Marcelle Machado de Souza SORRIA VOCÊ ESTÁ SENDO FILMADO: a consolidação de uma sociedade de controle sobre o direito fundamental à privacidade e sobre as formas de interação espontânea e participação democrática nos espaços públicos e privados DISSERTAÇÃO DE MESTRADO DEPARTAMENTO DE DIREITO Programa de Pós-Graduação em Direito Rio de Janeiro, abril de 2008.
Marcelle Machado de Souza SORRIA VOCÊ ESTÁ SENDO FILMADO: a consolidação de uma sociedade de controle sobre o direito fundamental à privacidade e sobre as formas de interação espontânea e participação democrática nos espaços públicos e privados Dissertação de Mestrado Dissertação apresentada ao Programa de Pósgraduação em Ciências Jurídicas da PUC-Rio e Escola Superior Dom Hélder Câmara como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Ciências Jurídicas. Orientador: Prof. José Ribas Vieira Rio de Janeiro Abril de 2008
Marcelle Machado de Souza SORRIA VOCÊ ESTÁ SENDO FILMADO: a consolidação de uma sociedade de controle sobre o direito fundamental à privacidade e sobre as formas de interação espontânea e participação democrática nos espaços públicos e privados Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Direito do Departamento de Direito da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada. Prof. José Ribas Vieira Orientador Departamento de Direito PUC-Rio Prof. João Ricardo W. Dornelles Departamento de Direito PUC-Rio Profª. Vera Malaguti de Souza Weglinski Batista UCAM Prof. Nizar Messari Vice-Decano de Pós-Graduação do Centro de Ciências Sociais PUC-Rio Rio de Janeiro, 02 de abril de 2008.
Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização do autor, do orientador e da universidade. Marcelle Machado de Souza Graduou-se em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora UFJF. Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Federal de Juiz de Fora UFJF, em Convênio com a Escola Superior de Advocacia de Minas Gerais. Especialista em Justiça Constitucional: teoria e prática pela Universidad Castilla-La Mancha Toledo/España). Professora de Teoria Geral do Estado e Direito Constitucional. Souza, Marcelle Machado Ficha Catalográfica SORRIA VOCÊ ESTÁ SENDO FILMADO: a consolidação de uma sociedade de controle sobre o direito fundamental à privacidade e sobre as formas de interação espontânea e participação democrática nos espaços públicos e privados / Marcelle Machado de Souza; orientador: José Ribas Vieira. Rio de Janeiro: PUC, Departamento de Direito, 2008. 133 f. ; 30 cm Dissertação (Mestrado) Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Direito. Inclui bibliografia 1. Direito Teses. 2. Violência. 3. Sociedade de controle. 4. Videovigilância. 5. Segurança pública. 6. Espaço público. 7. Privacidade. 7. Projeto Olho Vivo BH I. Vieira, José Ribas. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Direito. III. Título. CDD: 340
Agradecimentos A Deus, porque Tu fazes grandes planos e coisas maravilhosas. Tu vês tudo o que as pessoas fazem e tratas cada uma de acordo com o seu modo de agir e de viver. (Bíblia Sagrada, Jeremias 32:19). Aos meus pais, José Mário de Souza e Maria José Machado de Souza, pelos olhares vigilantes e cuidadosos, pelo carinho, zelo e amor desde sempre. Amo vocês! Ao meu querido professor e orientador José Ribas Vieira, pela profunda atenção e dedicação com as quais me acompanhou durante todos estes meses. A você professor, toda a minha admiração e o meu muito obrigada! Sua generosidade e sua capacidade vão muito além do mundo acadêmico! Aos professores José Adércio Sampaio e Bethânia Assy, pela colaboração com textos, indicações bibliográficas, questionamentos e reflexões que foram essenciais para a construção desta pesquisa. À Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Puc Rio e à Escola Superior Dom Hélder Câmara, por serem instituições que me fizeram acreditar ainda mais, por meio de seus professores, que a Ciência do Direito carece, neste século XXI, de um estudo interdisciplinar; que o Direito terá muito mais a contribuir para a sociedade contemporânea se aliado à Filosofia, às Ciências Sociais e aos demais ramos do conhecimento. À Polícia Militar do Estado de Minas Gerais, pela cordialidade, pelos esclarecimentos e pelas informações dispensadas sobre o Projeto Olho Vivo BH. A você, minha cara amiga Daniela Mello, por estar ao meu lado nesta ao mesmo tempo dura e doce caminhada da vida, por partilhar comigo o dia-a-dia de uma vida profissional e nossas discussões jurídicas! Às minhas divertidas e batalhadoras amigas Eliane Coelho Mendonça e Raquel de Souza Lima pelas incansáveis leituras, críticas e comentários que fazem de todos os meus textos! A vocês, minhas companheiríssimas desde os idos da Faculdade, obrigada por estarem sempre na torcida organizada pelas minhas publicações! Ao Maurício Trigueiro e a Vânia Amorim, pela amizade e confiança que sempre me dedicaram nesta árdua tarefa do ensino da Teoria Geral do Estado e do Direito Constitucional.
