Texto do deputado Sarney Filho para a. Mesa Redonda sobre a Questão Ambiental e os Direitos Indígenas

Transcrição

1 Texto do deputado Sarney Filho para a Mesa Redonda sobre a Questão Ambiental e os Direitos Indígenas É sempre uma satisfação participar de um evento em defesa do povo indígena. Como militante ambientalista que sou, lutando há mais de três décadas, nesta Casa, pelo desenvolvimento sustentável e a justiça social, construí, ao longo dos anos, a firme convicção de que o direito ao meio ambiente equilibrado e os direitos das populações tradicionais são dois aspectos da mesma causa, que é a busca por uma existência pacífica, harmônica e saudável em nosso planeta. A partir de 2012 e ao longo de 2013, coordenei uma comissão externa, aqui da Câmara dos Deputados, constituída para apurar a violência contra indígenas no Mato Grosso do Sul. Em outubro de 2012, um grupo de 170 índios da etnia Guarani-Kaiowá escreveu uma carta aberta declarando-se pronto a uma 'morte coletiva'. Isso ocorreu após decisão judicial que determinou a desocupação da área em que se encontrava a comunidade. O local é parte do território denominado pelos indígenas como Pyelito Kue / Mbarakay e localiza-se na Fazenda Cambará, à margem do Rio Joguico, no município de Iguatemi, no Mato Grosso do Sul. O mesmo tribunal que proferiu a decisão de desocupação decidiu pela suspensão da demarcação de terras no estado. A carta, divulgada por lideranças indígenas, expôs a total desesperança daquela gente. Cito um trecho que dá a dimensão do estado de consternação em que se encontravam: (...) queremos ser mortos e enterrados junto aos nossos antepassados aqui mesmo onde estamos hoje, por isso, pedimos ao Governo e Justiça Federal para não decretar a ordem de despejo/expulsão, mas solicitamos para decretar a nossa morte coletiva e para enterrar nós todos aqui. A exposição do drama comoveu a sociedade brasileira, com forte repercussão nas redes sociais participantes do Facebook, por exemplo, adotaram o sobrenome Guarani-Kaiowá em demonstração de solidariedade.

2 Solicitei a criação de uma comissão externa, que foi instalada em novembro daquele mesmo ano, para apurar a situação dos índios e procurar soluções para o problema. Em dezembro, em companhia de outros membros da comissão, além de representantes das comissões de direitos humanos da Câmara e do Senado, viajamos ao Mato Grosso do sul para visitar a área ocupada pelos índios e ouvir seus depoimentos. Também foi ouvido o proprietário da fazenda ocupada, além de agricultores e líderes ruralistas. Os índios acampados na fazenda Cambará explicaram que o local do acampamento não foi escolhido ao acaso. A ocupação baseou-se nas histórias de seus bisavós e tataravós sobre onde moravam, pescavam, plantavam sua roça, rezavam. Foram os anciãos que mostram a eles o lugar de suas raízes e por isso reivindicam a terra de volta, com sua demarcação. Encontramos o grupo indígena vivendo em condições chocantes, sem alimentação, saúde, educação e transporte adequados. Não recebiam nenhum atendimento médico e as crianças já não frequentavam a escola havia mais de um ano. Enfrentavam grande dificuldade para receber os alimentos enviados pela Funai, em razão das limitações de acesso à área impostas pelo proprietário da fazenda. Os índios não tinham disponível nenhum meio de transporte e o proprietário bloqueava a estrada por um lado e, pelo outro, há o rio Hovy, que requer um barco, algo que os Guarani não tinham. Os índios sofriam ainda ameaças e agressões, por parte de pistoleiros armados, contratados por fazendeiros. Em pleno século XXI, vimos seres humanos sendo tratados como animais! Esse estado de coisas teve início nos anos 30, quando algumas terras originalmente dos índios foram vendidas ou doadas pela União e pelo estado a proprietários rurais. Boa parte da ocupação aconteceu nos anos 70 e, de acordo com os índios e antropólogos que atuam na região, às reservas indígenas foram destinadas apenas as áreas menos produtivas. A comissão externa constatou que muitos fazendeiros têm direito legítimo sobre as terras, que deve ser respeitado. Entendemos que o Estado

