Mestre, são plácidas Todas as horas Que nós perdemos. Se no perdê-las, Qual numa jarra, Nós pomos flores.

Transcrição

1 Mestre, são plácidas Todas as horas Que nós perdemos. Se no perdê-las, Qual numa jarra, Nós pomos flores. Não há tristezas Nem alegrias Na nossa vida. Assim saibamos, Sábios incautos, Não a viver, Mas decorrê-la, Tranquilos, plácidos, Tendo as crianças Por nossas mestras, E os olhos cheios De Natureza... À beira-rio, À beira-estrada, 31

2 Conforme calha, Sempre no mesmo Leve descanso De estar vivendo. O tempo passa, Não nos diz nada. Envelhecemos. Saibamos, quase Maliciosos, Sentir-nos ir. Não vale a pena Fazer um gesto. Não se resiste Ao deus atroz Que os próprios filhos Devora sempre. Colhamos flores. Molhemos leves As nossas mãos Nos rios calmos, Para aprendermos Calma também. Girassóis sempre Fitando o Sol, Da vida iremos Tranquilos, tendo 32

3 Nem o remorso De ter vivido. 5 (12/6/1914) Os deuses desterrados, Os irmãos de Saturno 6, Às vezes, no crepúsculo Vêm espreitar a vida. Vêm então ter connosco Remorsos e saudades E sentimentos falsos. É a presença deles, Deuses que o destroná-los Tornou espirituais, De matéria vencida, Longínqua e inactiva. Vêm, inúteis forças, Solicitar em nós As dores e os cansaços, Que nos tiram da mão, Como a um bêbedo mole, A taça da alegria. 5. Neste poema, dedicado ao mestre Caeiro, Reis canta a inutilidade de tudo por isso é preciso saber não viver, a efemeridade das coisas, a transitoriedade da vida. A resignação é, também, abdicação da vida. 6. Divindade romana identificada com o Crono dos gregos. 33

4 Vêm fazer-nos crer, Despeitadas ruínas De primitivas forças, Que o mundo é mais extenso Que o que se vê e palpa, Para que ofendamos A Júpiter 7 e a Apolo 8. Assim até à beira Terrena do horizonte Hiperion 9 no crepúsculo Vem chorar pelo carro Que Apolo lhe roubou. E o poente tem cores Da dor dum deus longínquo, E ouve-se soluçar Para além das esferas... Assim choram os deuses. 10 (12/6/1914) 7. Também conhecido como Zeus (grego), é o deus supremo do universo. 8. Deus da beleza, da luz, da verdade, da inteligência. 9. O titã-sol, filho de Gaia e Urano e quarto titã a nascer. Divindade solar predominante de povos primitivos, desempenhou papel secundário na era clássica. 10. Discípulo de Alberto Caeiro, que criou o neopaganismo, Reis é pagão, daí porque canta os deuses pagãos, mas, (cont.) 34

5 Coroai-me de rosas, Coroai-me em verdade De rosas Rosas que se apagam Em fronte a apagar-se Tão cedo! (cont.) ao cantá-los, mostra-os tão miseráveis como miserável é a condição humana. Os deuses de Reis, como o homem, submetem-se ao destino, mas o homem também se submete à vontade dos deuses. Variante: Os deuses desterrados, Os irmãos de Saturno, Às vezes no crepúsculo Vêm espreitar a vida... Vêm então ter connosco Remorsos e saudades... É a presença deles, Deuses que o destroná-los Tornou espirituais, De matéria divina Longínqua e inactiva... E o poente tem cores De tristeza e cansaços E ouve-se soluçar Para além das esferas Hiperion que chora O seu antigo palácio Que Apolo lhe roubou. 35

6 Coroai-me de rosas E de folhas breves. E basta. 11 (12/6/1914) O deus Pã 12 não morreu, Cada campo que mostra Aos sorrisos de Apolo Os peitos nus de Ceres 11. Publicado na revista Atena, n. 1, outubro de Variantes: 2 o e 3 o tercetos: Quero ter esta hora Por a vida toda De leve. Coroai-me de rosas E de folhas de hera, E basta. Variantes: 3 o e 4 o tercetos: Quero ter a hora Nas mãos pagãmente E leve, Mal sentir a vida, Mal sentir o sol Sob ramos. 12. Deus dos pastores, representando o poder e a fecundidade da natureza selvagem. É meio homem, meio bode. 36

7 Cedo ou tarde vereis Por lá aparecer O deus Pã, o imortal. Não matou outros deuses O triste deus cristão. Cristo é um deus a mais, Talvez um que faltava. 13 Pã continua a dar Os sons da sua flauta Aos ouvidos de Ceres 14 Recumbente nos campos. Os deuses são os mesmos, Sempre claros e calmos, Cheios de eternidade E desprezo por nós, Trazendo o dia e a noite E as colheitas douradas Sem ser para nos dar O dia e a noite e o trigo Mas por outro e divino Propósito casual. (12/6/1914) 13. É interessante observar que Reis coloca Cristo junto aos deuses pagãos, Ele é apenas mais um deus. 14. Deusa das colheitas. 37