A você, Margarida Coutinho, pela paciência com que dedica seus fins de domingo para corrigir as mazelas dos meus abstracts e por ter sido sempre testemunha ocular da minha caminhada. Thank you for all, baby face! Anne Torres, Virgínia Figueiredo e Graziela Reis, obrigada pelos telefonemas, pelo apoio e pelo incondicional amor que me dedicaram nestes últimos (ufa!) apertados meses de minha vida! Aos meus tios, Vera Lúcia Machado Baeta e Francisco Saint Yves Baeta, os primeiros que me receberam de braços abertos neste grande e adorável centro urbano que é Belo Horizonte, todo o meu amor e o meu muito obrigada! Ao Lucas Machado de Souza, não só pelo noticiário da sociedade big brother que sempre me enviou, mas pela preciosa ajuda na formatação destas mais de cem páginas! Mais do que um irmão, você é um grande amigo! A vocês, amigos, primos e colegas de trabalho, que me emprestaram seus livros, me ajudaram com as impressões e correções de inúmeros textos, que tiveram paciência com a confecção de meus horários e com as minhas indisponibilidades, que me enviaram reportagens, sites na internet, blogs, recortes de jornal, comentários e notícias sobre esses inúmeros e incansáveis olhos que não param de nos vigiar, o meu mais sincero agradecimento! Aos meus colegas de mestrado, pelos bons tempos em que nos divertimos juntos!
Resumo Souza, Marcelle Machado; Vieira, José Ribas. SORRIA VOCÊ ESTÁ SENDO FILMADO: a consolidação de uma sociedade de controle sobre o direito fundamental à privacidade e sobre as formas de interação espontânea e participação democrática nos espaços públicos e privados. Rio de Janeiro, 2008. 133p. Dissertação de Mestrado Departamento de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Sorria você está sendo filmado foi desenvolvido em uma perspectiva interdisciplinar, valendo-se de fundamentos jurídicos, sociológicos e filosóficos com o intuito de demonstrar, em uma análise global e também local (através do estudo sobre a implantação do Projeto Olho Vivo BH ), que em decorrência da crescente violência que assola a sociedade contemporânea, transformando-a em uma sociedade de risco, o monitoramento através de câmeras em espaços públicos e privados vem sendo largamente utilizado como instrumento para a garantia da segurança. A implantação, no entanto, de uma política de videovigilância tanto pelas autoridades públicas como também pelos particulares, lançando seus olhares sobre os indivíduos, não leva em conta os riscos inerentes a tal sistema como, por exemplo, a consolidação de uma sociedade de controle permanente sobre o comportamento dos cidadãos, privando-os do exercício da privacidade, da liberdade e da espontaneidade na interação democrática nesses espaços. A atual era do medo é, ainda, responsável pela alteração do modo de viver das pessoas nos centros urbanos, pois os indivíduos passam a viver em espaços vigiados e segregados ou passam a transitar nas ruas e praças públicas permanentemente monitoradas por câmeras. Assim sendo, a cidade de muros, enquadrada no que poderia ser conceituado como o panoptismo moderno ou até mesmo no atento olhar de uma gama de Big Brothers sobre os indivíduos, sob o fundamento da busca pela segurança, reproduz a desigualdade, o isolamento e a fragmentação, corroendo a cidadania e o exercício do direito fundamental à privacidade.
