Os dois cavalheiros de Verona pelo grupo Nós do Morro: espaço gestual como cenografia.

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Transcrição:

SILVA, Joana Angélica Lavallé de Mendonça. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Bolsa de Mestrado FAPERJ Nota 10; Orientadora: Professora Doutora Evelyn Furquim Werneck Lima. Cenógrafa e figurinista. Os dois cavalheiros de Verona pelo grupo Nós do Morro: espaço gestual como cenografia. Palavras-chave: Espaço Teatral. Shakespeare. Cenografia. Nós do Morro. O presente artigo parte tanto da presença do grupo teatral carioca Nós do Morro e suas sedes na Favela do Vidigal como espaços de utopia no Rio de Janeiro, quanto da constatação da potência de espacialidade presente no texto shakespeariano para criadores e espectadores do século vinte e um. Aqui tomaremos a cena elisabetana 1, contexto de origem desta dramaturgia, tal como é apreendida por alguns criadores do teatro contemporâneo ocidental, ou seja, como vontade utópica de encontro entre o público e a cena. Como a pesquisa enfatiza a questão da cenografia, levaremos em conta as relações espaciais como deflagradoras deste encontro, consideradas de modo não hierárquico. Patrice Pavis (2010), manifestando-se acerca das cenografias contemporâneas, entende que à custa de estender o seu campo de ação, a cenografia aproximou-se da encenação a ponto de não se poder mais distingui-las (PAVIS, 2010: 102). A respeito da atividade teatral em Londres na época de Shakespeare, Muriel Cunin (2008) afirma que apresentações aconteciam todos os dias da semana, com enorme afluência de público. Elas reuniam cerca de três mil espectadores em um teatro público monumental cujas dimensões, entretanto, mantinham proporções adequadas à escala humana. A frequência era de pessoas de todas as classes sociais, embora a localização nos diversos níveis da plateia fosse claramente hierarquizada (LIMA, 2012, p. 69). O povo ficava em torno do palco avançado na plateia, tendo uma grande proximidade física com a cena. 1 De acordo com Anne Surgers (2009), teatro elisabetano designa uma forma de teatro público própria da Inglaterra de fins do século 16 a início do século 17 (sob o reinado de Elizabeth I) onde a dramaturgia, a forma de atuação e de relação com o público e a arquitetura estão profundamente relacionados. Dentre os dramaturgos da época, destacaram-se Marlowe (1564-1593), Shakespeare (1564-1616) e Jonson (1572-1637).

O jogo de atuação acontecia neste desenho de cena em três dimensões. no palco quase todo envolvido pelos espectadores e como consequência apresentava uma grande fisicalidade. Sobretudo pelo fato de surgir da demanda mútua entre atores, autores e espectadores, esta forma de teatro público propiciou uma relação direta entre eles. A atividade teatral nesta tipologia arquitetônica foi suplantada no tempo pelo teatro à italiana, que à época elisabetana já era presente na Inglaterra no teatro da corte. Dentro da linha de pesquisa Processos e métodos da criação cênica, como alinhar estes dados históricos nos interesses das práticas do teatro contemporâneo? À luz da simbologia dos espaços, para Nathalie Carrasso (2011) o uso da cena central 2 historicamente representou para seus promotores o sonho de criar um espetáculo aberto a todos. Diretores teatrais do século vinte como Peter Brook e Jacques Copeau ajudaram a propagar na cena artística hoje a ideia do teatro da época de Shakespeare como lugar de encontro e proximidade com o público. A respeito do que constitui a qualidade de um espaço teatral, Brook afirma que (...) o bom espaço é aquele para o qual convergem muitas energias diferentes, e onde todas essas categorias desaparecem. 3 (BROOK, 2005: 5-6). A partir dos estudos de Stuart Hall (2003), o modelo cultura hoje baseia -se nos seguintes eixos conjunturais: deslocamento dos modelos europeus de alta cultura; surgimento dos EUA como potencia mundi global e consequentemente como centro de produção e circulação global de cultura, juntamente com sua cultura de massa mediada pela imagem e formas tecnológicas amplamente difundidas; e por fim a descolonização do terceiro mundo e o impacto dos direitos civis e as lutas negras pela descolonização das mentes dos povos. Na busca do sentido do teatro hoje como lugar de encontro (de pessoas, lugares e temporalidades), consideramos que ao montar o espetáculo Os Dois Cavalheiros de Verona, o grupo Nós do Morro procurou reunir dois mundos heterogêneos: aquele da cultura hegemônica europeia e aquele da favela carioca. De que maneira nos é apresentada esta presença europeia (HALL, 1996) a partir da experiência do grupo sediado na Favela do Vidigal, ao montar em 2006 o texto shakespeariano? Certamente põe-se em contato e atrito povos, lugares. Nas palavras de Hall "o diálogo de poder e resistência, de recusa e reconhecimento, pró e contra a Présence Europeénne, (...) está sempre já fundido (...) com outros elementos culturais." (HALL, 1996: 74). Há, juntamente com o impacto do "global", um interesse crescente pelo "local". 2 Carrasso (2011) denomina como cena central tanto o anfiteatro grego e o palco elisabetano quanto a cena dos mistérios medievais e o circo-teatro popular. 3 As categorias a que Brook se refere são teatro popular, teatro de elite, teatro comercial e alta cultura.

