O projeto do alvará de 13 de maio de 1803:

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Transcrição:

O projeto do alvará de 13 de maio de 1803: uma tentativa ilustrada de reforma das minas do Brasil Angélica Ricci Camargo * Introdução Este texto tem o objetivo de servir como uma breve apresentação ao documento Projeto de um alvará que estabelece a junta administrativa de mineração e moedagem em Minas Gerais, presente no volume 4 do códice 807 do Arquivo Nacional, e que deu origem ao alvará de 13 de maio de 1803, publicado na Coleção da Legislação Portuguesa compilada e anotada desde 1603. * Pesquisadora do programa de pesquisa Memória da Administração Pública Brasileira MAPA, do Arquivo Nacional 1

O interesse deste ato reside nas amplas reformulações que ele determinou na administração da atividade mineradora no Brasil, inseridas em um projeto do Estado português para a revitalização de sua economia. Assim, o objetivo aqui consiste em destacar algumas propostas do documento, relacionando-as com as orientações da política econômica da Coroa e atentando para o tratamento da questão da mineração no contexto dos debates da época. Além disso, pretende-se cotejar o projeto inicial com o texto promulgado, assinalando as modificações realizadas. A mineração no contexto dos debates ilustrados Descobrir metais e pedras preciosas constituiu-se como objeto de interesse da Coroa portuguesa desde o princípio do processo de colonização. Logo após os primeiros achados no século XVI, promoveu-se toda uma regulamentação sobre a administração das minas da colônia. O primeiro ato conhecido foi o Primeiro regimento das terras minerais, de 15 de agosto de 1603, que regulou a demarcação das terras, determinou a criação das casas de fundição e das provedorias das minas onde se encontrasse ouro ou prata, e ordenou o recolhimento do direito real do quinto. Este regimento foi sucedido por outros que alteraram a estrutura administrativa e efetuaram diversas transformações na forma de arrecadação dos rendimentos reais. No século seguinte foram empreendidas reformas mais substanciais através do regimento de 19 de abril de 1702, que transformou as provedorias em superintendências e expressou uma preocupação maior com a fiscalização e com o combate ao contrabando. Depois deste ato foram promulgados ainda o decreto de 28 de 2

janeiro de 1736, que criou as intendências do ouro em várias capitanias, e os alvarás de 3 de dezembro de 1750 e de 4 de março de 1751, que estabeleceram novas atribuições para os cargos e órgãos relacionados à mineração e dispuseram sobre a arrecadação do quinto e a derrama, que seria decretada caso não se completassem as cem arrobas de arrecadação exigidas pela Coroa. Além do ouro havia os diamantes, descobertos no século XVIII na capitania de Minas Gerais, e que também foram responsáveis pela organização de todo um aparato administrativo, além da criação de uma legislação específica voltada para sua exploração. Inicialmente, em 1734, foi constituída a Intendência dos Diamantes no Arraial do Tejuco. Em 1771, o governo reestruturou a administração das terras diamantinas, estabelecendo uma série de medidas para coibir o contrabando e criando a Junta da Administração Diamantina do Tejuco, subordinada à Diretoria da Real Extração dos Diamantes das Minas do Brasil, ligada ao Erário Régio em Portugal. A produção do ouro chegou ao ponto máximo por volta de 1760, e foi seguida de um rápido declínio, que coincidiu com a crise pela qual passou o sistema colonial. Neste contexto, o tema da decadência da produção das minas ocupou um espaço significativo no programa político de revitalização da economia dos reinados de d. José I (1750-1777), de d. Maria I (1777-1792) e da regência de d. João (1792-1816). Durante o reinado de d. José, o ministro Sebastião José de Carvalho e Melo, futuro marquês de Pombal, realizou uma série de reformas que, vinculadas aos princípios do mercantilismo ilustrado, tinham como finalidade promover uma reformulação do modelo administrativo do Estado. No plano da organização fazendária, foram estabelecidas novas medidas de controle e vigilância do 3