Palavras-chave Violência; sociedade de controle; videovigilância; segurança pública; espaço público; privacidade.
Abstract Souza, Marcelle Machado; Vieira, José Ribas (Advisor). SMILE YOU ARE BEING WATCHED: the consolidation of a society of control over the fundamental right of privacy and over the spontaneous ways of interaction and democratic participation in public and private spaces. Rio de Janeiro, 2008. 133p. MSc. Dissertation - Departamento de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Smile you are being watched was developed under an interdisciplinary perspective, making use of philosofical, sociological and judicial grounds, in order to demonstrate, through a global and also a local analysis (taking into account the study about the implantation of Projeto Olho Vivo BH ), that, as a consequence of the ever rising violence, which permeates our present-day society, changing it into a risky society, the video-camera surveillance, in either public or private spaces, has been widely used as a necessary tool to ensure safety. However, the use of a videomonitoring policy either by the public authorities, or the private, casting their looks over the individuals, do not take into account the common risks of such a system as, for example, the consolidation of a society in permanent control of its citizens behavior, depriving them the use of privacy, freedom and spontaneity in the democratic interaction of these spaces. The present age of fear is still responsible for the alteration in the way of people s living in urban centers, since the individuals start living in monitored and segregated areas or they start walking on streets and squares which are permanently watched by video-cameras. This time, the city of walls, pictured through the concept of the modern panoptism, or even under the keen eyes of a score of Big Brothers, in order to justify a search for safety, reproduces the inequality, the isolation and the fragmentation, corroding the idea of citizenship and the free exercise of the fundamental right to privacy. Keywords Violence; society of control; videosurveillance; public security; public space; privacy.
Sumário 1. Introdução 12 2. Sociedade de risco / Sociedade de controle 16 2.1. Sociedade de risco: violência / insegurança 16 2.2. Sociedade de controle: a videovigilância 21 3. Enclaves fortificados / Bolhas de segurança 34 3.1. Espaço Público / Espaço Privado 44 4. Privacidade 50 4.1. Marcos doutrinários e jurisprudenciais sobre a intimidade e a vida privada 51 4.2. Os termos intimidade, vida privada, privacidade e a busca por seu significado e conceituação 59 4.3. Nova abordagem sobre a privacidade sob o olhar de SOLOVE 72 4.3.1. Privacidade e práticas sociais 73 4.4. A privacidade sob o olhar de WHITMAN 81 4.5. Um olhar atual sobre a privacidade 85 4.5.1. Privacidade versus Segurança 95 5. Projeto Olho Vivo BH : monitoramento e controle permanente nas ruas de Belo Horizonte MG 100 5.1. O processo legislativo 14 5.2. Resultados e análise do Projeto Olho Vivo BH 106 6. Conclusão 117 7. Referências bibliográficas 127
Lista de Ilustrações Figura 01: Ciclo do atendimento do "OLHO VIVO" 103 Tabela 02: Crimes violentos na área de monitoramento do OLHO VIVO 107 Quadro 03: Resultado da Instalação das câmeras de segurança 109 Quadro 04: Problemas anteriores à instalação das câmeras 109 Quadro 05: Índice de redução da criminalidade 109 Quadro 06: Benefícios com a instalação das câmeras 110 Quadro 07: Criminalidade após a instalação das câmeras 110 Quadro 08: Avaliação sobre a instalação das câmeras 110
Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara. Livro dos Conselhos (Ensaio sobre a Cegueira José Saramago)