3 brasileiro cometeu um erro ao distribuir títulos de terra, ou permitir a sua negociação, quando se tratavam de terras tradicionais dos povos indígenas. No entanto, aqueles que adquiriram as terras de boa-fé merecem ser ressarcidos pelos investimentos que fizeram. O relatório final da comissão foi aprovado no dia 16 de abril de 2013, em uma votação acompanhada por mais de 300 índios. O texto, que contou com subsídios técnicos da FUNAI e do Ministério Público Federal do Mato Grosso do Sul, contém um extenso estudo sobre o processo que levou à situação atual e propõe diversas medidas para o enfrentamento dos problemas. Nossa posição foi de que a fazenda deveria ser desapropriada e a terra entregue para os índios. Considerando que o ambiente era de conflito com os proprietários de terra locais e para evitar uma tragédia maior, propusemos ações urgentes ao Poder Público e o estabelecimento de um canal de negociação com os fazendeiros envolvidos. Sugerimos, ainda no âmbito da comissão externa, ações estruturais de enfrentamento do problema. Como ações urgentes, destacamos aquelas fundamentais para a sobrevivência digna do grupo, tais como: proteção à vida; fim do confinamento forçado; acesso aos alimentos fornecidos pelo Estado; acesso a meios de locomoção; acesso aos serviços de saúde; acesso à escola; e, finalmente, porém não menos importante, atendimento em saúde mental necessário para ajudar a comunidade a lidar com os traumas enfrentados devidos às violências físicas e psicológicas sofridas. Entre as ações estruturais, apontamos a indenização dos proprietários; a presença do Poder Público na adequação do índio à nova realidade; a disponibilização de mais servidores e a alocação de recursos para a recuperação das terras. Procuramos ainda viabilizar emendas ao Orçamento para que as ações indicadas fossem implementadas. Hélas, meus amigos, nossos esforços pouco frutificaram. Há pouco mais de um mês, um grupo Guarani-Kaiowá do Mato Grosso do Sul, formado por cerca de 40 pessoas, acampou junto do Supremo Tribunal

4 Federal para denunciar a precariedade em que vivem. Milhares de indígenas dessa etnia estão em condição similar àquela que presenciamos na Fazenda Cambará, ocupando barracos cobertos de lona plástica, em acampamentos improvisados, sob um calor incapacitante, sem qualquer higiene, sem condições mínimas para uma existência digna. Optei por apresentar neste evento esse breve relato do que foi a experiência da Comissão Externa dos Guarani-Kaiowá, justamente para que façamos juntos uma reflexão de como superar a invisibilidade dos índios em nossa sociedade. Não é mais possível que fiquemos à mercê do impacto midiático causado por atos desesperados como o suicídio coletivo anunciado na carta que motivou a comissão para mobilizar nossos esforços pela causa indígena. E as consciências que se acendem compungidas pelo drama, logo dirigem o olhar para novas manchetes e a força da opinião pública, a chama da cidadania de que tanto precisamos para sustentar nossas ações legislativas, arrefece e se apaga, deixando novamente no escuro a causa indígena. Essa invisibilidade não podemos mais admitir! Trata-se da parte do povo brasileiro que é guardiã da nossa cultura mais ancestral, e que, por outro lado, é a mais vulnerável aos efeitos destrutivos do desenvolvimentismo que não mede consequências. São seres humanos duplamente ameaçados: na própria existência biológica, como todos aqueles submetidos à miséria e à exclusão social, e ainda ameaçados na sua identidade. O Brasil não percebe que, desconsiderando a importância dos indígenas e permitindo que morra sua forma de vida tradicional, perde-se irremediavelmente uma marca cultural que é um bem comum do país, que pertence a cada um de nós. Quero destacar que o suicídio de indígenas, infelizmente, não se restringe a ameaças e casos isolados. Ao contrário, trata-se de uma questão de saúde pública, devido à dimensão assustadora que tem alcançado ao longo dos anos. Segundo dados do Ministério da Saúde, no ano de 2012 ocorreram 56 suicídios entre os Guarani-Kaiowá. É um número assustador. Gostaria de falar de duas propostas que tramitam nesta Casa e que representam perspectivas opostas no que diz respeito aos problemas