Diante de uma vasta produção artística construída no tempo, ao invés de pensarmos simplesmente no global como "substituindo" o local, seria mais preciso pensar em outras articulações entre o "global" e o "local". A relevância da implementação e consagração, inclusive nas grandes mídias, de um grupo de teatro da favela e sua incursão além dos limites nacionais é a de conferir visibilidades positivas a esta produção artística local. Implica a criação, afirmação e ampla difusão de um espaço de utopia 4, no interior da favela e a possibilidade de extrapolá-lo para além da cidade do Rio de Janeiro. A respeito da existência destes espaços nas cidades do século vinte e um, David Harvey sugere que "vale notar com que frequência é na escala geográfica da vida em pequena escala da cidade que se situam os ideais das organizações sociais utópicas. (HARVEY, 2006, p. 208). Como alternativa utópica à favela dos folhetos de propaganda no Rio de Janeiro, onde os grandes eventos de repercussão internacional trazem poucas contribuições aos habitantes da cidade, cresce a importância de conferir visibilidades positivas - modismos à parte - a uma produção artística local. A favela como lugar teatral passa a inscrever-se na cidade como parte dos circuitos de exibição artística. A arte e o teatro na história do grupo teatral carioca Nós do Morro se apresentaram como possibilidades de diálogo e transformação, de acordo com os estudos de Marina Henriques Coutinho (2008), materializadas na consolidação de um espaço para o teatro na favela 5. O grupo surge a partir do diálogo estabelecido entre artistas residentes no Vidigal, entre eles Guti Fraga e Fernando Mello da Costa, e jovens considerados pertencentes à comunidade, como Luiz Paulo Corrêa e Castro. (COUTINHO, 2008: 194) Na impossibilidade da construção de uma identidade plenamente unificada, certamente a trajetória do grupo Nós do Morro não está imune nem a uma suposta globalização homogeneizante, nem a localização que o particulariza. Como parte de um trânsito fora da sua sede, o grupo transita por uma obra inglesa seiscentista, entretanto, não deixa de apresentar seu corpus. Quais seriam as possíveis implicações nas relações entre a obra de Shakespeare e a comunidade? "As práticas de representação implicam sempre em posições de onde se fala ou se escreve- as posições de enunciação. (...) Todos nós escrevemos e falamos desde um lugar e um tempo particulares, desde uma história e uma cultura que nos são específicas. O que dizemos está sempre "em contexto, posicionado. (HALL, 1996: 68) Apesar de seguir um texto deslocado no tempo e no espaço, observamos a universalidade de 4 Em Espaços de esperança (2006), o geógrafo David Harvey (1935-. ) demonstra a necessidade de se rediscutir as utopias no século 21. 5 Destacamos a importância de ser mapeada a presença de grupos teatrais que configurem espaços de utopia em atividade nas favelas do Rio de Janeiro.