1 Introdução Na era atual da alta modernidade (GIDDENS,1991) ou como enfatiza BAUMAN (2001) a era da modernidade líquida 1, a sociedade se vê perplexa diante do medo da violência que assola a todos, principalmente nos grandes centros urbanos. Diante de uma realidade cada vez mais violenta e, por conseguinte, uma incessante busca pela segurança pública aliada aos novos instrumentos disponibilizados pela Era da Tecnologia (ROSA, 2006), a forma de uso e ocupação dos espaços públicos vem sofrendo uma considerável alteração de paradigma, assim como a alteração também é sentida no tocante ao direito à privacidade, sempre passível de restrições nesta busca pela segurança. Desse modo, as políticas de prevenção e repressão à violência adotadas tanto pelo Poder Público como também pelos próprios indivíduos instituíram como uma de suas medidas o monitoramento através de câmeras a videovigilância, a filmagem permanente das pessoas nas ruas, avenidas, parques, praças, supermercados, elevadores, lojas de departamentos, empresas, consultórios, escritórios, entre outros, no intuito de coibir a prática de atividades ilícitas. O medo de se tornarem vítimas da violência fez, ainda, com que os indivíduos construíssem para si o que o presente trabalho aborda como enclaves fortificados e bolhas de segurança, vivendo cada vez mais em condomínios fechados, shopping centers, clubes fechados de recreação, carros blindados e outros, alheios a uma convivência social mais dinâmica e de interação entre todos. No primeiro caso há um risco real de invasão à privacidade daqueles que se encontram permanentemente controlados pelas câmeras de vigilância e no segundo, um esvaziamento dos espaços públicos de interação democrática entre os 1 A sociedade que entra no século XXI não é menos moderna que a que entrou no século XX; o máximo que se pode dizer é que ela é moderna de um modo diferente. O que a faz tão moderna como era mais ou menos há um século é o que distingue a modernidade de todas as outras formas históricas de convívio humano: a compulsiva e obsessiva, contínua e irrefreável e sempre incompleta modernização; a opressiva e inerradicável, insaciável sede de destruição criativa (ou de criatividade destrutiva, se for o caso: de limpar o lugar em nome de um novo e aperfeiçoado projeto; de desmantelar, cortar, defasar, reunir ou reduzir, tudo isso em nome da produtividade ou da competitividade). (BAUMAN, 2001:36)
13 cidadãos. Mascarada pela busca da segurança, a sociedade contemporânea põe em risco a sua própria privacidade e o projeto de construção e consolidação de uma democracia através da espontaneidade da interação nos espaços públicos. Frente a tais fatos e considerando que o Direito é um produto da atividade humana que se expressa por determinadas formas normativas que regulam o desenvolvimento da convivência social, que o Direito tem um caráter onipresente em quase todas as esferas do viver social (PEREZ LUÑO, 2005:20), o presente trabalho parte de uma metodologia que vai da experiência social para a construção da experiência do Direito, adotando um caráter exploratório sobre o cotidiano da sociedade contemporânea, buscando um retrato desta sociedade também por um viés filosófico e sociológico, com enfoque especial para os grandes centros urbanos brasileiros, principalmente para a cidade de Belo Horizonte MG, em seu combate e prevenção à violência através da videovigilância em espaços públicos e privados, preocupando-se com a essência do que é viver e conviver com a violência que assola este início de século XXI, com a essência da realidade social. E, a partir daí, busca fundamentos teóricos para caracterizar a própria violência e as conseqüências na ocupação dos espaços públicos, na interação democrática entre os cidadãos e na proteção ao direito fundamental à privacidade. É com essa preocupação que este trabalho busca demonstrar, em seu Capítulo 02, que em decorrência da crescente violência que assola a sociedade contemporânea, transformando-a cada vez mais em uma sociedade de risco, a vigilância através de câmeras em espaços públicos e privados vem sendo largamente utilizada como importante instrumento de prevenção e combate à violência. No entanto, a implantação de uma vigilância permanente por câmeras não considera a fundo os riscos inerentes a tal sistema como, por exemplo, a consolidação de uma sociedade de controle permanente sobre o comportamento dos cidadãos, privando-os da liberdade, privacidade e espontaneidade em espaços públicos e privados. Surgem riscos permanentes como o do controle do homem sobre o próprio homem, como o do homem vigiado todo o tempo, como o daquele que não vê, mas é permanentemente visto pelas câmeras, como a sociedade panóptica contemporânea (FOUCAULT, 2006). No capítulo 03, a discussão está focada no fato de que a atual era do medo e da violência vem mudando a forma de viver das pessoas nos grandes centros urbanos e a forma de aproveitamento de um espaço público urbano moderno e
