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Transcrição:

Nas fronteiras do tonalismo: estrutura tonal e superfície modal/não-tonal como estratégia composicional na transição do século XIX para o século XX MODALIDADE: COMUNICAÇÃO Arthur Rinaldi Instituto de Artes da UNESP art.rinaldi@gmail.com Resumo: Na passagem do século XIX para o século XX diversos compositores buscaram ultrapassar as fronteiras do tonalismo. O texto a seguir tem como intuito expor uma das estratégias composicionais utilizadas neste período para o alcance deste objetivo. Esta estratégia, que apresenta um enfoque harmônico, envolve a combinação de uma superfície sonora modal a uma estrutura harmônico-formal tonal, exposta a partir da análise de duas obras do período: o prelúdio no. 16, op. 11 de A. Scriabin e o prelúdio VIII (1º livro) de C. Debussy. Palavras-chave: Tonalismo. Estratégia composicional. Música modal/não-tonal. At the Frontiers of Tonalism: Tonal Structure and Modal/Non-tonal Surface as a Compositional Strategy at the Transition from Late XIXth to Early XXth-century Abstract: During the transition from late XIXth to early XXth-century many composers tried to surpass the frontiers of tonalism. This paper presents one of the compositional strategies used during this period to reach this goal. This strategy, which has a focus on harmony, combines a modal sound surface to a harmonic-formal tonal structure, which is shown through the analysis of two compositions of this time period: prelude no. 16, op. 11 of A. Scriabin and prelude VIII (1 st book) of C. Debussy. Keywords: Tonalism. Compositional Strategy. Modal/Non-tonal Music. 1. Introdução É notória a existência de uma forte interdependência entre estrutura harmônica e forma musical no pensamento tonal, a qual assumiu padrões extremamente definidos durante o período clássico, conforme pode ser observado em Rosen (1988). Com o surgimento do movimento romântico, teve início uma busca crescente pela transcendência das convenções musicais herdadas das gerações anteriores, levando diversos compositores do século XIX a explorar recorrentemente uma série de recursos musicais, como as relações de mediante e os cromatismos, para a elaboração de novas e inusitadas progressões harmônicas, assim como para a constituição de planos harmônicos gerais mais complexos, que se desprendessem da previsibilidade dos tons vizinhos. Esta tentativa de transcendência das convenções clássicas também envolveu a exploração de alguns elementos musicais modais, com especial destaque para o uso da escala pentatônica (ver DAY-O CONNELL, 2009). No entanto, em grande parte do século XIX sua utilização ocorreu sempre dentro de um rigoroso controle, de modo que estes elementos fossem subordinados aos padrões harmônicos característicos do sistema tonal. Este tipo de procedimento somente começou a mudar a partir da última década do século XIX, quando

pode ser observada uma utilização mais livre de diversos elementos modais, inspirados tanto na tradição musical erudita europeia (especialmente da música medieval) quanto em diversas tradições folclóricas, europeias e não-europeias (MACHLIS, 1989: 28-29, 89-93 ). Tal mudança de procedimento foi promovida por compositores como Satie, Debussy, Ravel, Scriabin, Mahler e Schoenberg, os quais buscaram ativamente a criação de um discurso musical que desafiasse não apenas a percepção auditiva dos ouvintes (por apresentar sonoridades incomuns e inesperadas), mas também uma parte considerável da teoria musical vigente à época, um processo que levou a prática musical às fronteiras do tonalismo, abrindo espaço para o surgimento das diversas vertentes estético-composicionais do século XX. Deve-se salientar que este processo não teve início com o abandono súbito dos preceitos e convenções tonais, sendo mais bem compreendido como uma gradual transformação das convenções musicais. O objetivo desta comunicação é expor uma das estratégias composicionais utilizadas neste período de transição para o século XX, embasada na tentativa de criação de uma sonoridade não-tonal (correspondente à superfície musical) combinada a uma estruturação harmônico-formal que segue as convenções estabelecidas pela tradição tonal. Esta exposição terá por base a análise harmônica de duas obras do período, o prelúdio no. 16 op. 11 de Alexander Scriabin e o prelúdio VIII (La fille aux cheveux de lin) de Claude Debussy. 2. Análise harmônica: prelúdio no. 16 op. 11 (A. Scriabin) Obra da fase inicial do compositor, o prelúdio apresenta uma textura de caráter monódico (Ex. 1), onde a melodia, uma linha composta tocada em oitavas, sugere três vozes distintas. A primeira, mais estática e aguda, é indicada pelo autor, enquanto as outras estão implícitas na condução melódica (Ex. 2) 1. Exemplo 1: compassos iniciais do prelúdio no. 16 op. 11 de Scriabin.

