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Transcrição:

Luzes a quem está nas trevas: a linguagem política radical nos primórdios do Império * Marcello Basile Nas três últimas décadas, a história intelectual, ou história das idéias, em suas vertentes diversas, vem passando por um acentuado processo de renovação, marcado pelo estreito contato travado com outras disciplinas e outros campos do conhecimento histórico, particularmente com a chamada nova história política, a história cultural e a crítica literária. Novas abordagens buscam, então, ir além das tradicionais análises limitadas à exposição das idéias de um autor isoladamente ou de toda uma corrente de pensamento (cujas obras são tidas como dotadas de um significado intrínseco, dado pelo autor ou conformado a um determinado estilo), geralmente vinculadas a um contexto social que mecanicamente determinaria a produção e a recepção (esta, reduzida às influências) das idéias. Observase, assim, uma atenção crescente por temas e questões antes praticamente ignorados, como a apropriação e a circulação social das idéias, os mecanismos de mediação e de vulgarização das grandes obras, a literatura marginal e de circunstância, os pasquins e panfletos, os recursos de argumentação retórica e a linguagem política. 1 Interessa aqui destacar este último campo de estudo, cujos avanços são em grande parte devidos aos trabalhos de John Pocock e de Quentin Skinner. Ambos têm se dedicado ao estudo do pensamento político moderno na Europa, tendo como base a análise da linguagem e do vocabulário político que constituem as matrizes sócio-intelectuais e os fundamentos ideológicos dos textos de natureza política e filosófica produzidos no período. De acordo com os dois autores, a linguagem normativa disponí- * Este artigo é baseado no capítulo IV de minha Dissertação de Mestrado, intitulada Anarquistas, rusguentos e demagogos: os liberais exaltados e a formação da esfera pública na Corte imperial (1829-1834). Rio de Janeiro: Programa de Pós-Graduação em História Social da UFRJ, 2000. Topoi, Rio de Janeiro, set. 2001, pp. 91-130.

92 TOPOI vel, expressa em termos de um vocabulário próprio, configura-se como um elemento fundamental no estabelecimento, na definição e na resolução das principais questões problematizadas em uma dada época; contribui para determinar os parâmetros de discussão, ao mesmo tempo em que fornece um elenco de possibilidades de escolha para aqueles que pretendem expressar e legitimar suas idéias e condutas (ou contestar e denegrir as de outrem), constituindo-se, então, em um fator determinante das ações praticadas pelos agentes sociais envolvidos no debate político. Texto e contexto articulamse, assim, de maneira interligada, definindo a linguagem como produto e como agente da história, sem com isso recair no determinismo contextual da tradicional história das idéias ou nas posições radicais introduzidas, na esteira da crítica literária, pela chamada virada lingüística, que reduzem tudo à linguagem ou ao texto. 2 No Brasil, há uma significativa concentração de trabalhos entre as décadas de 1950 e 1970, circunscritos, todavia, aos quadros da antiga história das idéias; os avanços operados na área ainda se acham muito pouco problematizados, sendo as novas abordagens incorporadas de maneira um tanto informal e fragmentada, conforme salientou, em balanço historiográfico recente, José Murilo de Carvalho. 3 Há, assim, um vasto e promissor campo a ser explorado, inclusive no que diz respeito às linguagens políticas diversas que informavam os projetos produzidos em momentos cruciais da história política brasileira. Os liberais exaltados e o surgimento de uma linguagem política radical O espaço de tempo que acompanhou e se seguiu à Independência do Brasil destaca-se como um período-chave para o estudo do desenvolvimento das linguagens políticas. Entre 1820 e 1822, o movimento vintista português tornou-se responsável por uma inédita divulgação no Brasil das idéias liberais, embaladas pela grande proliferação de jornais e panfletos que passaram então a ser produzidos e circulavam nos dois lados do Atlântico, formando uma densa rede de debates. Uma cultura política liberal desenvolve-se, assim, em torno dos sucessivos acontecimentos desencadeados nos dois países, bem como em torno de questões como o constitucionalismo