sistema financeiro, apoiadas nos monopólios e privilégios, com ênfase no reforço da administração periférica, na especialização de funções e órgãos e no estímulo às atividades ligadas à agricultura, comércio e indústria (FALCON, 1982). 1 Nesse momento também foi iniciado um processo de institucionalização das ciências naturais a partir de uma maior promoção do seu estudo na Universidade de Coimbra, e da criação de instituições científicas como museus de história natural, jardins botânicos e gabinetes e laboratórios destinados à catalogação e análise dos elementos naturais. A Coroa ainda incentivou uma série de viagens naturalistas no Reino e domínios portugueses, conhecidas como viagens filosóficas, além de patrocinar a aclimatação de plantas e animais em todas as suas colônias, entre outras medidas. 2 Essa relação entre Estado e ciência se acentuou durante o reinado de d. Maria I e a regência de d. João. Esse período foi marcado por uma abertura maior do governo português ao pensamento ilustrado, que se consubstanciou no desenvolvimento de uma política fomentista apoiada em um saber utilitário advindo, sobretudo, do conhecimento científico da natureza. 3 O grande centro desse ideário foi a Academia de Ciências de Lisboa, criada em 1779, que congregou boa parte da comunidade científica do Império português e reuniu tanto homens ligados às reformas pombalinas quanto o grupo anti-pombalino. A Academia, que passou a ser denominada Academia Real das Ciências de Lisboa em 1783, tinha como principal finalidade a construção e divulgação do conhecimento científico para todo o Império lusitano. Com isso, tornou-se uma instituição de grande importância para as ações 1 Existe uma vasta bibliografia sobre o assunto, da qual podemos destacar FALCON, 1982 e MACEDO, 1982. 2 Ver sobre o estatuto da história natural em Portugal CARVALHO, 1987. 3 Sobre a política econômica desse período e suas repercussões no Brasil ver NOVAIS, 1979. 4

reformistas do Estado português, ocupando um lugar privilegiado da gestão da política colonial, voltada para a exploração do mundo natural e aprimoramento da agricultura, artes e indústria (SILVA, 2004, p. 86; VARELLA, 2007, p. 155; NOVAIS, 1979, p. 225). Assim, sua criação satisfez tanto aos interesses dos cientistas, que buscavam dedicar-se a seu ofício, quanto aos do próprio Estado, pelos benefícios econômicos que os avanços das pesquisas científicas poderiam trazer (SILVA, 2004, p. 90). 4 A maior expressão de suas atividades foram as memórias escritas pelos seus sócios e colaboradores, contendo estudos e relatos de realizações técnicas e científicas executadas em gabinetes ou nas viagens filosóficas, como as empreendidas pelos naturalistas Alexandre Rodrigues Ferreira e José Mariano da Conceição Velloso no Brasil (SILVA, 2004, p. 102; MUNTEAL FILHO, 2002, p. 46). Muitas dessas memórias formularam propostas para a recuperação econômica de Portugal baseadas, principalmente, nas riquezas materiais das suas colônias. Desse modo, a ação da Academia não se restringiu apenas à análise interpretativa dos problemas enfrentados, mas buscava também orientar as diretrizes de ação da política colonial (NOVAIS, 1979, p. 240). A mineração foi um tema importante para esses ilustrados, e a recuperação dessa atividade no Brasil constituiu-se como assunto de várias memórias. As opiniões, no entanto, eram divergentes. Para José Joaquim de Azeredo Coutinho a atividade mineira era prejudicial a Portugal, como demonstra em seu Discurso sobre o estado atual das minas do Brasil, publicado em 1804. No entanto, para a maior parte desses memorialistas, a mineração era considerada como elemento importante para a economia portuguesa e seu 4 Para um estudo da Academia de Ciências de Lisboa ver MUNTEAL FILHO, 1998. 5