Exemplo 2: indicação das duas vozes inferiores sugeridas pela linha melódica. As notas em destaque correspondem às notas estruturais de cada fragmento melódico. É facilmente perceptível no contexto da peça que a nota Sib apresenta a função de centro/repouso. No entanto, a sonoridade geral do prelúdio é claramente modal/não-tonal, uma característica estabelecida por um conjunto de fatores: pelas diversas anacruses nas quais o compositor evita o arpejo de tríades perfeitas (como o que ocorre logo ao início, enfraquecendo a tônica da peça, a tríade de Sib menor); pela utilização da nota Láb (em lugar da sensível tonal Lá) em quase toda a peça; pela existência de um segmento contrastante que se afasta da sonoridade diatônica da peça, elaborado a partir da escala de tons inteiros e de movimentos cromáticos (Ex. 3). Exemplo 3: reconstrução dos c. 29-32: escala de tons inteiros, com passagens cromáticas (notas de tamanho reduzido). É importante destacar que a textura adotada pelo compositor torna ambíguas as progressões harmônicas da peça, afastando ainda mais o discurso musical da obra dos padrões estabelecidos pela prática tonal. De fato, a identificação exata de todos os acordes da peça somente pode ser feita por meio de uma análise das notas estruturais de cada segmento melódico, baseada em critérios como acentuação, posição métrica e repouso das diferentes vozes (Ex. 2). Esta ambiguidade é reforçada também pela utilização astuta de elementos que são perceptivelmente característicos do tonalismo, mas que no contexto da peça enfraquecem o verdadeiro centro tonal da peça (Sib menor). Observem-se os três momentos nos quais a função de dominante da tonalidade principal é apresentada: 1º momento (c. 7-8): a sensível é apenas sugerida na anacruse e não há resolução (à dominante segue o acorde de Fá menor);

2º momento (c. 29-32): a dominante é substituída pela escala de tons inteiros (Ex. 3), com clara ênfase sobre as notas de Fá aumentado (Fá, Lá, Dó#), conduzindo ao ponto culminante da peça, momento onde ocorre o retorno do tema original em Sib menor 2 ; 3º momento (c. 45-48): há um tradicional movimento cadencial (Ex. 4), com a 4ª movendo-se para 3ª, culminando num acorde de dominante com 5ª aumentada antes da conclusão final sobre a tônica. Exemplo 4: redução harmônica dos c. 45-48. Percebe-se que há uma tentativa deliberada do compositor de enfraquecer (mas não de apagar) a dominante principal, diminuindo a sensação de resolução associada à tônica (Sib menor). Este efeito é reforçado pelas três passagens cadenciais (tonicizações) sobre Mib menor (c. 11-13, 19-26, 38-40), as quais seguem padrões tonais muito nítidos e adquirem destaque significativo diante das passagens cadenciais na tonalidade principal 3, gerando certa ambiguidade entre Sib menor e Mib menor como possíveis tônicas. Apesar desta ambiguidade de centros tonais, deve-se salientar que no conjunto da peça o posicionamento das passagens cadenciais sobre Sib menor são estratégicas, pontuando de forma eficiente (ainda que difusa) as duas grandes subdivisões da obra e impedindo a destruição do centro tonal sobre Sib menor. Além disso, a partir da análise das notas estruturais pode-se observar que as progressões harmônicas utilizadas no prelúdio obedecem claramente aos padrões tonais (Tab. 1 e 2). c.1 c.7 c.13 c.17 i VI i 6ª It. V v V 7 /iv iv v III VI c.19 c.25 c.29-32 c.33 II Nap (=VI/iv) II Nap /iv V 7 /iv iv 6ª It. V 5# i Tabela 1: análise harmônica da 1ª parte do prelúdio no. 16 op. 11 de Scriabin. c.33 c.39 c.45 c.49 i VI i vii 7 /iv II Nap (=VI/iv) V 7 4 V 7 5# i Tabela 2: análise harmônica da 2ª parte do prelúdio no. 16 op. 11 de Scriabin.