L UZES A QUEM ESTÁ NAS TREVAS 93 monárquico, representação, divisão de poderes, pacto social, soberania da nação, direitos do cidadão e liberdade, opondo-se a tudo aquilo que se relacionava com o governo absoluto. Uma linguagem política peculiar emerge neste debate, veiculada nos periódicos e, sobretudo, nos panfletos, que se encarregavam, assim, de difundir o novo vocabulário político, nos termos colocados por aquelas questões. Mas esta cultura política, e logo a linguagem de que se revestia, encontravam-se essencialmente fundamentadas nas mitigadas Luzes portuguesas, o que explica os limites de seus mais caros valores, como a união entre monarquia constitucional e Igreja católica, uma visão de mundo embaraçada na doutrina cristã, e uma liberdade e igualdade restritas ao plano da lei. Substancialmente, portanto, não incorporavam os princípios mais radicais da Ilustração francesa ou mesmo do Liberalismo americano; daí as bases moderadas da Independência. 4 Uma linguagem radical só irá desenvolver-se propriamente a partir dos últimos anos do Primeiro Reinado, com a emergência de uma nova facção política, os liberais exaltados. É certo que, antes disso, alguns de seus postulados já eram professados por Cipriano Barata, redator da célebre Sentinella da Liberdade, publicada sucessivamente em Pernambuco, na Bahia e no Rio de Janeiro entre 1823 e 1835 (redigida inclusive dentro das diversas prisões por onde passou) 5. Mas foi somente com a organização dos liberais exaltados (dos quais o próprio Barata se tornaria um líder nacional) que os princípios do Liberalismo radical se articulariam em um projeto, não mais de um homem, e sim de todo um grupo político. O surgimento dos exaltados se dá em meio à crise política que desde 1826 vinha se abatendo, de forma mais sistemática, sobre o governo de Pedro I, com a reabertura do Parlamento e o revigoramento da Imprensa política, após os anos de chumbo que se seguiram à Independência. Nestas duas instâncias se concentraram as forças de oposição ao Imperador, a princípio capitaneadas por um grupo de liberais moderados, composto por uma nova geração de políticos do Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo, ligados à produção e ao comércio de abastecimento da Corte, dentre os quais se destacavam homens como Evaristo da Veiga, Bernardo Pereira de Vasconcellos e Diogo Feijó. 6 Pretendia este grupo realizar reformas de caráter estritamente político-institucional, que limitassem os poderes do Im-

94 TOPOI perador, conferissem maiores prerrogativas à Câmara dos Deputados e autonomia ao Judiciário, assegurassem a aplicação das conquistas liberais já firmadas ou previstas pela Constituição (sobretudo no que concerne aos direitos civis dos cidadãos) e, ao mesmo tempo, estabelecessem uma liberdade circunscrita à esfera da lei e da ordem. Por volta de 1829, no entanto, com a radicalização das lutas políticas, frente a insistência de dom Pedro em não ceder aos clamores liberais, persistindo em sua marcha autoritária de governo, um grupo com discursos, propostas e ações mais ousados começa a se articular na corte e em várias províncias. A crítica agora ia além das reformas político-institucionais pleiteadas pelos moderados, avançando, não só neste campo, mas também sobre delicadas questões sociais até então deixadas de lado. Para começar, defendiam o regime republicano, o sistema federalista, a separação entre Igreja e Estado, assim como a reforma agrária, uma cidadania isenta de qualificações excludentes de renda, instrução, sexo ou etnia, o fim gradual da escravidão, a melhoria das condições de vida das camadas de baixa condição social, uma igualdade não apenas jurídica, mas também social, a soberania do povo e, como recurso extremo para a realização destes fins, uma revolução popular. 7 Ao contrário dos moderados, a nova facção não surge como uma coalizão parlamentar, onde, aliás, nunca viria a ter representação substancial. Seus membros tampouco integravam as elites política ou socioeconômica do Império, sendo basicamente oriundos das camadas médias urbanas; eram profissionais liberais, funcionários públicos, militares, pequenos e médios comerciantes, a exemplo do boticário Ezequiel Corrêa dos Santos, do padre e professor Marcelino Pinto Ribeiro Duarte, dos majores Miguel de Frias e Vasconcellos e Antonio Rangel de Vasconcellos, do tipógrafo Francisco de Paula Brito, e dos jornalistas Antonio Borges da Fonseca, Cipriano Barata e João Baptista de Queiroz. É, portanto, no âmbito da esfera pública em gestação que despontariam os exaltados, fazendo da imprensa e das ruas seus principais canais de atuação política. 8 Apesar das acentuadas divergências ideológicas e de alguns inevitáveis desentendimentos ocorridos entre os dois grupos, moderados e exaltados formaram um bloco de oposição ao governo de Pedro I, mantendo-se

L UZES A QUEM ESTÁ NAS TREVAS 95 unidos, em face do inimigo comum, até a queda do imperador, a 7 de abril de 1831. Todavia, com a instauração da Regência, a subida dos moderados ao poder, mais bem estruturados politicamente, e o conseqüente alijamento dos exaltados logo provocaram o rompimento da aliança liberal, fazendo com que estes últimos radicalizassem ainda mais suas posições, agora no combate ao governo regencial. Nisto estarão acompanhados de uma terceira facção política, surgida pouco depois da Abdicação os caramurus, defensores de um modelo de governo autoritário e conservador, em alguns casos (não na maioria das vezes) de cunho restaurador, nos moldes vigentes no Primeiro Reinado. Embora não houvesse qualquer afinidade ideológica entre os dois grupos, uma ala dos exaltados uniu-se então aos caramurus, no intuito de formar um bloco de oposição à Regência moderada, compondo aquilo que Evaristo da Veiga chamou de liga de matérias repugnantes ; 9 outra ala, porém, buscou uma aproximação tática com os moderados, a fim de obter no Parlamento a aprovação das reformas constitucionais (consubstanciadas, em 1834, no Ato Adicional) que eram obstaculizadas no Senado pela bancada caramuru, ao passo que um terceiro segmento exaltado preferiu não fazer qualquer tipo de composição com seus rivais. Percebe-se, assim, que os exaltados não chegavam a constituir um grupo bem homogêneo, mas o mesmo é válido, sem dúvida, para as demais facções, que também conviviam com suas divisões internas e princípios conflitantes. O fato é que os exaltados tornaram-se os introdutores no Brasil imperial de uma nova linguagem política, pautada fundamentalmente nos princípios do jacobinismo francês. E o principal responsável, na capital, pela difusão desse vocabulário radical foi o mais importante jornal exaltado da corte, a Nova Luz Brasileira, que circulou ininterruptamente entre 1829 e 1831, em um total de cento e oitenta números regulares, redigidos por Ezequiel Corrêa dos Santos, com a eventual colaboração de João Baptista de Queiroz. Coube a este jornal a iniciativa singular de lançar, ao longo de quarenta e nove edições (do n o 11 ao 59, publicados de 15 de janeiro a 13 de julho de 1830), o que poderia ser chamado, dado o caráter da empresa, de um dicionário cívico doutrinário, composto por nada menos que cento e oito conceitos (ou definições, como foram então denominados) de significação política. Embora não esgote o ideário exaltado, trata-se, por certo,

