Saudosos Sapatos Imundos

Transcrição

1 Saudosos Sapatos Imundos Uma espécie de carrapato observador. Seria essa a melhor analogia para ilustrar a maneira como Gay Talese fez jornalismo ao longo de sua carreira. Um mestre da reportagem, o jornalista americano é autor de Fama e Anonimato, um livro lançado nos anos 60 e formado por uma série de contos de não-ficção que retratam desde fatos como nova-iorquinos passam 34 quilômetros de fio dental entre os dentes até perfis de celebridades com lados jamais iluminados pelas câmeras da imprensa. Atualmente com 85 anos e considerado um dos pais do chamado jornalismo literário, Talese acredita que para ter um material bom não basta apenas entrevistar a pessoa, é necessário se atentar também às emoções, atos e reações dos outros indivíduos ao redor do entrevistado. Figura 1- Gay Talese em 1972 e atualmente com 85 anos A obra é dividida em três partes. A primeira leva o nome de Uma jornada de um serendipitoso, ou seja, a trajetória de alguém que faz descobertas por acaso e de forma inesperada. Sem dúvidas, Talese era esse alguém. Ele apresenta o leitor a uma Nova York totalmente diferente daquela conhecida através de cenas de filmes premiados. É um

2 retrato de uma cidade de peculiaridades com situações que ocorrem diariamente, mas ninguém nota ou dá importância. Com os olhos atentos e os adjetivos trabalhando a todo o vapor, o autor descreve as mudanças comportamentais de ruas e cidadãos em pontos turísticos como a famosa Fifity Avenue. Conta de estranhas profissões encontradas em Nova York, tal qual um senhor pago para cheirar carregamentos de feno e atestar a qualidade. Sem se esquecer dos protagonistas invisíveis como as faxineiras do Empire State Building, que trabalham duro para manter um dos arranha-céus mais famoso do mundo e chegavam a encontrar cerca de 5 mil dólares por ano ali. Nesse momento, Talese faz uma crítica ao fato de ser necessário acontecer alguma fatalidade, como um assassinato, para as pessoas notarem umas às outras em meio ao caos da metrópole. Pelos textos serem extremamente descritivos em todos os quesitos: ambiente, aparência e costumes, quem lê consegue formar imagens na mente que dão ainda mais vida ao que está sendo contado. Além disso, devido ao fato de terem sido escritos na década de 60, os textos permitem identificar as mudanças sofridas pela cultura com o passar dos anos. Ao narrar a existência de apenas seis tatuadores em toda a cidade, por exemplo, gera um choque aos atuais leitores que vivem em uma sociedade onde a tatuagem é algo cada vez mais corriqueiro e natural. A segunda parte pode ser considerada a mais maçante do livro. Talese explica todas as etapas do processo da construção de pontes com tamanha riqueza de detalhes que, em alguns trechos, torna a leitura um tanto quanto cansativa. Contudo, isso não significa que falte a narração de histórias surpreendentes. A ponte Varrazano Narrows foi construída para ligar Brooklyn e Staten Island, dois distritos de Nova York, e é o enfoque dessa parte do livro, juntamente com os boomers. Diferente do que seria narrado sobre a elevação de uma ponte, o autor dispensou o clichê ao dar detalhes tanto da obra como das tramas e embates que a construção trouxe aos habitantes das duas regiões. Há uma descrição do tamanho e peso das peças e como tudo se encaixa para constituir a ponte. Ele chega a citar um possível caso de corrupção na Varrazano Narrows relembrando o leitor que as reportagens existentes no livro são muito descritivas, mas também factuais, uma herança do jornalismo. Os boomers, por sua vez, são operários sempre em busca de algum desafio em cima de uma ponte, um arranha-céu, estradas ou hidroelétricas. Retratados de forma comovente e individualizada, o autor conta histórias de muitos desses metalúrgicos que arriscam suas próprias vidas por terem paixão em construir algo grandioso. Talese

3 inclusive relata detalhadamente a morte trágica de um dos boomers. Mesmo não sendo reconhecidos ao final de cada construção, o autor enfatiza que eles são felizes e considerados heróis por aqueles que pertencem ao seu mundo como familiares e amigos. Figura 2- Gay Talese e a ponte Varrazano Narrows O jornalista não ficava apenas observando os operários no canteiro de obras durante a realização desse perfil. Ele também colocava o capacete e misturava-se com os funcionários. Essa iniciativa segue ao pé da letra a famosa frase do mundo jornalístico a arte de sujar os sapatos que diz respeito àqueles repórteres que saem para rua a caça de notícias. Gay Talese desempenhou muito bem essa função quando saia em busca de boas histórias para contar. A última parte do livro carrega o título de Excursão ao interior, provavelmente fazendo alusão ao que esta parcela da obra reserva: um lado mais humano das celebridades e não apenas a superfície vista pelas câmeras. Talese, para escrever os perfis, se torna efetivamente um carrapato. Ele acompanha os entrevistados em todos os lugares possíveis e conversa com a maior parte das pessoas que convivem com eles, se transformando em uma espécie de confidente. Descreve todos, tanto entrevistados quanto conhecidos, com muita riqueza em detalhes físicos e emocionais, chegando a contar o fato de Joe DiMaggio, um jogador de baseball norte-americano, ter pouco pelo no corpo.

4 Uma circunstância curiosa é que, por se tratar de pessoas reais, o leitor consegue pesquisar o nome do entrevistado na internet, ver fotos e comprovar a veracidade do que está sendo contado ali. O livro traz perfis de pessoas notórias como Floyd Patterson, um lutador campeão que viu seu mundo desabar ao ser nocauteado, e Joe DiMaggio, mais conhecido por ter sido casado com ninguém menos que Marilyn Monroe. Além de um perfil sobre o Sr Má Notícia, um jornalista responsável pelo obituário do jornal The New York Times. Figura 4- Marilyn Monroe e Joe Di Maggio Figura 3- Frank Sinatra Entretanto, Frank Sinatra é o protagonista do perfil mais conhecido da carreira de Talese. Com o resfriado do cantor, o jornalista não conseguiu realizar uma entrevista, mas isso não impediu que ele fizesse seu trabalho. Pelo contrário, foi esse imprevisto que mostrou a genialidade do autor. Ao invés de lamentar o ocorrido, ele partiu em busca de depoimentos de pessoas que conviviam diariamente com Sinatra e frequentou os mesmos lugares que o astro, atento a todas suas ações e reações. Assim, conseguiu mostrar ao mundo a dualidade de sua personalidade que oscilava entre uma lealdade com familiares e amigos e uma certa arrogância quando algo não lhe agradava.

5 A terceira edição do livro, publicada em 2004, traz em seu desfecho algumas surpresas como um texto sobre os bastidores do perfil de Sinatra. O autor conta como tudo aconteceu e aproveita para fazer uma reflexão sobre a prática jornalística que, cada vez mais, carece de uma grande apuração. Gay Talese não apenas sujava os sapatos ao sair para fazer jornalismo, mas os mergulhava com vontade e o resultado são textos ricos em detalhes que ganham vida na imaginação dos leitores. Ele mostrou ao mundo que o anônimo tem seu lado único. E vice-versa. Figura 5- Terceira edição do livro de Gay Talese