ORIGEM DOS DOMÍNIOS DE AREIA BRANCA EM INTERFLÚ- VIOS DA AMAZÔNIA: UMA HISTÓRIA DE DESEQUILÍBRIOS DA COBERTURA PEDOLÓGICA
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1 ORIGEM DOS DOMÍNIOS DE AREIA BRANCA EM INTERFLÚ- VIOS DA AMAZÔNIA: UMA HISTÓRIA DE DESEQUILÍBRIOS DA COBERTURA PEDOLÓGICA Guilherme Taitson BUENO Nádia Regina do NASCIMENTO Introdução Nos interflúvios aplanados da bacia do Rio Negro são encontradas zonas deprimidas, que apresentam uma cobertura de areia branca e vegetação de pequeno porte, circundadas por terrenos mais elevados, cobertos pela floresta. Os solos e alteritas das regiões intertropicais continentais são fruto de três principais caminhos de intemperismo/pedogênese: lateritização, hidromorfia e podzolização (FRITSCH & MELFI, 1996). A lateritização, essencialmente zonal, é responsável pela lixiviação dos cátions básicos e de parte da sílica e pode dar origem a dois tipos de coberturas quando se desenvolve sobre rochas silicosas: coberturas móveis cauliníticas e coberturas ferruginosas endurecidas. As primeiras desenvolvem-se sob clima quente e úmido. Apresentam perfis espessos, com estrutura microagregada, boa drenagem vertical e a caulinita como argilomineral predominante, correspondendo aos latossolos. As segundas desenvolvem-se sob clima com estações contrastadas. Apresentam um horizonte endurecido, onde se concentram residualmente óxidos e hidróxidos de ferro, principalmente a hematita e a goethita e correspondem às couraças ferruginosas. Tanto a cobertura móvel quanto a endurecida são características de áreas de relevo plano, com boa drenagem (TARDY, 1993). A hidromorfia e a podzolização são processos de atuação azonal. A primeira desenvolve-se em ambiente de drenagem deficiente. Promove a mobilização e exportação do ferro e a formação de argilo-minerais 2:1, desde que haja sílica disponível, dando origem aos solos hidromórficos característicos de zonas deprimidas. A podzolização ocorre em ambientes ácidos e parcialmente abertos. Promove a destruição das argilas, a exportação da matéria orgânica, a mobilização do alumínio e a acumulação residual do quartzo, dando origem aos podzóis. Devido à exportação de material, que acompanha a podzolização, esse processo é responsável por mudanças na morfologia do relevo (LUCAS, 1989). Na região amazônica pode-se encontrar, em condições de equilíbrio, coberturas pedológicas resultantes dos três caminhos de intemperismo/pedogênese (LUCAS, 1989). No sítio de estudos verificou-se que a cobertura pedológica ao longo de uma toposseqüência concentrava organizações características dos três caminhos de intemperismo/pedogênese. O objetivo deste trabalho foi associar os materiais e organizações encontrados na toposseqüência com cada caminho de intemperismo/pedogênese; estabelecer uma ordem cronológica
2 80 Lúcia Helena de O. Gerardi e Iandara Alves Mendes (org.) dos períodos em que cada um deles foi dominante, traçando assim a história da cobertura pedológica; propor um modelo de evolução da paisagem da área estudada. Características ambientais O sítio de estudos (01 o S e 61 o W) localiza-se na parte central da região amazônica, na bacia do rio Jaú. A área é protegida por lei (Parque Nacional do Jaú) e apresenta poucos sinais de ação antrópica. A altitude é de cerca de 70 metros a.s.l. O clima é quente e úmido, com temperatura média anual de 26 o C e precipitação média anual de 2000 mm. O substrato geológico constitui-se de arcóseos e arenitos com matriz silicosa. Em sua mineralogia destacam-se o quartzo, a turmalina, o zircão a sericita e a muscovita (LOURENÇO et al., 1978). A interferência de fatores estruturais, reconhecida desde 1950 (STERNBERG, 1950), pode ser detectada quando se observa o traçado dos canais fluviais da região. A área apresenta relevo de platô com colinas de média e pequena declividade. Ao longo dos interflúvios são encontradas áreas deprimidas que ficam inundadas na estação mais chuvosa. Nas áreas mais elevadas, sobre os platôs, a cobertura vegetal é de floresta e o solo é do tipo