96 TOPOI de um riquíssimo manancial da linguagem e do vocabulário político que informavam o pensamento e a ação dos exaltados, merecendo, portanto, uma análise detalhada. O dicionário cívico doutrinário da Nova Luz Brasileira De um modo geral, os conceitos formulados no dicionário cívico doutrinário da Nova Luz Brasileira definem-se em torno da oposição semântica entre despotismo e liberalismo. A partir deste referencial, estruturam-se diversos eixos temáticos, onde se pode bem perceber a originalidade de conteúdo e a abrangência do campo conceitual exaltado. A título de comparação, serão eventualmente mencionadas as definições encontradas na 2 a edição (de 1813) do Diccionario da lingua portugueza, de Moraes Silva, o mais conhecido na época, para aqueles vocábulos também apresentados pelo periódico em questão. A crítica por este feita ao poder absoluto e a apologia ao governo liberal já se evidenciam nas definições que tratam da forma de governo. É o caso, por um lado, de Governo Absoluto, Rei Absoluto, Despotismo, Arbítrio ou Arbitrariedade, Tirania, Tirano, Direito de Força, O Maior Crime do Cidadão, Poder Real e Pessoa Sagrada e Inviolável; e, por outro, de Governo Misto, Popular ou Monarquia Liberal, Governo Legítimo (que dá nome a dois verbetes ), Governo Livre, A Melhor Forma de Governo e Legitimidade. Em relação ao primeiro grupo, observa-se que Governo Absoluto é definido como todo aquele governo, que reúne os poderes em uma única pessoa, e que por isso nele pode mais a vontade de um só homem, e de qualquer que obre em seu nome, do que as leis; porque ainda que estas existam, não são mais do que meros formulários. Por sua vez, Rei Absoluto é aquele que usurpa os Poderes da Nação, e por isso está continuamente em estado de guerra com o povo. Já o Despotismo é uma ação fora das Leis e procede do abuso do poder, assim como Arbítrio ou Arbitrariedade, isto é, o quero porque quero, porque assim é minha vontade sem freio, e não faço caso das Leis. 10 A Tirania é a anarquia dos que governam, pois nela não há Leis e anda unida com a usurpação do Poder, sendo Tirano aquele que viola, profana e pisa as Leis sociais; aquele que usurpa a auto-

L UZES A QUEM ESTÁ NAS TREVAS 97 ridade que não lhe pertence, e ataca os direitos dos Cidadãos e os oprime. Da mesma forma, Direito de Força é o pretendido direito do ladrão sobre as coisas que ele rouba, sendo este o caso de quem usurpa um governo livre. Nesta perspectiva, O Maior Crime do Cidadão é o arrojo, e atrevimento de querer humilhar a sua Pátria, e fazer escravos seus Concidadãos, usurpando os Poderes, e fazendo-se Senhor absoluto. Bem reveladora é, ainda, a definição de Poder Real, invenção moderna dos Reis déspotas, para enganar os Povos; e para ensinar, que os reis devem imperar com o seu poder pessoal, e privativo sobre as Assembléias, a fim de disporem dos três poderes, e dos direitos todos da Sociedade. Completando o quadro, Pessoa Sagrada e Inviolável, que se desdobra em duas outras, 11 é aquela que só dá conta de suas ações a Deus, estando fora do alcance das Leis da Sociedade, assim recaindo todo o mal, e toda a responsabilidade sobre os ministros. 12 Quanto ao segundo grupo, verifica-se, por outro lado, que Governo Misto, Popular ou Monarquia Liberal é aquele que tem poderes divididos; que se dirige por meio de uma Constituição, que dá ao povo representação, influência, e parte em os negócios públicos, de tal modo que o governo por um lado é Monárquico, e por outro é Republicano, sendo o seu Chefe Rei ou Imperador hereditário. Por sua vez, Governo Legítimo é aquele que um Povo, como verdadeiro e único Soberano, escolhe e dá a si mesmo, independente de força e sedução; e o conserva por seu gosto ; ou, em outra definição do termo, o governo que só está fundado na reta razão, justiça, e consentimento dos Povos; isto é, na Lei por eles feita. Da mesma forma, Governo Livre é aquele que existe por escolha e consentimento franco dos povos, e que se mantém sem força d armas [...] só por meio de Leis justas; governo em que o Povo obra e tem parte na Legislação, e em toda a administração por meio de seus Representantes, livremente escolhidos; governo que está fundado nas Leis, da natureza; nos direitos do homem, na razão e eqüidade. Neste sentido, A Melhor Forma de Governo é a Constitucional liberal, porque é aquela em que se pode abusar menos do poder; aquela onde se vexa menos a Nação com tributos, e despotismo, e se faz justiça com brandura e inteireza; e onde se pode conhecer, e corrigir com mais facilidade os abusos desse poder, e prestar ao mesmo tempo socorros ao povo. E Legitimidade, por fim, é um privilégio durador, mas