declínio poderia ser revertido através do aprimoramento técnico e da melhoria na instrução dos mineiros. Além disso, as propostas para o setor visavam uma racionalização do aparato administrativo existente e um combate mais eficaz ao contrabando e aos descaminhos, como pode ser observado no projeto do alvará que foi publicado em 1803 que se analisará a seguir (FIGUERÔA; SILVA; PATACA, 2004, p. 715; SILVA, 2004, p. 125). O projeto do alvará O documento Projeto de um alvará que estabelece a junta administrativa de mineração e moedagem em Minas Gerais não tem autoria nem data. Compõe o códice 807 do Arquivo Nacional que reúne várias memórias produzidas entre a segunda metade do século XVIII e as primeiras décadas do século XIX, no contexto do reformismo ilustrado português. O documento é antecedido por uma carta de Alexandre Rodrigues Ferreira dirigida a José Egídio Álvares de Almeida, de 26 de janeiro de 1803, e por um parecer assinado apenas por Andrada, que se presume ser José Bonifácio de Andrada e Silva (MENDONÇA, 1958, p. 36). A autoria do projeto é atribuída a Manuel Ferreira da Câmara Bethencourt e Sá, que em 1807 foi nomeado de Intendente-geral das Minas na Capitania de Minas Gerais e Serro do Frio (Ibidem, p. 36). Câmara cursou leis e filosofia natural na Universidade de Coimbra, foi membro da Academia Real de Ciências de Lisboa e consultor do governo em assuntos de minas e metalurgia. Escreveu diversas memórias científicas como Memória de observações físico-econômicas 6

acerca da extração do ouro do Brasil (1789) e Memória sobre a permuta de todo o ouro em pó por moeda corrente (1799) (VARELA, 2007). No geral, o documento formula uma nova política para a administração das minas do Brasil por meio da criação de novos órgãos, da extinção de antigas estruturas, da proibição de circulação do ouro em pó e da redução do quinto pela metade. No preâmbulo há o relato dos prejuízos causados pela forma como as minas de ouro e terras diamantinas eram administradas, citando a falta de conhecimentos científicos e técnicos dos trabalhadores das minas e a perda diária do ouro circulado em pó. Assim, a intenção do governo através deste ato era empreender o melhoramento dos trabalhos nesse setor, com o objetivo de promover a prosperidade do Reino, favorecendo sua inserção no novo cenário político e econômico internacional que se desenhava naquele momento. Para isso, o documento propôs uma reorganização administrativa e fiscal do sistema de produção, com a criação de quatro novos órgãos. O mais importante deles era a Real Junta Administrativa de Mineração e Moedagem, que seria constituída nas capitanias de Minas Gerais, Goiás, Bahia e São Paulo, e que teria como competências organizar as casas de permuta e as casas da moeda que seriam estabelecidas, estimular a instrução dos mineiros, criar escolas mineralógicas e metalúrgicas semelhantes às existentes na Europa, fiscalizar as companhias de mineração que deveriam ser instaladas e conhecer, em recurso, os despachos, decisões e sentenças que fossem proferidas pelo intendente-geral das minas e pelo juiz conservador metálico, e em segunda instância pelas juntas administrativas territoriais. A Real Junta seria composta, em Minas Gerais, pelo governador da capitania, que ocuparia o cargo de 7

presidente, pelo intendente-geral das minas, pelo ouvidor-geral, pelo provedor da Casa da Moeda, por dois deputados hábeis em Mineralogia, um ou dois engenheiros de minas e dois mineiros, mais oficiais de escrituração e contadoria. Nas outras capitanias, a estrutura seria um pouco menos complexa e existiriam menos funcionários. A inclusão, na estrutura da Real Junta, de deputados hábeis em Mineralogia e os engenheiros de minas, reforçada pela proposta de criação de escolas mineralógicas e metalúrgicas nos moldes das recentemente instaladas escolas de Freiberg (1765) e de Schemnitz (1770), demonstrava a preocupação com a formação de especialistas na própria colônia, em consonância com as já citadas memórias escritas no período. O projeto do alvará também determinava que em todo lugar onde houvesse minas existiriam juntas territoriais de mineração, subordinadas às reais juntas administrativas de mineração e moedagem e compostas por um professor hábil em mineralogia, pelo ouvidor de comarca (ou juiz de fora), dois mineiros peritos e guarda-mor. Para o fomento desses novos estabelecimentos de mineração seriam instaladas reais caixas de economia de minas e fundições, criadas para administrar um fundo que seria mantido com o ouro apreendido em contrabando. Em todas as vilas, arraiais ou lugares onde existissem mineiros estabelecidos com lavras de considerável produção seriam instituídas casas de permuta, com a finalidade de trocar o ouro em pó por moeda e, assim, evitar os descaminhos e os prejuízos reais. Nestas seria obrigatória a existência de pedra de cevar ou magnetos artificiais para separação do ferro ou esmeril que estivesse misturado ao ouro. Por fim, em cada comarca ou distrito mineiro 8