oxisol. Nas zonas deprimidas a cobertura vegetal é do tipo campinarana (pequenas árvores e arbustos) e campina (arbustos e gramíneas) e o solo é do tipo podzol. O sítio de estudos encontra-se em zona de interflúvio e apresenta colinas de pequena declividade circundadas por áreas deprimidas, temporariamente encharcadas. Metodologia As investigações foram feitas em três etapas: Identificação e análise de organizações e estruturas e estudo da morfologia dos seus limites Foi realizado em macroescala (imagem de satélite, fotografia aérea e transecção de 4,5 km do Rio Jaú ao interflúvio), mesoescala (toposseqüência) e microescala (fundo matricial). A base para as análises em macroescala foi o levantamento fitopedogeomorfológico expedito, em transecção. Esse levantamento mostrou a nítida correspondência entre unidades pedológicas, unidades de cobertura vegetal e unidades geomorfológicas. A partir dessa correspondência pode-se realizar o estudo estrutural nas fotografias aéreas e na imagem de satélite, documentos em que a diferenciação espacial da área estudada são perceptíveis graças às diferenças de vegetação e de condição de drenagem. O estudo da cobertura pedológica em toposseqüência baseou-se na análise estrutural conforme BOULET et al., (1982). Esse levantamento permitiu a compartimentação da cobertura pedológica na toposseqüência e orientou as etapas de estudo morfológico dos materiais em campo e de amostragem de solo e água para análises posteriores. Para o estudo do fundo matricial utilizaram-se lâminas delgadas elaboradas a partir de amostras indeformadas e o microscópio ótico.
3 Do Natural, do Social e de suas Interações: visões geográficas 81 Estudo das características dos materiais da cobertura pedológica Constituiu-se na análise morfológica de campo, na análise granulométrica em laboratório, na análise mineralógica da fração argila ao raio-x e na análise do conteúdo de matéria orgânica em amostras de solo de sete trincheiras da toposseqüência. Estudo do funcionamento hidrogeoquímico da cobertura pedológica Foi feito a partir de análises do conteúdo de Al(III), Fe(II) e Si de amostras de água livre obtidas sistematicamente, durante dois anos, de garrafas de coleta instaladas no solo. As garrafas foram instaladas em cinco estações, em várias profundidades, privilegiando os limites entre as organizações. Resultados e discussão dos resultados A apresentação e discussão dos resultados seguirá a seguinte ordem: 1) análises estruturais da macro à mesoescala; 2) análise dos materiais na meso e microescala e análise estrutural na microescala; 3) análise do funcionamento hidrogeoquímico. Análises estruturais da macro à mesoescala O levantamento em transecção (rio Jaú interflúvio) revelou que: as áreas mais elevadas (platôs e topos de colinas) apresentam cobertura vegetal de floresta e solo do tipo oxisol; as áreas deprimidas dos interflúvios têm cobertura vegetal de campina (arbustos e gramíneas) e solo do tipo podzol; as áreas de vertente de pequena declividade, vizinhas às áreas deprimidas, possuem cobertura vegetal do tipo campinarana (arbustos e pequenas árvores) e solo do tipo podzol (Fig. 1). Verificou-se, assim, a correspondência entre tipos de solo, cobertura vegetal e unidades geomorfológicas. Nas fotografias aéreas e na imagem de satélite essas unidades fitopedogeomorfológicas foram identificadas e mapeadas. Verificou-se, em macroescala, que existe uma relação de discordância entre o limite da unidade fitopedogeomorfológica do platô/floresta/oxisol com as outras duas unidades (vertentes/campinarana/podzol e depressões/campina/podzol). Por sua vez, observou-se que essas duas últimas unidades apresentam limites concordantes, a primeira envolvendo a segunda (Fig. 2). Isso sugere que essas duas unidades são posteriores àquela. Essa hipótese é reforçada pelo fato da unidade platô/floresta/oxisol aparecer, nas áreas interfluviais, como colinas de pequena declividade envolvidas por zonas deprimidas espódicas, sugerindo que trata-se de relíquias no interior das outras duas unidades (Fig. 2). A análise estrutural da cobertura pedológica em toposseqüência revelou a existência de três compartimentos que serão denominados de compartimentos de montante, da zona de transição e de jusante, segundo a posição topográfica, a disposição dos horizontes e as
