos a interrogação sobre as possibilidades da clínica psicanalítica. Segundo Pommier, para essa prática se dar, o analista precisa fazer face à situação 16, evitando responder tanto do lugar de semelhante, quanto de fiel representante da lei. Embora isso pareça óbvio em qualquer experiência clínica, em se tratando de perversão, não se trata de algo simples, pois a transferência em questão vai tencionar por todos os meios com que o analista responda desde o lugar de um código moral. Não haverá pudor na mostração dos detalhes que orquestram seus repertórios e suas práticas. Ao negar a diferença de lugares, o perverso vai tentar destituir o analista de sua ética. Logo, faz-se imprescindível que o analista não esteja orientado pelo desejo de reconhecimento de sua autoridade, tampouco, de suas eventuais possibilidades de interdição. Trata-se apenas de marcar uma diferença capaz de viabilizar ao sujeito tomar a palavra diante do imperativo de mostração do gozo. Portanto, o desafio em questão será transpor as nossas resistências e relançar a associação livre. 16 POMMIER, G. O amor ao avesso: ensaio sobre transferência em psicanálise. Tradução Sandra Regina Felgueiras. Rio de Janeiro: companhia de Freud,
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