98 TOPOI condicional, que dão as Leis ou a vontade geral e livre do Povo, para o chefe de qualquer Nação gozar da direção dos negócios públicos, só existindo realmente, portanto, no governo misto liberal. 13 No conjunto dessas definições, a Nova Luz Brasileira ressalta, portanto, sua defesa do governo liberal, baseada nos princípios do constitucionalismo, da representatividade e do pacto social, e sua oposição intransigente ao governo absolutista, onde nada disso teria lugar, existindo apenas a vontade arbitrária do governante, acima de tudo e de todos. 14 Até aí nada de singular ou de novo. O ponto importante a destacar é o que se refere à sustentação do chamado governo misto, ou seja, aquele que, imbuído das prerrogativas liberais, combinaria os princípios republicanos (no sentido aqui de bem público, da participação dos cidadãos na gestão da coisa pública) e monárquicos (a vitaliciedade, a hereditariedade do soberano). Um rápido esclarecimento faz-se, então, aqui necessário. A aparente aceitação pelo jornal da Monarquia, enquanto regime de governo, deve ser compreendida dentro do contexto peculiar em que o dicionário foi produzido; isto é, ainda durante o Primeiro Reinado e, particularmente, no primeiro semestre de 1830, antes, portanto, do maior recrudescimento da oposição a dom Pedro, que se daria apenas a partir de setembro, com a chegada das notícias da revolução de 1830 na França, 15 e de novembro, com o assassinato, em São Paulo, do jornalista Libero Badaró. Defender o regime republicano nesta época de fortes restrições à liberdade de exprimir idéias significava ser prontamente processado e preso por crime de imprensa, sob alegação de atentado contra a forma de governo e o imperante, conforme estabelecido nos artigos 3 e 4 da Constituição imperial. Por isso, não só a Nova Luz Brasileira, mas também todos os demais jornais exaltados, não tinham ainda condições de defender abertamente o regime republicano. Procuravam, assim, driblar a repressão governamental jogando, propositadamente de forma ambígua e com boa dose de retórica, com a dupla acepção da palavra república: aplicavam-na ora no sentido clássico do direito romano como coisa pública (res publica), como organização política de um Estado, sob qualquer forma de governo, pautado pelo interesse público, pelo bem comum, ora no sentido estrito de um regime específico de governo no qual o mandatário é periodicamente

L UZES A QUEM ESTÁ NAS TREVAS 99 eleito. Daí as usuais referências ao presidente dos Estados Unidos como monarca republicano e ao regime republicano como uma monarquia eletiva e temporária, como fazia a própria Nova Luz Brasileira, mais tarde, ao defender para o Brasil o que chamou de Monarquia Americana sui generis, ou seja, uma monarquia democrática, inspirada nas idéias de Silvestre Pinheiro Ferreira, que, além de constitucional, representativa e federalista, seria também não-hereditária e eletiva. 16 As dissimulações do jornal não foram, contudo, suficientes para livrá-lo de um processo, movido em agosto de 1831 (já, portanto, em plena Regência), sob alegação de abuso da liberdade de imprensa, por comprometer a segurança pública, ao fazer apologia do regime republicano. 17 A absolvição neste processo e a radicalização da luta contra o governo regencial após a revolta de julho de 1831, promovida pelos exaltados, devem ter encorajado o jornal, pois foi somente a partir daí que passou a abertamente assumir, juntamente com outros periódicos da mesma linha, o seu republicanismo, como fez ao demonstrar a um seu correspondente as pretendidas vantagens deste regime em relação à monarquia, justificando, assim, sua posição favorável à pronta instauração da República no Brasil: É para não se aturar governos de ladrões que se inventou governo Republicano. Na República o que governa bem não ganha dez, ou doze mil cruzados por dia, como ganhava o Pedro traidor, fora o que ele roubava, e a corja que o cercava: é esta a primeira diferença. Além disto o que governa em governo Republicano é eleito como os Deputados: se governa bem, fica governando; mas se governa mal vai tratar de outro ofício: acontece como com os sapateiros remendões, aos quais ninguém dá obra quando ele estraga a fazenda, que se lhe deu. Nas Repúblicas bem dirigidas castiga-se a quem governa mal; porém nas monarquias como a de Pedro traidor quanto mais sem vergonha, ladrão, e malvado é o rei, mais Auroras, Faróis, Januários, e Independentes [18] aparecem para sustentarem o tirano, à sombra do qual os patifes fazem das suas. Só nas Repúblicas como a dos Estados Unidos é que se vê Justiça. Canais de navegação, Escolas, Hospitais & c. em abundância para todos: é governo de que não gostam mal intencionados cangueiros, e comendadores. 19 Voltando agora às definições do dicionário em questão, verifica-se que uma série de conceitos aborda os poderes e órgãos que constituem um