4 82 Lúcia Helena de O. Gerardi e Iandara Alves Mendes (org.) Figura 1: Correspondência topografia/vegetação/solo ao longo da transecção rio Jaú interflúvio relações geométricas entre seus limites (Fig. 3): no compartimento de montante (trincheira 2) foi observado um material pedológico com transições verticais e laterais graduais e horizontes paralelos à superfície do solo. Na base do perfil esse material envolve estruturas endurecidas. No compartimento da zona de transição (trincheira 3) observou-se o aparecimento de um material com transições verticais e laterais abruptas e cujos horizontes não se dispõem paralelamente à superfície do solo. Esse conjunto de horizontes (compartimento da zona de transição) interrompe, em discordância, as estruturas do compartimento de montante. Na base da toposseqüência (trincheira 1) foram observados materiais semelhantes àqueles que apareceram no compartimento da zona de transição, porém seus horizontes apresentam-se dispostos paralelamente à superfície. A base dos três compartimentos apresentou-se úmida. Análise dos materiais na meso e microescala e análise estrutural na microescala As características dos materiais dos três compartimentos será resumida à descrição das trincheiras 2 (compartimento de montante); trincheira 3 (compartimento da zona de transição) e trincheira 1 (compartimento de jusante). A descrição será feita da base em direção do topo das trincheiras. Compartimento de montante Abaixo dos 250 cm de profundidade foi observado material saturado, de cor homogênea bruno-claro (10YR 6/3), maciço. Em 250 cm de profundidade encontrou-se uma laje ferruginosa de 15 cm de espessura, vermelho-claro (10R 6/6), em ambiente saturado de água. Sobre a laje foram observadas feições pedológicas glebulares ferruginosas com até 5mm de diâmetro em meio a uma matriz amarelo-claro (10YR 6/4) com estrutura maciça,
5 Do Natural, do Social e de suas Interações: visões geográficas 83 Figura 2: Unidades fitopedogeomorfológicas na área de estudos Parque Nacional do Jaú
6 84 Lúcia Helena de O. Gerardi e Iandara Alves Mendes (org.) Figura 3: Organizações estruturais na toposseqüência 1 que foi observada até 180 cm de profundidade. Por meio da análise micromorfológica pode-se observar que o plasma associado à matriz amarelo-claro envolve e penetra nas estruturas das glébulas ferruginosas (Fig. 4). Acima de 180 cm, até os 120 cm, foi encontrado material com estrutura microagregada composto por uma matriz amarela (2,5Y 7/6), por mosqueados amarelo-avermelhados (7,5YR 6/8) e pisólitos. Entre 80 e 120 cm observou-se o desaparecimento dos mosqueados e a passagem da cor para o amarelo-oliváceo (2,5Y 6/6) Encontram-se ainda pisólitos. Acima dos 80 cm, até os 20 cm de profundidade a estrutura mantém-se microagregada e a cor passa ao bruno-amarelado claro (2,5Y 6/3). Acima dos 20 cm de profundidade o material passa a bruno-oliváceo-claro (2,5Y 5/3) e apresenta-se estruturado em grânulos orgânicos entrecortado por domínios de areia lavada, também observados em microescala. Em todo o perfil predomina a fração areia (cerca de 85%). De 180 até os 20 cm de profundidade a fração argila compreende 10 a 14% do material. Acima dos 20 cm de profundidade esse percentual reduz-se a cerca de 5%. A análise da composição da fração argila indicou caulinita e gibbsita e traços de quartzo desde a base (180 cm) até o topo do perfil. A partir do exposto interpreta-se que: * as transições verticais graduais de cor, textura e composição mineralógica da fração argila no perfil indicam uma diferenciação laterítica móvel (latossolo); o fato de existir, na base do perfil, um material ferruginoso endurecido e no restante um material friável caulinítico com estrutura microagregada dominante permite classificar esse