5 indígenas. Falo de uma esperança, que é a Proposta de Emenda à Constituição 320, de 2013, da qual eu e Padre Ton somos co-autores, que cria vagas de deputado federal para representantes do povo indígena. Falo também de uma grave ameaça, que é a PEC 215. A Proposta de Emenda à Constituição 215, de 2000, prevê a transferência do poder de aprovar a demarcação de terras indígenas e quilombolas e a criação de novas áreas de proteção ambiental, hoje a cargo do executivo, para o Congresso Nacional. No voto em separado que apresentei na Comissão de Constituição e Justiça quando a proposta foi analisada por aquele colegiado, citei a posição defendida brilhantemente pelo deputado Luiz Couto com relação a matéria semelhante, a PEC 161, de Em seu voto, o nobre parlamentar argumentou o seguinte: (...) o caput do art. 231 (da Constituição) garante expressamente aos índios os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Trata-se de reconhecimento constitucional de que os direitos dos índios preexistem à demarcação estatal de suas terras. Isso significa que o decreto de demarcação não constitui um direito, mas tão somente declara sua existência, conferindo certeza e segurança ao exercício dos direitos dos povos indígenas. Assim sendo, tratando-se de ato declaratório, que não cria direito, mas apenas o reconhece, não pode o ato demarcatório submeter-se ao crivo político do Congresso Nacional. A aprovação dessa proposta representaria um imenso retrocesso na luta dos povos indígenas e dos quilombolas pelo reconhecimento aos seus direitos históricos à terra e à cidadania. Isso significaria, na prática, a suspensão dos direitos dos povos tradicionais. Nós, do Partido Verde, temos lutado em todas as instâncias possíveis para que a PEC 215 não se concretize. Ela é mais uma sinalização daquilo que dizia no início, que o meio ambiente e os povos tradicionais são indissociáveis, pois ataca, de uma só vez, índios, quilombolas e unidades de conservação. E nós, que temos como princípio o humanismo e o ambientalismo, devemos, de forma firme e coesa, defendê-los. A PEC 320, por sua vez, modifica o art. 45 da Constituição Federal, determinando que a totalidade das comunidades indígenas receba

6 tratamento análogo ao dos territórios federais, elegendo quatro deputados. A escolha deverá abranger todos os eleitores com domicílio eleitoral em comunidades indígenas. Os povos indígenas constituem uma parcela expressiva da população brasileira, chegando a quase 900 mil pessoas, de acordo com informações do IBGE. Esse quantitativo é maior do que a população de alguns estados. Além disso, as terras indígenas correspondem a mais de 12% do território nacional. Aqueles que acreditam que índios e ambientalistas constituem um entrave ao desenvolvimento nacional têm um peso excessivamente alto nas decisões do nosso parlamento. Tal concepção é completamente ultrapassada, e mesmo países que relutaram em admitir que o papel destrutivo do homem sobre o meio ambiente traz consequências avassaladoras para a humanidade estão agora revendo suas crenças e tomando medidas contundentes, como exemplifica o acordo recente entre China e Estados Unidos para a redução da emissão dos gases do efeito estufa. É hora de modificarmos esse olhar míope e de buscar um maior equilíbrio e bom senso na composição das forças políticas do país. A proposta de cota para deputados é importante, sobretudo, por corrigir a enorme injustiça da falta de representação dos índios. É uma medida que fortalece a democracia, permitindo a participação política qualificada dos indígenas na luta por seus direitos constitucionais. A próxima legislatura, emersa das urnas de outubro, se configura bastante dura para os princípios que defendemos. Espero que, com a participação das organizações sociais, consigamos aumentar a visibilidade da questão indígena e trazer para o cotidiano do espaço legislativo e do conjunto da sociedade a convicção de que a luta dos índios deve ser a luta de todos.