100 TOPOI governo liberal, sublinhando os princípios da divisão e independência dos poderes e da representatividade dos cidadãos. Assim, Gabinete, Ministério ou Governo é a coleção dos Ministros d Estado d uma Nação, os quais dirigem todos os negócios conforme sua Constituição, tendo à frente o Rei, ou Presidente, como Chefe do Poder Executivo. Legislatura é o Sublime Corpo Legislativo, isto é, a Assembléia Geral Nacional, considerada toda junta: às vezes consta só de Deputados; outras vezes tem duas Câmaras ou salas, uma de Deputados, outra de Senadores, durando o espaço de tempo entre cada eleição. Assembléia ou Representação Nacional é o corpo unido dos Deputados, ou Representantes, ou Mandatários do Povo; (Procuradores) escolhidos, e eleitos livremente pelo mesmo Povo ; a assembléia poderia ser apenas Legislativa, quando se ocupa em fazer as Leis civis e regulamentares, reformá-las, interpretá-las, e revogá-las: em zelar a Constituição, ou também Constituinte, quando lança os fundamentos do Contrato Social, e do Governo; é aquela que escolhe e aprova esse Governo, ou o muda e reforma, e dá estabilidade a todas as instituições da Sociedade; arranja a Constituição e tudo conforme os desejos e poderes concedidos e declarados livremente pelo mesmo Povo. Já Delegado são as pessoas a quem o Povo confia certa porção de autoridade, enquanto Corpo Legislativo, Poder Legislativo e Representação Nacional são o mesmo que Assembléia Geral. Corpo Executivo ou Poder Executivo, por sua vez, é o Chefe do Ministério (ou ele se chame Rei, Imperador, ou Presidente) com os Ministros d Estado, ao passo que O Poder Judicial e O Corpo Judicial são os Tribunais, e demais Magistrados que administram Justiça segundo as Leis. O jornal ensinava, ainda, que Maioria Geral significa mais de metade dos votos do total dos votantes. 20 Os significados de alguns desses conceitos podem parecer hoje um tanto óbvios e desnecessários, mas assim não eram vistos naquela época. Tais princípios só começaram a ser efetivamente divulgados no Brasil a partir do Vintismo e, em 1830, ainda eram uma realidade relativamente nova, sendo desconhecidos por boa parte da população, em particular aquela, de condição social mais modesta, que, embora alfabetizada, não tinha acesso à cultura erudita dos grandes tratados políticos e filosóficos, e mesmo aquela iletrada. Como será discutido adiante, eram especialmente esses segmen-

L UZES A QUEM ESTÁ NAS TREVAS 101 tos que constituíam o público-alvo das folhas exaltadas; para eles, sobretudo, é que se dirigia um tal dicionário. Sendo assim, a Nova Luz Brasileira ressaltava também que só sob governos liberais é que haveria, de fato, Estado, Nação e Pátria, e, logo, Patriotismo ou Amor da Pátria e Patriota, os quais seriam todos uma quimera nos governos absolutistas. Definindo Estado como a forma de governo que a sociedade adota, e abraça para sua felicidade, explicava que o estado absoluto só existe por engano e força, pois, absorvendo todos os poderes, e sendo em benefício de uma só pessoa, e seus sequazes, não pode fazer a verdadeira felicidade do povo, a qual é o fim de todo o governo. Nesta perspectiva, a Primeira ou Suprema Lei do Estado só poderia ser a salvação do Povo, e de seus direitos, e, conseqüentemente, Nação era entendida como o Povo reunido debaixo de um instituto, ou governo, conforme ao seu gosto, e circunstâncias. O conceito de Pátria é particularmente digno de nota. A princípio, afirma o jornal que há duas idéias de Pátria, uma física e outra moral. A primeira continha duas acepções, a geral e a particular, que apontam para a ambigüidade que a noção possuía na época: a geral é a idéia de nação, ou província, a que o homem pertence; o particular, é a idéia da terra, cidade, vila, ou lugar, em que a natureza lhe deu o ser, e a vida. Já a idéia moral remete à obrigação, que tem a Pátria, de nos conservar os nossos direitos naturais, e civis, a respeito da vida, da liberdade, da igualdade, propriedade & c.; de nos dar parte na administração do nosso governo; e de nos franquear os meios de perfeição pelas luzes do espírito; havendo a nossa existência sempre segura, agradável, e feliz. Neste sentido, ressaltava que Extinta esta idéia moral, morrem as idéias físicas, e desaparece a idéia de Pátria. É por isso que nos governos absolutos não há Pátria, porque falta a idéia moral, e por isso o homem torna-se escravo. Verifica-se, assim, na idéia física, a combinação de uma percepção nacional, regional e mesmo local de pátria, bastante comum no período, parecendo indicar a ausência de um verdadeiro sentimento de identidade nacional. 21 Todavia, o que prevalece para o jornal é a idéia moral, que sublinha a perspectiva nacional de pátria, concebendo-a como a entidade que só pode ser a Nação que deve garantir os direitos comuns dos cidadãos. Este mesmo sentido, vinculado ao sentimento de identidade nacio-