compartimento como laterítico com duas fases: uma caulinítica móvel e outra ferruginosa endurecida; * a presença do material ferruginoso endurecido em ambiente saturado, na base do perfil, e o fato das estruturas ferruginosas glebulares aparecerem envolvidas e permeadas pelo plasma associado à diferenciação latossólica que não apresenta nenhum traço de ferruginização indicam que a fase ferruginosa encontra-se em desequilíbrio e que a fase caulinítica móvel é posterior à fase ferruginosa (reliquial); * a redução do percentual da fração argila e a existência de domínios de areia lavada no horizonte superior podem
7 Do Natural, do Social e de suas Interações: visões geográficas 85 Figura 4: Fundo matricial na trincheira 2 (165cm) indicar a mobilização e/ou destruição dos argilo-minerais. Compartimento da zona de transição Aí se observam dois tipos de organizações: a latossólica e uma outra que é discordante sobre a latossólica. Os materiais do compartimento de montante apresentam, nessa faixa, características físicas e organizações semelhantes àquelas acima descritas. Verificou-se, apenas, a redução do percentual da fração argila, observada também no estudo micromorfológico, o desaparecimento da fase ferruginosa endurecida e um escurecimento da cor, devido à presença de matéria orgânica (até 30 g/kg), que passa ao bruno-acinzentado (10YR 5/2) nos 150 cm de profundidade, ao bruno-acinzentado-escuro (10YR 3/2) nos 50 cm de profundidade e ao cinza escuro (10YR 4/1) nos 10 cm de profundidade. As organizações discordantes sobre a latossólica, organizam-se em horizontes não paralelos à superfície e apresentam transições abruptas. Têm uma disposição aproximadamente concêntrica, em que os horizontes externos envolvem os internos, à maneira de um canal que atravessa as organizações latossólicas. O material mais externo é endurecido, maciço, possui cor bruno-forte (7,5YR 5/8) e apenas 9% de argila, que é composta essencialmente por caulinita e quartzo. Em seguida passa-se para um material de cor preta (10YR 2/1), também endurecido e maciço. A fração argila totaliza apenas 5% do material e é composta por caulinita e quartzo. Em seguida passa-se para um material friável, de cor cinza escuro (10YR 4/1) e estrutura em grão soltos. A argila corresponde a menos de 5% do material e é composta essencialmente por quartzo e caulinita.
8 86 Lúcia Helena de O. Gerardi e Iandara Alves Mendes (org.) No centro do canal encontra-se um horizonte de cor cinza-claro (10YR 7/1) constituído por grãos soltos de quartzo. A fração argila corresponde a apenas 0,8% do material e é composta por quartzo e traços de caulinita. Na escala microscópica observou-se a disjunção entre o plasma, cujos fragmentos encontram-se dispersos na porosidade, e os grãos do esqueleto. As feições de disjunção podem ser acompanhadas da borda até ao centro do canal. Os quartzos apresentam figuras de corrosão. De acordo com essa descrição interpreta-se que: * os materiais que se apresentam na forma de canal concêntrico podem ser classificados, por suas características físicas e morfológicas, como espódicos; da borda para o interior do canal passa-se, assim, de um horizonte Bs (acumulação de ferro) a um horizonte Bh (acumulação de matéria orgânica) a um horizonte Bh/E (de transição) até um horizonte E (eluvial); * a acumulação de matéria orgânica, responsável pelo escurecimento do material, se deu sobre estruturas latossólicas (humificação) e sugere a ocorrência de um evento hidromórfico, com lenta mineralização da matéria orgânica, concomitante à latossolização.; * as organizações espódicas concêntricas interrompem, na forma de um canal, as estruturas latossólicas húmicas; * a redução do percentual da argila na cobertura latossólica húmica da zona de transição pode indicar que a mobilização/destruição das argilas já ocorre na faixa a montante do limite com as organizações espódicas. Pode-se afirmar a partir disso que as organizações espódicas são posteriores às organizações lateríticas móveis e que esse conjunto constitui um sistema de