Por fim, observando-se a estrutura harmônico-formal, também é possível identificar que ela obedece foi composta tendo por base modelos formais tonais, conforme observado abaixo: 1ª Parte (c. 1 a 32): apresentação do campo diatônico de Sib menor (c. 1 a 8) afastamento e exploração de tonalidades secundárias (c. 9 a 25) retorno à tonalidade principal (c. 25 a 33); 2ª Parte (c. 33 a 53): confirmação do campo diatônico de Sib menor. 3. Análise harmônica: prelúdio VIII (1º livro) (C. Debussy) Este prelúdio é bastante característico da linguagem de Debussy, contendo uma série de elementos comumente encontrados em obras impressionistas, associados, portanto, a uma sonoridade que se distancia das convenções tonais. Destes, destacam-se primeiramente os acordes paralelos, em especial as progressões de acordes em segunda inversão (Ex. 5) e de acordes com 7as (Ex. 6), os quais evidenciam um livre tratamento das dissonâncias, constituindo uma superfície musical não-tonal. Exemplo 5: acordes paralelos em 2ª inversão, c. 14-15. Exemplo 6: acordes paralelos com 7ª acrescentada, c. 8-9. Outro elemento importante nesta peça são as melodias predominantemente pentatônicas, as quais trazem uma sonoridade distintamente modal para a obra. É possível

identificar três conjuntos pentatônicos distintos (Ex. 7), um conjunto principal, utilizado em quase toda a peça, e dois secundários, utilizados nos c. 15-16 e 19-21 respectivamente. Exemplo 7: conjuntos pentatônicos utilizados na obra. Passando ao domínio das progressões harmônicas, pode-se constatar que ele é bem mais complexo do que as conduções melódicas. Há uma nítida valorização de fundamentais que pertencem aos conjuntos pentatônicos apontados acima, mas os acordes em si são montados a partir da totalidade do campo diatônico de sete notas, frequentemente incluindo 7as e outras extensões (9as, 11as e 13as). A presença da 11ª é especialmente importante: utilizada por Debussy em acordes de dominante (Tab. 3, 4 e 5), ela demanda a omissão da sensível, diminuindo significativamente o efeito de tensão associado à dominante e ressaltando a sonoridade modal do prelúdio. Apesar de apresentar tantas características não-tonais, deve-se destacar que nesta obra a escolha e organização dos acordes obedecem em grande medida aos padrões advindos do tonalismo, ainda que o seu encadeamento não obedeça a tais preceitos. De fato, pode-se identificar ao longo desta curta obra diversas passagens cadências, sobre Solb Maior, Dób Maior, e Mib Maior (Tab. 3, 4 e 5) 4. c.1 c.3 c.6 (vi) IV I V iii vi I V V/vi VI 3# c.8 c.10 I 7b II 7 3# I 7b II 7 3# vi 7 V 11 I V 11 I Pd. I Tabela 3: análise harmônica da 1ª parte do prelúdio VIII de Debussy. c.14 c.16 c.19 IV IV ii bvii 7 (= IV 7 /IV) V 13 /IV IV ii 9 V 9 ii 9 V 11 /vi VI 3# c.19 c.21 c.23 c.24 VI 3# V 13 /VI VI 3# V 13 /VI VI 3# IV V VI V/V IV V vi V/V V7 I Pd. VI Tabela 4: análise harmônica da 2ª parte do prelúdio VIII de Debussy.

c.24 c.26 c.28 c.33 c.36 I (vi 7 ) IV V 11 I (vi 7 ) ii 9 V IV vi I IV IV ii vii 7 ii vii 7 ii I Tabela 5: análise harmônica da 3ª parte do prelúdio VIII de Debussy. Tal como no prelúdio de Scriabin, esta peça de Debussy também apresenta uma ambiguidade entre dois possíveis centros tonais, Solb e Mib, ambos enfatizados tanto pelas progressões harmônicas quanto pelas conduções melódicas (as quais, por serem constituídas em torno de conjuntos pentatônicos, enfraquecem a identificação de um cetro tonal específico). Esta ambiguidade é apresentada já ao início da peça: uma melodia (sem acompanhamento harmônico) sugere Mib como ponto de repouso, mas este permanece instável devido ao delineamento de 7ª entre Mib e Réb; a frase termina de forma relativamente inesperada, com uma cadência plagal em Solb Maior (Ex. 8). Exemplo 8: Compassos iniciais do prelúdio VIII. Em maior ou menor intensidade, esta ambiguidade é mantida até a chegada à parte final da obra (c. 24). Neste ponto ocorre uma cadência autêntica em Solb Maior bastante resolutiva, mas o acorde de tônica apresenta uma pequena, mas perceptível, instabilidade, oriunda da presença de uma sexta acrescentada, a nota Mib, a qual impede o pleno estabelecimento da tônica como ponto de repouso absoluto (Ex. 9). Exemplo 9: prelúdio VIII, c. 23-26.