14 democrático. A construção de fronteiras fixas e espaços de acesso restrito e controlado como um instrumento de combate e prevenção à violência deprecia o ideal do que seria uma cidade aberta capaz de promover a interação entre as pessoas; elimina a rua como aspecto central da vida pública moderna. Os moradores das cidades passam a construir hierarquias, privilégios, espaços exclusivos e rituais de segregação em seus condomínios fechados, em suas casas construídas com cercas e muros, em seus shopping centers e espaços privados de lazer gerando, assim, o seu próprio afastamento da esfera política. A cidade de muros, portanto, reproduz desigualdade, isolamento e fragmentação, corrói a cidadania e se opõe a quaisquer possibilidades democráticas, reforçando, assim, a existência de uma sociedade com menos vida associativa, menos atuação cívica, menos solidariedade e conseqüente vulnerabilidade e exposição aos desmandos de uma violência gratuita. Já o capítulo 04 aborda o direito à privacidade, seu marco teórico e a construção do seu conceito fundada nas doutrinas nacional e estrangeira. Focaliza, principalmente, a construção de um olhar sobre a privacidade na sociedade contemporânea, a adequação de uma visão sobre a privacidade inserida em uma sociedade de controle que seja capaz de melhor proteger este direito fundamental; a dualidade entre o público e o privado; os riscos de uma videovigilância permanente sobre a privacidade e, por fim, a dualidade entre esta e a busca pela segurança pública. Partindo do global para o local, o capítulo 05 perfaz uma análise de caso sobre o Projeto Olho Vivo BH implantado na cidade de Belo Horizonte MG. É a violência nesse grande centro urbano que gera a adoção de uma série de políticas de combate e prevenção à essa, entre elas este projeto de permanente vigilância por câmeras nas principais ruas e bairros da cidade. O estudo contempla o processo legislativo de elaboração da lei que rege o mencionado projeto, sua justificativa e seus objetivos e, ainda, os resultados por ele alcançados, aplicando a linha de raciocínio e as conclusões geradas nos capítulos anteriores sobre a análise local do Projeto Olho Vivo BH. É importante ressaltar que para o desenvolvimento do estudo sobre o mencionado projeto foram realizadas visitas, pesquisas e entrevistas periódicas junto à Polícia Militar do Estado de Minas Gerais em seu Comando do Policiamento da Capital (Belo Horizonte MG) e no Centro de Monitoramento do Projeto Olho Vivo BH.
15 E, ao final, o capítulo 06 desenvolve a conclusão do presente trabalho buscando teorizar toda a vivência e realidade social abordadas no texto, todo o retrato da sociedade contemporânea no aspecto da sociedade de risco e da sociedade de controle, focalizando os riscos que possivelmente uma videovigilância pode trazer para a ocupação espontânea e criativa dos espaços públicos, para a construção de um Estado Democrático de Direito e para a efetivação do direito fundamental à privacidade. É válido ressaltar, ainda, que as idéias desenvolvidas pela autora no presente trabalho, principalmente o enfoque sobre a sociedade de risco, a sociedade de controle e as conseqüências de uma videovigilância permanente sobre os indivíduos, já foram objeto de discussão e apresentação do artigo Sorria você está sendo filmado videovigilância e sociedade de controle no XVI Congresso Nacional do CONPEDI Conselho Nacional de Pesquisa e Pós- Graduação em Direito, cujo tema foi Pensar Globalmente: Agir Localmente, realizado em novembro de 2007 na cidade de Belo Horizonte MG, com a sua conseqüente publicação nos Anais do XVI Congresso Nacional do CONPEDI.