transformação pedológica (BOULET et al., 1984) em que organizações espódicas avançam, para montante, sobre organizações latossólicas, transformando-as. Compartimento de jusante Nesse compartimento foram também observados os materiais espódicos do compartimento intermediário, porém dispostos em horizontes paralelos à superfície do solo. Abaixo dos 140 cm encontrou-se material maciço, friável, de cor homogênea, amarelo-pálido (2,5Y 7/4), úmido. A fração argila corresponde a 14% e constitui-se de caulinita e gibbsita. Até os 120 cm de profundidade encontrou-se material endurecido, maciço e heterogêneo, cuja fração argila perfaz 22% e é composta por caulinita e gibbsita. Apresenta matriz amarela (2,5Y 7/6) atravessada por canais com material bruno-amarelado escuro (10YR 4/4). Tratase de interdigitações do material dos horizontes superiores. A análise micromorfológica revelou a existência de dois fundos matriciais principais: o primeiro, dominante, é amarelo brunado. A presença de fantasmas de minerais primários alterados (micas, principalmente) indica tratar-se do material de alteração. O segundo corresponde aos canais interdigitados e constitui um fundo matricial de acumulação, cutânico. Nesse fundo matricial observou-se a presença de dois tipos de cutans: cutans brunoavermelhados e cutans amarelo-brunado claros. Verificou-se que os cutans amarelo-brunado claros interrompem as estruturas dos cutans bruno-avermelhados (Fig. 5). Figura 5: Fundo matricial na trincheira 3 (130cm)
9 Do Natural, do Social e de suas Interações: visões geográficas 87 Acima desse horizonte, até os 106 cm de profundidade, o material apresentou cor homogênea, bruna (10YR 4/3) e textura argilo-arenosa (17% de argila). A fração argila é composta por caulinita e gibbsita. Entre os 106 e os 95 cm de profundidade encontrou-se material endurecido homogêneo, de cor preta (10YR 2/1) e estrutura maciça. A fração argila compreende 12% do total e compõe-se de quartzo, em primeiro lugar, seguido pela caulinita e pela gibbsita. Acima desse horizonte, até os 27 cm de profundidade, foi encontrado material friável de cor heterogênea, com matriz cinza-claro (2,5Y 7/1) e canais verticais orgânicos, provenientes do horizonte superior. A estrutura é em grãos soltos e a textura é arenosa. A fração argila, inferior a 1%, é composta por quartzo e traços de gibbsita e caulinita. Os grãos de quartzo apresentam figuras de corrosão. Acima dos 27 cm de profundidade, até a superfície, foi observado material heterogêneo, cinza-muito-escuro (10YR 3/1) com domínios cinza (10YR 5/1). A estrutura é granular na matriz e em grãos soltos nos domínios acinzentados. A fração argila corresponde a cerca de 1% do material e sua análise mineralógica aponta o predomínio do quartzo, com traços de caulinita e gibbsita. Algumas interpretações são possíveis: * as características dos materiais, da base ao topo do perfil, indicam a existência de horizontes de alteração, abaixo de 120 cm de profundidade, sobrepostos por horizontes espódicos identificados pela seqüência Bs, Bh, E e A; * com base nas lâminas delgadas da parte superior dos horizontes de alteração, pode-se afirmar que o material bruno-avermelhado, ferruginoso, proveniente dos horizontes Bs e Bh ao mesmo tempo que se forma tem suas
10 88 Lúcia Helena de O. Gerardi e Iandara Alves Mendes (org.) estruturas desmanteladas por um evento hidromórfico, ao qual estão associados os cutans amarelo-brunado claros. No compartimento de jusante da toposseqüência, os horizontes de acumulação espódicos (Bh e Bs) não estão se reconstruindo, na base do perfil, graças a esse evento de hidromorfia que é discordante sobre os dois horizontes. Análise do funcionamento hidrogeoquímico A distribuição das garrafas de coleta privilegiou o compartimento da zona de transição (Fig. 6) para permitir um melhor entendimento do funcionamento hidrogeoquímico do sistema na faixa de contato entre as organizações lateríticas e as organizações espódicas. Figura 6: Distribuição das garrafas coletoras de água e das organizações estruturais na toposseqüência 2 Cada garrafa foi identificada por duas letras (a primeira delas designa a estação) e um número (que se refere à profundidade). Os resultados das análises químicas da água do solo são apresentados na Tabela 1. Tabela 1: Análise química da água no sistema latossolo - podzol