102 TOPOI nal, encontra-se presente na definição de Patriotismo ou Amor da Pátria, como um sentimento elevado e sublime, que impele o Cidadão a procurar e promover o bem de sua Pátria, segundo as leis da eqüidade, sobre todos os bens do mundo; e a preferir esse bem a todos os seus interesses particulares; ainda mesmo que seja sacrificando a vida. E não é outro o sentido de Patriota, o homem livre, que ama a Pátria sobre todas as coisas, que a defende extremosamente, como corpo de que ele é parte. 22 É claro que, para a Nova Luz Brasileira, os governos livres e ilustrados seriam a melhor evidência, na política, da Civilização, que nada mais era do que o conhecimento e aplicação dos direitos naturais, e das gentes, pondo em prática bem clara os deveres da humanidade, e as virtudes sociais, que podem adoçar os costumes, e melhorar a sorte dos homens, e das Nações; tudo sobre as bases de um sistema universal de luzes, e boa moral. Este seria também o verdadeiro fim da Política, ciência filha da verdade, para guiar freqüentemente os homens pelo caminho da prosperidade geral, e fazer o bem de todos dentro da sociedade civil, e fora dela, segunda as Leis da razão, justiça, e humanidade ; na concepção do jornal, os reis absolutos é que teriam transformado a política em uma ciência de velhacaria, mentiras, enganos, e traições. 23 Outro importante grupo de conceitos refere-se aos direitos e garantias inalienáveis do homem e do cidadão, onde se encontra melhor expresso o princípio do pacto social e das liberdades naturais, civis e políticas de que cada indivíduo deveria ser portador. Trata-se de um conjunto central de definições, uma vez que, como será visto depois, um dos principais objetivos, não só do dicionário, mas também da Nova Luz Brasileira, era conscientizar a população (livre) de sua condição de cidadão e, como tal, de seus direitos. Começava, assim, por explicar que Homem Social é toda criatura racional reunida em sociedade por sua livre vontade para ser feliz, para, em seguida, sublinhar a importância desses direitos. Ensinava, então, que Incontestável são os direitos do homem, isto é, que o homem nasce livre e igual; que nasce para ser feliz neste mundo e na sociedade que ele contratou; e formou com os seus semelhantes: que deve viver seguro: [...] que só deve obedecer às leis justas: que deve destruir o despotismo: que deve ter o direito de votar, e ser votado. Do mesmo modo, é tido como Inalienável

L UZES A QUEM ESTÁ NAS TREVAS 103 a Soberania do Povo, ou Nação; a liberdade, a igualdade total; o direito de votar, e ser votado nas eleições tendo virtudes e talentos. Já Imprescritível é a posse do território de um Povo; a Soberania nacional; o direito de conservar a vida, e a liberdade; o direito de escolher o governo, de o reformar, legislar. 24 Antes de prosseguir na classificação e na discriminação desses direitos, convém, todavia, logo esclarecer a concepção bem peculiar de cidadania de que estava imbuída a Nova Luz Brasileira, manifesta já na primeira definição de seu dicionário, sem dúvida a mais original de todas: a do que entendia por Povo: Falando em geral chama-se Povo à reunião de todos os habitantes que formam a sociedade, e habitam um país debaixo do mesmo governo. Nesta palavra Povo se compreende todos os indivíduos sem exceção, desde o Rei até o mais pobre, e miserável cidadão [...] entre nós não há mais do que povo, e escravos; e quem não é Povo, já se sabe que é cativo. Ora como entre o Povo de que se forma a sociedade civil, existem alguns homens mal criados, muito tolos, e cheios de vícios, e baixezas, os quais homens são algumas vezes madraços, e sem brio, e nem tratam de se instruir, e de abjurar sua grosseria, e maus costumes, assentou-se chamar plebe a esta gente má; e baixa plebe aos que d entre a plebe, são incorrigíveis, e quase piores do que os maus escravos. Por conseqüência é baixa plebe o mau, e tolo fidalguete, ou negociante rico, ou alto empregado, cuja conduta, instrução, brios, e costumes são maus como acabamos de dizer. É pois ignorante ridículo, e insolente todo o parlapatão que em ar de Lord bagatela chama com desprezo Povo à gente da sociedade que trabalha e produz riquezas com a enxada, ou com a enxó. Gente desprezível é a que consome as riquezes [sic] que outros produzem, e em cima trata de resto ao verdadeiro cidadão produtor de riquezas; e para mais, só cuida em atraiçoar ao Povo, escravizando-o contra as ordens do próprio Deus, que quando fez Adão, não o fez Conde, Frade, ou Marquês. Quem diz = Povo = por desprezo é desprezível aristocrata [...] o governo deve emanar de todos, e pender de todos em massa; [...] e as Leis devem ser iguais para todos, e feitas por todos mediante seus Deputados, e só para o bem geral: donde também se conclui que só o merecimento e serviços a benefício do país, podem dar distinção aos cidadãos enquanto vivem. Tudo o mais é violência despótica d aristocratas velhacos, enquanto acham Povo tolo, e sem vergonha, que os não força a entrarem no caminho da justiça, e da Constituição. 25