haveria um perito ajuramentado em Câmara para dirigir os trabalhos de mineração e apuração. Além disso, o projeto do alvará também mandava abolir as casas de fundição, extinguir os cargos de intendentes do Ouro de Vila Rica, Rio das Mortes, Sabará e Goiás, transferir as casas da moeda do Rio de Janeiro e da Bahia para as regiões de maior exploração de ouro e diamantes que eram Minas Gerais e Goiás, e reduzir o quinto pela metade. Definia, ainda, as formas de concessão de terras a particulares ou a companhias de mineração. Em relação à extração dos diamantes, o projeto determinava a extinção dos cargos de intendente e fiscal dos diamantes e o estabelecimento de uma Junta de Fazenda no Arraial do Tejuco, devido à importância dessa região para a Coroa. Tal orientação era atípica, já que as juntas de fazenda eram instituídas apenas nas capitais das capitanias. O projeto também mandava transformar o Arraial do Tejuco em vila, com o nome de Vila Nova da Princesa parte que não constou na versão publicada. O alvará de 13 de maio de 1803, quando oficialmente promulgado, preservou quase na íntegra o texto do manuscrito. As alterações mais significativas apareceram na redação do preâmbulo e na inclusão de dois parágrafos que reforçaram o papel dos governadores das capitanias nas atividades de recuperação das minas. O primeiro deles determinava que estes consultassem a Coroa sobre medidas voltadas para suprir a diminuição da produção das lavras, e o segundo autorizava os governadores a concederem empréstimos para compra de ouro e prata para cunhar moeda (PORTUGAL, 1855, p. 207; 209-210). 9

Tanto o projeto quanto o alvará de 13 de maio de 1803 foram objetos de análise de diversos estudiosos, que apontaram dificuldades na sua execução devido à incompatibilidade de alguns dos itens presentes com os interesses particulares. 5 Não entrando nessa discussão, cabe aqui apontar que, ao que parece, somente a criação das casas de permuta foi efetivada. Cinco anos depois, o alvará de 1º de setembro de 1808, que ordenou a circulação de moedas e proibiu o curso do ouro em pó, confirmou que até aquele momento não permitiram as atuais circunstâncias pôr em prática as saudáveis providências estabelecidas pelo alvará de 13 de maio de 1803, particularmente as que contribuiriam para melhorar o trabalho das referidas minas, e a condição dos mineiros (BRASIL, 1891, p.125). Dentre as determinações não implementadas do alvará está também a extinção imediata das casas de fundição. Tal fato ocorreu em momentos distintos, sendo que as últimas desapareceram somente em 1832, junto com as intendências do ouro e suas comissárias em Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso. Neste mesmo ano, foram extintas, ainda, a Intendência dos Diamantes e a Junta da Administração Diamantina do Tejuco. A leitura da legislação também permite concluir que, ao contrário no estabelecido pelo alvará de 1803, não houve a instalação de uma Junta de Fazenda no Arraial do Tejuco, nem a mudança de localidade das casas da moeda e a redução do quinto. 5 Entre eles estiveram o barão de Eschwege, Joaquim Felício dos Santos, Pandiá Calógeras e Marcos Carneiro de Mendonça. Ver sobre essa discussão MENDONÇA, 1958, p. 117-138. Uma análise mais recente sobre esse sobre o projeto pode ser encontrada em FIGUERÔA, 2002. Neste mesmo volume da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, dedicado ao códice 807 do Arquivo Nacional, pode ser encontrada a transcrição do projeto do alvará sob o título de Memória sobre um novo sistema de mineração no Brasil, p. 325-348. 10