11 Do Natural, do Social e de suas Interações: visões geográficas 89 Observa-se que, no compartimento de montante, o principal elemento exportado em solução é a sílica. Esse fato está de acordo com o funcionamento das coberturas lateríticas. AG150 EG70 = garrafas coletoras de água e sua profundidade de instalação no solo Entretanto, a exportação de alumínio pode estar associada à destruição das argilas e formação dos domínios de areia lavada no topo do perfil, caracterizando o processo de podzolização no interior das organizações lateríticas. No compartimento da zona de transição verifica-se que o principal elemento exportado não é mais a sílica, e sim o alumínio e o Fe(II), que no compartimento de montante eram pouco liberados. A saída do alumínio e do ferro já é detectada nas amostras da faixa a montante do contato com as organizações espódicas. Pode-se afirmar, assim, que a redução da quantidade de argila nessa faixa, detectada pelas análises granulométrica e micromorfológica, resulta da destruição dos plasmas mal cristalizados (caulinita, gibbsita e óxidos mal cristalizados) dentro da cobertura laterítica, anunciando as transformações que ocorrem alguns metros a jusante, responsáveis pela instalação das organizações espódicas. A disponibilização do ferro, nessa mesma faixa, reforça essa hipótese. No compartimento de jusante a água livre contém apenas traços dos elementos analisados, mostrando que a cobertura pedológica já se encontra muito lixiviada. Conteúdos elevados de carbono orgânico dissolvido (EG30 = 141 ppm; EG70 = ppm) confirmam a dissolução e a mobilização de matéria orgânica na cobertura pedológica. Uma discussão mais extensa dos resultados hidrogeoquímicos encontra-se em NASCIMENTO et al., (2002). Síntese dos resultados Quatro tipos de organizações pedológicas foram identificados: 1) Na base do compartimento de montante foram observados materiais ferruginosos endurecidos. Suas organizações estão sendo desmanteladas pela hidromorfia, na base do perfil e pela lateritização em clima úmido (formação da cobertura caulinítica móvel), na parte superior do perfil. 2) O compartimento de montante apresenta um perfil de diferenciação laterítico, móvel (oxisol). Embora a
12 90 Lúcia Helena de O. Gerardi e Iandara Alves Mendes (org.) análise das amostras de água livre indique um funcionamento hidrogeoquímico compatível com aquele das coberturas lateríticas, a hidromorfia na base do perfil e a mobilização das argilas no topo do perfil e no compartimento da zona de transição indicam condições de instabilidade de suas organizações. 3) As organizações lateríticas são interrompidas, no compartimento da zona de transição, pelas organizações espódicas. Verifica-se uma completa reorganização dos materiais e transformações das características físico-químicas. 4) Na base dos perfis tanto laterítico quanto espódico foi observado material com características hidromórficas. No compartimento de jusante verificou-se que as organizações desses materiais interrompem as organizações da base do perfil espódico. Modelo de Evolução da Paisagem De acordo com o que foi exposto pode-se apresentar uma proposta de ordenamento cronológico para o estabelecimento das organizações pedológicas e um modelo de evolução da paisagem: as organizações ferruginosas endurecidas são as mais antigas da toposseqüência (Fig. 7A). Seu funcionamento não condiz com as condições climáticas atuais da região e seus materiais constituem relíquias de um paleoclima menos úmido, com sazonalidade bem definida. Essas características são compatíveis com relevos aplanados e vegetação savânica. As organizações subseqüentes são as lateríticas móveis (Fig. 7B). Seu estabelecimento decorre da instalação do clima úmido, também responsável pelo