Mário de Sá-Carneiro VERSO E PROSA. edição. Fernando Cabral Martins A S S Í R I O & A LV I M
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1 Mário de Sá-Carneiro VERSO E PROSA edição Fernando Cabral Martins A S S Í R I O & A LV I M
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3 APRESENTAÇÃO Neste volume se reúnem os livros de Mário de Sá-Carneiro, por ele publicados, Princípio, de 1912, Dispersão e A Confissão de Lúcio, ambos de 1913, e ainda Céu em Fogo, de Acrescenta-se o livro Indícios de Oiro, datado de 1915 e publicado postumamente em 1937 pela editora da revista presença, e juntam-se ainda vários poemas e textos soltos, publicados dispersamente ou enviados em cartas a Fernando Pessoa tal como em notas finais se esclarece. Fica, assim, composto um conjunto coerente de textos que integra o que de mais marcante escreve, em verso e prosa, um autor capital da nossa modernidade. Não se inclui a juvenília poética e os primeiros contos, e que representa a fase de construção de uma voz que só a partir de Princípio se constitui em toda a singularidade. Também não se incluem as peças de teatro que escreveu e chegaram até nós, e cujo interesse é apenas acessório relativamente à sua obra poética e narrativa. E, finalmente, também ficam de fora as cartas, que têm uma enorme importância literária e testemunhal, mas que formam um vasto conjunto à parte. A sua colaboração com Fernando Pessoa é de grande proximidade criativa entre 1913 e 1916, e tem como realização histórica maior a revista Orpheu, que, nos seus dois números únicos de 1915, define a data a partir da qual a arte portuguesa se torna modernista. As alterações de linguagem, os francesismos desatados, a libertação de novas intensidades estilísticas, as noções inauditas em que a sua arte assenta são fruto de uma inspiração vanguardista que confere a Mário de Sá- -Carneiro como a Fernando Pessoa uma complexidade especial. Quer dizer: o poeta Mário de Sá-Carneiro (sim, mesmo ao escrever narrativas ou cartas é o poeta quem as escreve), vindo do A p r e s e n t a ç ã o 9
4 Romantismo já tardio dos finais de um século de cruciais mudanças, depois temperado com Simbolismo pela descoberta de Camilo Pessanha e Mallarmé, vem a receber, com as luzes da Vanguarda cubista e futurista e a sua verve provocadora, uma variedade e imbricação de escritas e de tons que não têm paralelo, e que atingem altos graus de conflitualidade produtiva. É como se essa presença de elementos românticos, simbolistas e vanguardistas, muito violentamente díspares, tivesse nele podido encontrar um improvável mas inconfundível equilíbrio. 10 A p r e s e n t a ç ã o
5 CERTA VOZ NA NOITE, RUIVAMENTE Esquivo sortilégio o dessa voz, opiada Em sons cor de amaranto, às noites de incerteza, Que eu lembro não sei d Onde a voz duma Princesa Bailando meia nua entre clarões de Espada. Leonina, ela arremessa a carne arroxeada; E bêbada de Si, arfante de Beleza, Acera os seios nus, descobre o sexo Reza O espasmo que a estrebucha em Alma copulada Entanto nunca a vi mesmo em visão. Somente A sua voz a fulcra ao meu lembrar-me. Assim Não lhe desejo a carne a carne inexistente É só de voz-em-cio a bailadeira astral E nessa voz-estátua, ah! nessa voz-total, É que eu sonho esvair-me em vícios de marfim Lisboa 1914 janeiro M á r i o d e S á - C a r n e i r o
6 VIII Pouco mais me resta a dizer. Pudera mesmo deter-se aqui a minha confissão. Entretanto ainda algumas palavras juntarei. Convém passar rapidamente sobre o processo. Ele nada apresentou que valha a pena referir. Pela minha parte, nem por sombras tentei desculpar-me do crime de que era acusado. Com o inverosímil, ninguém se justifica. Por isso me calei. O apelo do meu advogado, brilhantíssimo. Deve ter dito que, no fundo, a verdadeira culpada do meu crime fora Marta, a qual desaparecera e que a polícia, segundo creio, procurou em vão. No meu crime subentenderam-se causas passionais, seguramente. A minha atitude era romanesca de esfíngica. Assim pairou sobre tudo um vago ar de mistério. Daí, a benevolência do júri. Entanto devo acentuar que sobre o meu julgamento conservo reminiscências muito indecisas. A minha vida ruíra toda no instante em que o revólver de Ricardo tombara aos meus pés. Em face a tão fantástico segredo, eu abismara-me. Que me fazia pois o que volteava à superfície? Hoje, a prisão surgia-me como um descanso, um termo Por isso, as longas horas fastidiosas passadas no tribunal, eu só as vi em bruma como sobrepostas, a desenrolarem-se num cenário que não fosse precisamente aquele em que tais horas se deveriam consumar Os meus «amigos», como sempre acontece, abstiveram-se: nem Luís de Monforte que tanta vez me protestara a sua amizade nem Narciso do Amaral, em cujo afecto eu também crera. Ne-nhum deles, numa palavra, me veio visitar durante o decorrer do meu processo, animar-me. Que a mim, de resto, coisa alguma me animaria. N a r r a t i v a A C o n f i s s ã o d e L ú c i o 387
P R O J E T O P E R S E U
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