2 Sociedade de risco / Sociedade de controle 2.1 Sociedade de risco: violência / insegurança Vislumbrando o processo histórico brasileiro em meados da década de 80, século XX, tem-se que o processo de redemocratização e a volta ao exercício de um Poder Civil gerou grandes expectativas no tocante à efetividade da proteção aos direitos humanos e ao verdadeiro exercício de uma cidadania plena a todos os brasileiros. Prevaleceu, nesse momento, a ilusão de que o fim do regime militar, somado à reconstrução de instituições políticas e, ainda, a vitalidade dos movimentos sociais seriam fatores capazes de controlar e extinguir as incivilidades, o arbítrio e o autoritarismo com os quais a sociedade brasileira já há muito estava acostumada a conviver. A ordem constitucional democrática brasileira, no entanto, não assegurou cidadania tampouco a plenitude das práticas democráticas para grande parte da população brasileira, permitindo, ao contrário, que prevalecesse a violência física, a discriminação, a corrupção, o crescimento da criminalidade e das brutalidades policiais, os maus-tratos, a tortura e um sistema penal que acaba por centrar sua atuação na significativa maioria dos casos contra uma população pobre e miserável 1. É exatamente nessas duas últimas décadas do século XX que o discurso sobre o medo da violência 2 e do crime passa a fazer parte da vida social e política trazendo conseqüências como a legitimação das transformações das relações 1 Neste aspecto, consoante o disposto por ZALUAR (2006:210), [...] o processo de redemocratização coincidiu com a dramática transformação na organização transnacional do crime, que afetou principalmente as regiões metropolitanas e, nelas, os bairros populares e as favelas. A entrada dos cartéis colombianos e das máfias ligadas ao narcotráfico, principalmente o da cocaína, trouxe para o país as mais modernas armas de fogo, que foram distribuídas entre os jovens traficantes e aviões [...]. Além disso, segundo a mesma autora, as pessoas consequentemente ficaram [...] mais isoladas dentro de suas casas e de suas famílias devido à falta de previsibilidade e segurança, causada não só pela crise econômica e a inflação, mas também pela desconfiança, o medo e a violência. (ZALUAR, 2006:219) 2 O medo segundo MALAGUTI BATISTA (2003,20), [...] corrói a alma e a difusão deste tornase [...] mecanismo indutor e justificador de políticas autoritárias de controle social (MALAGUTI BATISTA, 2003,51)
17 sociais para com os espaços públicos e estruturação de padrões de segregação espacial. 3 O medo da sociedade contemporânea, segundo SOARES (2003), não é ilusório. Diferentes razões levam a um quadro nacional de insegurança extremamente grave, como por exemplo, (a) a magnitude das taxas de criminalidade e a intensidade da violência envolvida; (b) a exclusão de setores significativos da sociedade brasileira, que permanecem sem acesso aos benefícios mais elementares proporcionados pelo Estado Democrático de Direito, como liberdade de expressão e organização, e o direito trivial de ir e vir. (c) a degradação institucional a que se tem vinculado o crescimento da criminalidade: o crime se organiza, isto é, penetra cada vez mais nas instituições públicas, corrompendo-as, e as práticas policiais continuam marcadas pelos estigmas de classe, cor e sexo. (SOARES, 2003) Tais padrões de violência, crime e pânico generalizado podem ser vistos claramente neste início do século XXI, principalmente nos grandes centros urbanos, como os ataques do PCC que vitimaram São Paulo, em maio de 2006 4, o brutal assassinato do menino João Hélio Fernandes na cidade do Rio de Janeiro, em fevereiro de 2007 5 e o terror espalhado pelas brigas de gangue pelas ruas da Savassi 6, em Belo Horizonte MG, também no início de 2007, citando poucos dos muitos exemplos reais que são, a cada dia, divulgados pelos meios de comunicação. Além