desenvolvimento da floresta. Os platôs sofrem dissecação nas bordas, próximo aos maiores eixos de drenagem, mas mantêmse aplanados no interior onde, em zonas deprimidas, ocorre um evento de hidromorfização. Nessas zonas formam-se os horizontes húmicos. Apesar de compatível com o clima atual da região, a cobertura laterítica não é estável nas condições ambientais locais da área de estudos. Em seguida estabeleceram-se as organizações espódicas, que interrompem as organizações lateríticas, húmicas ou não, e progridem da base em direção ao topo da vertente (Fig. 7C). Seu estabelecimento decorre de uma abertura da drenagem da área deprimida, que pode ter sido provocado por um evento de natureza estrutural ou pela própria evolução do sistema pedológico e que foi responsável pelo aumento do gradiente hídrico lateral na vertente, favorecendo fluxos laterais, característicos dos podzóis amazônicos. As transformações que ocorreram na cobertura pedológica refletiram-se, também, na morfologia do relevo e na cobertura vegetal. No primeiro caso, o desenvolvimento do podzol promove a retificação das vertentes, antes côncavo-convexas e o aplanamento do relevo. No segundo caso a podzolização promove a substituição da floresta pela campinarana e posteriormente, nos estágios mais avançados, pela campina. As últimas organizações a se estabelecerem foram as hidromórficas, na base dos perfis, que no compartimento de jusante são posteriores às organizações espódicas e que não produziram alterações na paisagem (Fig. 7D). Conclusões
13 Do Natural, do Social e de suas Interações: visões geográficas 91 Figura 7: Modelo de evolução da paisagem na área de estudos Parque Nacional do Jaú
14 92 Lúcia Helena de O. Gerardi e Iandara Alves Mendes (org.) * A cobertura pedológica apresenta desenvolvimento polifásico e conserva, em seu interior, os testemunhos dessas várias fases. * As zonas deprimidas, cobertas por areia branca, têm sua origem associada à evolução da cobertura pedológica, particularmente ao estabelecimento dos podzóis no interior das depressões. * A evolução da paisagem da área de estudo indica a expansão da associação podzol/campina/relevo plano em detrimento da associação latossolo/floresta/relevo de colinas côncavo-convexas de pequena declividade. Referências BOULET, R.; CHAUVEL, A.; HUMBEL, F. X.; LUCAS, Y. Analyse structurale et cartographie en pédologie: I - Prise en compte de l organisation bidimensionnelle de la couverture pédologique: les études de toposéquences et leurs principaux apports à la connaissance des sols. Cahiers. ORSTOM, sér. Pédol., Paris, v. 19, n 4, p , BOULET, R.; CHAUVEL, R.; LUCAS Y. Les systemes de transformation en pedologie. In: Livre Jubilaire du Cinquantenaire - Association Française pour l Etude du Sol, Paris, Ed. CNRS, INRA, ORSTOM, MIDIST, p , FRITSCH, E.; MELFI, A. J. Programme dylat Amazonie. Version française: organization et fonctionemment hydro-bio-géochimique des couvertures latéritique d Amazonie. (1. Fiche tématique 2. Programme de recherche et 3. Annexes). Versão portuguesa: Organização e Funcionamento Hidrobiogeoquímico das Coberturas Lateríticas da Amazônia. (1. Ficha temática 2. Programa de pesquisa e 3. Anexos). São Paulo, ORSTOM, p. mimeografado. LOURENÇO R. S.; MONTALVÃO, R. M. G.; PINHEIRO, S. S.; FERNANDES, P. E.; PEREIRA, E. R.; FERNANDES, C. A. C.; TEIXEIRA, W Geologia: Manaus. v. 18. DNPM/Projeto Radambrasil, Rio de Janeiro. p LUCAS, Y Systémes pédologiques em Amazonie brésilienne. Équilibres, déséquilibres et transformations. Tese (Doutorado em Géochimic de Surface) - Universidade de Poitiers, Paris. NASCIMENTO, N. R. do; et al. Fe and Al removed by oxalate and DCB: structural and geochemical domains Brazilian Amazon basin. In: World Congress of Soil Science, 17., 2002, Tailândia. In press. STERNBERG, H. O. Vales tectônicos na planície Amazônica? Revista Brasileira de Geografia, Rio de janeiro, n. 4, p , TARDY, Yves. Pétrologie des latérites e des sols tropicaux. Paris: Masson, 1993.
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