Shakespeare nesta montagem onde aparecem elementos espetaculares não eurocêntricos (LIMA, 2011: 79-86). O texto gera uma reflexão ao apresentar o dilema entre o poder atrativo das grandes metrópoles (Milão) -consideradas mais desenvolvidas e propícias para ascensão econômica e social- e a opção pelos valores do afeto, do amor e a permanência na pequena escala do local de origem (Verona). Sintetiza-se em cena este dilema no refrão musical de um dos prólogos, onde se contrapõe o nome das duas cidades: Verona, Milão. A perspectiva autoral do Nós do Morro é dada em cena pela inserção dos prólogos escritos por Corrêa e Castro que entremeiam o texto shakespeariano. Os atores se dirigem ao público por meio do seu cantar-dançar-batucar (Fu-Kiau, inédito), o que gera grande empatia com a plateia e aproxima as temporalidades distantes. Quanto à concepção cenográfica do espetáculo, trata-se - como sugere Brook - de um espaço vazio repleto de possibilidades. O poder de sugestão da palavra, a utilização de tecidos como elementos cênicos e o próprio corpo dos atores em cena sugere imagens, situações e lugares e estabelece cumplicidade com a plateia. A multiplicidade de lugares trazida pela dramaturgia é apresentada em cena tanto pela manipulação de tecidos como elementos cênicos construtivos, quanto pelo uso do próprio corpo dos atores constituindo cenografias temporárias. A esta forma dinâmica de cenografia podemos associar o que Pavis (2003) identifica como espaço gestual, criado pela presença, posição cênica e os deslocamentos dos atores: espaço emitido e traçado pelo ator, induzido por sua corporeidade, espaço suscetível de se estender ou se retrair. Entendemos o espaço como invisível, ilimitado e ligado a seus utilizadores, a partir de suas coordenadas, de seus deslocamentos, de sua trajetória, como uma substância não a ser preenchida, mas a ser estendida (Pavis, 2003: 141). Arriscaremos dizer que este espaço gestual é a cenografia do espetáculo, não sendo possível dissociá-la da encenação como um todo, conforme avaliou Pavis (2010) a respeito das cenografias contemporâneas: (...) vemos a cenografia desembocar em uma prática global que, pragmaticamente, não se distingue mais da arte da encenação. Nessa forma de proceder, corrente hoje em dia, cenografar é escrever com a cena por meio dos atores e com atenção para o corpo e o espírito do espectador. O corpo vibrante do ator toca o espectador, essa sensível placa vibrante, sob todos os ventos e todos os seus aspectos; atinge-o, simultaneamente, em todos os níveis: visão, audição, intelecção. (...) Dessa forma, portanto, a cenografia amplia o seu poder a ponto de perder sua especificidade. É o sinal de sua integração ao conjunto do espetáculo. (PAVIS, 2010: 96).

A ausência de grandes estruturas cenográficas que configurem ambientes permite que as relações espaciais sejam constituídas simbolicamente pelo jogo de atuação. Mesmo ao ser apresentada no palco à italiana, a montagem dialoga com a lógica da cena elisabetana ao explorar a fisicalidade na atuação associada a um modo metonímico de referenciar os lugares apontados pela dramaturgia. A partir da análise de Os dois cavalheiros de Verona apresentado em Stratford-upon-Avon (Inglaterra) e no Rio de Janeiro em 2006; concluímos que o grupo carioca procura demonstrar seu corpus inclusive a partir desta obra seiscentista inglesa. No Rio realizaram-se temporadas tanto no Teatro do Planetário, quanto no Casarão do Nós do Morro, no Vidigal. Deste modo são partilhados olhares, lugares, temperaturas, cores, sons vindos de um espaço de utopia que predominantemente se volta sobre si próprio e seus personagens. Aqui é inspirado por uma obra tida como canônica do teatro ocidental. Estas reflexões se inserem em uma pesquisa em andamento a respeito de cenografias em montagens shakespearianas de grupos teatrais brasileiros dos anos 1990-2000 que produzem práticas relevantes para suas cidades nas suas sedes. Consideramos que discursos não hegemônicos estão presentes nestes espaços e nas experiências e proposições dos grupos a partir da obra shakespeariana, uma presença europeia (HALL, 1996). Estas redes de sentido não são exclusivas do espaço teatral, e não precisam ser explicitadas ao pé da letra pela cenografia, entretanto devem ser levadas em conta numa criação cenográfica. BIBLIOGRAFIA BROOK, Peter. A porta aberta. Trad. Antonio Mercado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. CARASSO, Nathalie Toulouse, «La Scène centrale: un modèle utopique?», Agôn. Dossiers, N 3: Utopies de la scène, scènes de l'utopie, Réinventer le cercle. Disponivel em <http://agon.ens-lyon.fr/index.php?id=1356>. Acesso em 27/03/2013. CUNIN, Muriel. Shakespeare et l architecture. Nouvelles inventions pour bien bâtir et bien jouer. Paris: Honoré Champion Éditeur, 2008. FU-KIAU, Bunseki K. K. Bulwa Meso, Master s Voice of Africa, Vol. I, Inédito.

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