104 TOPOI Verifica-se nesta concepção uma completa inversão semântica em relação ao que comumente se concebia na época como povo. Prova disso é a definição do termo dada pelo dicionário de Moraes Silva: Os moradores da Cidade, Vila, ou lugar, Nação, gente, no fig. o que tem os costumes, usos, e credulidade do povo, assinalando, por fim, Povo miúdo: a plebe, gentalha. 26 Ainda mais esclarecedor era o que dizia a respeito o principal jornal moderado da Corte, a Aurora Fluminense, redigida pelo deputado Evaristo da Veiga: Quando dizemos povo claro está que não falamos da massa ignorante, ou destituída de interesse na ordem social, que os demagogos adulam, e de que fazem o objeto de suas especulações; mas sim dos homens pensantes, honestos, e que nada tendo a ganhar na anarquia, olham todavia com justo receio para qualquer ensaio de despotismo, para qualquer aparência de menosprezo que se note a respeito da nação, do seu decoro, e prosperidade. 27 Era uma clara alusão aos exaltados, os demagogos em questão. Mais do que isso, era a perfeita expressão da concepção corrente no Império, que distinguia povo e plebe, o primeiro restringindo-se apenas à boa sociedade, ao conjunto de homens bons organizados nos limites da ordem e dotados de liberdade, propriedade e educação, e a segunda referindo-se à massa desorganizada, propensa à desordem, pobre, ignorante e em condição de dependência. 28 Bem diferente, portanto, era a concepção da Nova Luz Brasileira. Embora também fizesse uso da dicotomia povo e plebe, o sentido dado era totalmente inverso: quem ficava excluído da categoria povo e inserido na plebe não era a população subalterna, destituída de propriedade e instrução, mas sim os aristocratas, os ricos ociosos, que viviam à custa da exploração do trabalho alheio (claro que aí incluídos os grandes senhores de escravos e de terras). Todos os demais indivíduos livres, independentemente de quaisquer critérios de renda, instrução, sexo ou cor, constituiriam o povo e seriam, portanto, cidadãos, com plenos e iguais direitos civis e políticos. É bem verdade que a massa de escravos permanecia excluída do povo, mas, como meio paliativo para abrir a esses indivíduos o acesso à cidadania (o escravismo constituía um limite, mais matizado porém, tam-

L UZES A QUEM ESTÁ NAS TREVAS 105 bém para o pensamento exaltado), a Nova Luz Brasileira propunha uma gradual extinção da escravidão, via libertação dos nascituros. 29 De qualquer forma, trata-se de uma concepção bem abrangente e inovadora de cidadania, que é reiterada na definição de Cidadão, onde fica claro que seria digno deste distintivo mais nobre do homem social, toda a pessoa livre, homem ou mulher, que é parte de uma Nação livre, e que entra no seu contrato social, e participa de todos os atos e direitos políticos; e que por isso é uma porção da Soberania Nacional; em conseqüência do que tem voto em todas as eleições para as Assembléias, e pode ser eleito se tiver virtudes e talentos. 30 Observa-se, em suma, que o estatuto pleno da cidadania deveria ser determinado e conferido basicamente em função da condição livre dos indivíduos, tendo estes, inclusive, o direito incondicional, não só de votar, como de ser votado, se dotados de virtudes e talentos; coisa que nada tinha a ver com os critérios excludentes de renda, sexo ou mesmo condição, prescritos na Constituição imperial (uma vez que, como se sabe, os libertos não podiam ser eleitores e tampouco eleitos, assim como não tinham qualquer direito de voto os homens com renda inferior a cem mil réis e as mulheres). 31 Sobretudo ao admitir plenamente a mulher na cidadania política, a Nova Luz Brasileira ia além das práticas políticas até então vigentes, não só no Brasil, como em todo o mundo, inclusive durante a Revolução Francesa. Apesar de todo o discurso igualitário dos revolucionários, fixado na Declaração dos direitos do homem e do cidadão, e da intensa participação feminina nos clubes patrióticos, nas tribunas da Assembléia, na Imprensa, nas manifestações de rua e nas revoltas, as francesas não deixaram de ser situadas, segundo a célebre classificação de Sieyès, entre os cidadãos passivos, usufruindo apenas dos direitos civis, mas não dos políticos; e sua atuação no espaço público ainda foi sistematicamente cerceada. A grande maioria dos revolucionários (como Robespierre, Danton, Mirabeau e tantos outros) não chegou sequer a discutir o assunto, e os poucos que o fizeram foram quase sempre para atacar as aspirações políticas femininas, entendendo, tal como Rousseau e outros ilustrados, que à mulher estavam destinados a família e o lar, pois não seria biológica, intelectual e moralmente capacitada a participar da vida pública; além disso, como e para que as