disso, é importante ressaltar que a violência na sociedade contemporânea, não só nas grandes capitais brasileiras, mas em todo o mundo, se apresenta como uma realidade presente, passando a atuar como um conceito central no que tange ao entendimento de relações sócio-políticas, da vida social e cultural 7. A violência deixa de ser, como em meados da década de 70 do século 3 Ainda sobre o medo, ALVES (2007) dispõe que na era da globalização, também o medo foi difundido no seio das nações, de um modo geral, passando a participar do espetáculo diário, nos jornais e na televisão, seja nas ruas de Bagdá, nos trens de Madrid, nas escolas de Beslan ou nas favelas do Rio de Janeiro. Todos os homens temem e muitos são os motivos dos medos de hoje. Embora o medo primordial seja o medo da morte, também tememos a violência, as guerras, as doenças, o terror, o outro, o conhecido e o desconhecido. 4 DAMIANI (2006) 5 FOLHA DE SÃO PAULO. Criança morre depois de ser arrastada por carro durante assalto. 08 de fevereiro de 2007. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u131469.shtml. Acesso em: 31 mai. 2007. 6 FURTADO (2007) 7 [...] assaltante já se tornou um nome comum e popular para o medo ambiente que assola nossos contemporâneos; e assim a presença ubíqua dos assaltantes tornou-se crível e o temor de ser assaltado, amplamente compartilhado. (BAUMAN, 2001:109)
18 XX, um conjunto de códigos esperados, utilizados para o alcance de uma finalidade específica. Não há mais a ligação entre ação violenta e consecução de objetivos determinados uma vez que, já na década de 90, a violência passa a se expressar sem objetivos aparentes 8. Dessa forma, a violência se generaliza sem balizamentos conhecidos, expande-se por muitos espaços da sociedade sem uma causa determinada ou aparente. E, assim, pode-se dizer que a violência hoje penetra de forma latente os meios de comunicação em massa, os espaços públicos e privados, os bairros periféricos das grandes cidades, as instituições educacionais, os transportes (DORNELLES, 1999: 42) 9, toda a vida cotidiana das sociedades contemporâneas, trazendo uma era de insegurança e de medo. Assim, segundo ZALUAR (2006, 214), [...] o crime nas ruas, especialmente o crime violento, é hoje uma das preocupações centrais das populações metropolitanas brasileiras. A generalização de imagens da cidade como um ambiente violento e os sentimentos de medo e insegurança daí decorrentes têm implicações relevantes para as novas imagens da cidade, não mais associadas à utopia liberal da liberdade e da segurança, no Rio de Janeiro ou em Nova York, nem às velhas virtudes cívicas, como civilidade, segurança, trato e confiança. As cidades têm hoje suas imagens tomadas pela deterioração da qualidade de vida urbana [...] Como resposta a tamanha e desmesurada violência, a sociedade atual não tem outra solução que não clamar pela segurança e pela paz 10, o que tem como forte exemplo o movimento Conquiste a Paz 11 lançado em ato público na Praça 8 Em qualquer pesquisa de opinião pública realizada atualmente no país, o quesito segurança recebe a maior votação, o que mostra que a população brasileira está não só preocupada, mas angustiada com o problema que, se antes ficava restrito aos becos das favelas e aglomerados e à periferia menos assistida pelo poder público, hoje já bate à porta de quem vive até mesmo em pequenos municípios e no meio rural, independentemente de classe social ou poder aquisitivo. A criminalidade e a violência - muitas vezes, gratuita estão tornando a vida uma mercadoria que se leiloa ao bel-prazer da bandidagem. (ESTADO DE MINAS. Conquiste a Paz. Belo Horizonte, n. 23.890, p. 1, 03 jun. 2007.) 