Apesar da ênfase dada pelo compositor à ambiguidade entre Solb e Mib, deve-se destacar que no conjunto da obra o Mib jamais se mostra suficiente estável para justificar sua adoção como centro tonal. Isto se deve em parte pelas passagens cadências concluírem no acorde de Mib Maior (e não Mib menor), o qual produz relações cromáticas (portanto nãodiatônicas) com diversos acordes próximos. Esta escolha é proposital e tem como intuito tornar o Mib relativamente instável em relação a Solb Maior, mantido como principal centro tonal da obra. De fato, há uma relação de mediante entre os dois acordes, outro elemento recorrente na linguagem de Debussy (SOMER, 1995). Para concluir esta análise, resta observar o esquema harmônico-formal geral do prelúdio, o qual também se enquadra às convenções tonais, conforme observado abaixo: 1ª Parte (c. 1 a 13): exposição do campo diatônico e cadência em Solb Maior (c. 1 a 4) tonicização sobre Mib Maior (c. 5 a 7) reafirmação de Solb Maior como principal centro harmônico (c. 8 a 13); 2ª Parte (c. 14 a 24): afastamento da tonalidade principal, com tonicização em Dób Maior e diversas cadências em Mib Maior (c. 14 a 21) retorno súbito ao campo diatônico original (Mib continua enfatizado, mas agora como acorde Mib menor, cadência de engano em Solb Maior) e reafirmação da tonalidade principal (c. 21 a 24); 3ª Parte (c. 24 a 39): confirmação do campo diatônico principal e da tonalidade de Solb Maior. 4. Considerações finais A estratégia composicional presente nestas obras ilustra o hibridismo encontrado em diversos autores do final do século XIX e começo do século XX, educados musicalmente a partir dos exemplos do repertório erudito ocidental e da prática musical tonal, mas cuja produção musical voltava-se para a extrapolação das fronteiras da tonalidade. Inspirados em fontes musicais diversas, estes autores buscaram ativamente incorporar elementos capazes de estabelecer uma sonoridade distinta daquela encontrada na tradição musical erudita, muitos dos quais rompem padrões importantes da prática tonal, como a resolução de dissonâncias e a necessidade de clareza das funções harmônicas básicas. Embora a superfície musical das obras apresentadas acima traga fortes traços de uma sonoridade deliberadamente não-tonal (inspirada sobretudo em diversos recursos ligados a práticas musicais modais), uma análise mais detalhada mostra a grande importância da lógica tonal para a constituição das relações harmônicas destas peças, tanto das progressões

harmônicas em si (ainda que não do encadeamento dos acordes) quanto do plano harmônico mais geral. Tal como em praticamente todas as formas musicais utilizadas na prática tonal, o esquema formal que estrutura estas obras contém três componentes básicos, definidos em torno do parâmetro harmonia: 1) apresentação da tonalidade principal; 2) afastamento desta tonalidade e exploração de outros campos harmônicos, seguido do retorno à tonalidade principal; 3) confirmação da tonalidade principal. Referências: DAY-O CONNELL, Jeremy. Debussy, Pentatonicism, and the Tonal Tradition. Music Theory Spectrum, v. 31, n. 2, p. 225-261, fall 2009. LEE, Hwa-Young. Tradition and Innovation in the Twenty-Four Preludes, Opus 11 of Alexander Scriabin. Austin, 96 p. Tese (Doutorado em Artes Musicais). Faculty of the Graduate School of Music, The University of Texas at Austin, 2006 MACHLIS, Joseph. Introduction to Contemporary Music (Second Edition). London: W. W. Norton, 1989. ROSEN, Charles. Sonata Forms (Revised Edition). New York: W. W. Norton, 1988. SOMER, Avo. Chromatic Third-Relations and Tonal Structure in the Songs of Debussy. Music Theory Spectrum, v. 17, n. 2, p. 215-241, autumn 1995. Notas 1 Uma interpretação diferente é encontrada em Lee (2006: 62). 2 Complemente-se que nos dois primeiros momentos a dominante é introduzida pelo acorde de 6ª aumentada, cuja função tradicional no repertório tonal é de dominante da dominante. 3 Dentre as tonicizações sobre Mib menor, a segunda é especialmente notória pela utilização da tríade de Fáb Maior (subdominante napolitana de Mib menor, c. 21-22), apagando temporariamente a dominante da tonalidade principal. 4 Destaque-se que algumas destas cadências são plagais, as quais existem no sistema tonal, mas que podem ser utilizadas para reforçar uma sonoridade harmônica modal. É o que ocorre nesta obra.