Assim, embora o alvará não tenha sido executado em toda sua totalidade, este representou uma tentativa importante de recuperação do setor da mineração no Brasil e nos ajuda a entender como as ideias ilustradas estiveram presentes no projeto do Estado português para a superação de sua crise econômica. Bibliografia ARQUIVO NACIONAL. Projeto de um alvará que estabelece a junta administrativa de mineração e moedagem em Minas Gerais. Fundo Diversos Códices, códice 807, v. 4, f. 54-69, s.d. BRASIL. Alvará de 1 de setembro de 1808. Ordena que circulem em todas as capitanias do interior as moedas de ouro prata e cobre que correm nas de beiramar e proíbe o curso do ouro em pó como moeda. Coleção das leis do Brasil, Rio de Janeiro, p.125-128, 1891. CARVALHO, Rómulo de. A História Natural em Portugal no século XVIII. Lisboa: Livraria Bertrand, 1987. (Biblioteca Breve, 112). DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Aspectos da Ilustração no Brasil. In: Revista do IHGB, Rio de Janeiro, v. 278, p.105-170, jan./mar. 1968. FALCON, Francisco José Calazans. A época pombalina: política econômica e monarquia ilustrada. São Paulo: Ática, 1982. (Ensaios, 83). FIGUERÔA, Silvia F. de M. Ciência/minerologia, mineração. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, v.163, n. 416, p.287-293, jul./set.2002. 11

; SILVA, Clarete Paranhos da; PATACA, Ermelinda Moutinho. Aspectos Mineralógicos das Viagens Filosóficas pelo território brasileiro na transição do século XVIII para o XIX. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 11, n. 3, set./dez. 2004. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=s0104-59702004000300009. Acesso: 13 jun. 2011. MACEDO, Jorge Borges de. A situação econômica de Portugal no tempo de Pombal. 2. ed. Lisboa: Moraes, 1982. MEMÓRIA sobre um novo sistema de mineração no Brasil. Revista do IHGB, Rio de Janeiro, v.163, n.416, p. 325-348, jul./set.2002. MENDONÇA, Marcos Carneiro. O intendente Câmara: Manuel Ferreira da Câmara Bethencourt e Sá, Intendente Geral das Minas e dos Diamantes, 1764-1835. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1958 (Brasiliana, v. 301). MUNTEAL FILHO, Oswaldo. Memórias, reformas e acadêmicos no império lusoatlântico domínio territorial, poder marítimo e política mercantilista. Revista do IHGB, Rio de Janeiro, v.163, n.416, p.13-66, jul./set.2002.. Uma sinfonia para o Novo Mundo: a Academia Real das Ciências de Lisboa e os caminhos da Ilustração luso-brasileira na crise do Antigo Sistema Colonial, 2 v. Rio de Janeiro: UFRJ, 1998. Tese (Doutorado) Programa de Pós-Graduação em História Social, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1998. NOVAIS, Fernando A. Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema colonial. (1777/1808). São Paulo; Hucitec, 1979. PORTUGAL. Alvará de 13 de maio de 1803. Regulando as minas de ouro e diamantes na América, com diversas providências e novos estabelecimentos. Coleção Cronológica da legislação Portuguesa compilada e anotada desde 1603, Lisboa, v.2, p. 202-222, 1855. 12

SILVA, Clarete Paranhos. Garimpando Memórias: As ciências mineralógicas e geológicas no Brasil na transição do século XVIII para o século XIX. Campinas: Unicamp, 2004. Tese (Doutorado) Programa de Pós-Graduação em Ensino e História de Ciências da Terra, Instituto de Geociências, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2004. VARELA, Alex Gonçalves. Juro-lhe pela honra de bom vassalo e bom português: análise das memórias científicas de José Bonifácio de Andrada e Silva, 1780-1819. São Paulo: Annablume, 2006.. A trajetória do ilustrado Manuel Ferreira da Câmara em sua "fase européia" (1783-1800). Tempo: Revista do Departamento de História da UFF, v. 12, n. 23, p.150-175, julho de 2007. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/tem/v12n23/v12n23a09.pdf. Acesso em: 13 jun. 2011. 13