9 DORNELLES (1999) 10 Afirmações mais desesperadas, pedindo por socorro, exigindo medidas imediatas para terminar com a situação de insegurança, encontram-se na seção de cartas dos leitores de jornais, em geral pessoas da classe média que vivem atrás das grades de suas casas e condomínios ou dos vidros fechados de seus carros, mas não escapam das balas perdidas nem dos assaltos à mão armada. (ZALUAR, 2006:216) 11 Conquiste a Paz. Atitude, já! Executivos da indústria e do comércio de mãos dados com educadores, religiosos, artistas, esportistas, intelectuais, profissionais liberais e trabalhadores. Enfim, toda a sociedade estará representada hoje, na Praça do Papa, no ato público que marca o lançamento da campanha Conquiste a Paz, promovida pelos Associados Minas Estado de Minas, TV Alterosa, Rádio Guarani, Portal UAI, Diário da Tarde, Aqui, Teatro Alterosa e Alterosa Cinevídeo. É o marco de uma atitude arrojada contra os níveis intoleráveis da violência e da corrupção. O movimento, sem data para terminar, parte de mudanças na cobertura da
19 do Papa, em Belo Horizonte MG, pelos Associados Minas, em data de 17 de junho de 2007, com a seguinte preocupação: No dia-a-dia do país, a questão da segurança pública ocupa amplo espaço na cartilha que trata da qualidade de vida da população. No espectro social desenhado hoje, a violência que traz no seu bojo a banalização da vida assusta até mesmo os mais experientes policiais, levando a todos inconformismo, revolta e clamor de justiça. Diariamente, a mídia registra crimes de todas as estirpes, atos bruscos e fatos em que se sobressaem a agressão ao direito de ir e vir e às pessoas de viverem em paz. 12 (ESTADO DE MINAS) O exemplo não é o único. Em Brasília, no primeiro semestre de 2007, a ONG Rio de Paz, fundada no início do ano de 2007, logo após os ataques do crime organizado que assolaram a cidade do Rio de Janeiro deixando 19 mortos 13, realizou um protesto silencioso pendurando 15 milhões de lenços na Esplanada dos Ministérios. No gramado em frente ao Congresso Nacional, cada pedaço de pano branco simbolizava a morte de uma pessoa assassinada no Brasil, nos primeiros quatro meses do ano. Além desse, a ONG Rio de Paz já realizou outros protestos de grande repercussão, colocando 700 cruzes na praia de Copacabana, na zona sul da cidade do Rio de Janeiro, mil corpos no calçadão e, ainda, 1,3 mil rosas enterradas na areia dessa mesma praia. 14 Assim, no limiar entre o século XX e o XXI, o medo não se reduz a uma mera conseqüência deplorável da radicalização da ordem econômica, mas pode sim ser visto como um projeto estético, que entra pelos olhos, pelos ouvidos e pelo coração. (MALAGUTI BATISTA, 2003:75) E é esse medo, que atinge a sociedade contemporânea e que a consolida como uma sociedade de risco, que faz com que esta, conhecida como a sociedade da tecnologia, a sociedade da informação 15, acabe lançando mão de todo um criminalidade e vai dar suporte à população na reivindicação de programas concretos de combate ao crime, para devolver às praças e ruas sua destinação cidadã e para que Minas volte a respirar sem medo (...) (ESTADO DE MINAS. Conquiste a Paz. Belo Horizonte, 17 jun. 2007. Caderno Gerais. p. 25.) 12 ESTADO DE MINAS. Conquiste a Paz. Belo Horizonte, n. 23.904, p. 1, 17 jun. 2007. 13 De acordo com SALLES (2007), (...) a segurança pública no Rio de Janeiro voltou a ser discutida nacionalmente na virada do ano, quando dezenove pessoas morreram e dezesseis ônibus foram incendiados em ataques atribuídos a traficantes. Também foram alvejadas cabines da Polícia Militar e delegacias de Polícia. (...) 14 MARIZ, Renata. Protesto silencioso pela paz ONG pendura 15 mil lenços na Esplanada dos Ministérios. Estado de Minas, Belo Horizonte, 31 mai. 2007. Nacional. p. 13. 15 Segundo GIDDENS (1991:11), [...] no final do século XX, muita gente argumenta que estamos no limiar de uma nova era, a qual as ciências sociais devem responder e que está nos levando para além da modernidade. Uma estonteante variedade de termos tem sido sugerida para esta transição,