106 TOPOI mulheres iriam votar, já que, por definição, seriam dependentes e teriam as mesmas opiniões de seus maridos? Quando muito, aceitavam que a mulher fizesse uso de seu papel educativo para, de acordo com as luzes da época, auxiliar na formação cívica de seus filhos, dos futuros cidadãos. Entre os homens, apenas Condorcet, Lequinio, Romme e Guyomar levantaram a voz para defender a igualdade de direitos entre os sexos, mas foram, quando não ignorados, combatidos com rigor. Olympe de Gouges chegou a produzir, em 1791, uma Declaração dos direitos da mulher e da cidadã, onde lembrava que, se a mulher tinha o direito de subir ao patíbulo, também deveria gozar dos direitos políticos; mas lhe custou caro a ousadia, e, ironicamente, acabou executada na guilhotina, como outras mulheres, durante o Terror. Como bem destacou Mary del Priori, no século das luzes, as mulheres permaneceram à sombra. 32 Tanto que somente em 1944 as francesas obteriam direito de voto, enquanto inglesas, norte-americanas e brasileiras conquistariam o mesmo direito apenas um pouco mais cedo, em 1918, 1920 e 1934, respectivamente. No Brasil, os exaltados foram, portanto, o primeiro grupo político a defender sistematicamente a participação da mulher na esfera pública e a igualdade de direitos civis e políticos entre os sexos, tema que a Nova Luz Brasileira (tal como outros periódicos exaltados) abordou em diversas matérias, especialmente destinadas ao assunto. 33 Além de definir esta sua original concepção de cidadania, a Nova Luz Brasileira prescrevia também, em seu dicionário, os direitos e as garantias inalienáveis do homem e do cidadão, salientando sua importância como parte fundamental do pacto social e como salvaguarda da liberdade dos indivíduos. Começava, assim, pela relação das Garantias: a segurança da casa, e da pessoa do Cidadão, e da sua indústria, e propriedade: O Direito de petição para qualquer pessoa poder queixar-se, e repelir o mal: A faculdade de se ajuntarem os Cidadãos desarmados; para combinar os meios de promover algum bem, ou apartar algum vexame: o poder falar livremente pela Imprensa, imprimindo, e publicando seus escritos: o não ser preso, nem conservado em prisão, nem sentenciado senão conforme a Lei, e depois de certas formalidades: e ser julgado pelo Tribunal do Júri, que é tribunal do Povo, e o único próprio a manter a segurança da vida, Liberdade, honra & c: o eleger livremente os Deputados

L UZES A QUEM ESTÁ NAS TREVAS 107 à Assembléia, para afastar as maquinações e pretensões do Poder: o ter armas em sua casa para defender-se a si, sua Liberdade, Constituição e Pátria. 34 Estas garantias são desdobradas e especificadas em quatro tipos de direitos, nos termos da teoria liberal clássica. Os Direitos do Homem congregam todos os demais, abrangendo os Direitos naturais; e os políticos, e civis que procedem dos naturais, sem os quais o homem é escravo e não pode ser chamado homem. Já os Direitos Naturais são os efeitos da reunião das Leis, pelas quais Deus criou o homem tal qual ele é, compreendendo os direitos de conservar e defender a vida, a liberdade, a igualdade, a propriedade, viver em sociedade, o exercício da indústria do corpo e do espírito, o esforço para adquirir instrução e luzes, a diligência para ser feliz, a escolha do governo e Religião, o estabelecimento do contrato social, a fatura e reforma das leis, a propagação da espécie, a resistência à opressão. Os Direitos Políticos, por sua vez, são certos privilégios que o Cidadão deve ter, e tem infalivelmente em virtude das Leis fundamentais do Contrato social, referentes a votar, e ser votado para Deputado, Senador, e quaisquer outros cargos da Sociedade tendo merecimentos e virtudes, reconhecer a necessidade dos tributos, em que se gastam, e o tempo que duram. E, por fim, os Direitos Civis, também resultantes das leis do pacto social, asseguram andar o Cidadão seguro pelas ruas; não entrar ninguém em sua casa sem consentimento de seu dono; casar e viver seguro com sua mulher e seus filhos; gozar livremente de seus bens, e por morte reparti-los; fazer testamento; servir de tutor. 35 A estas definições pode-se também acrescentar a de Propriedade, concebida, à maneira de Locke, em termos dos direitos naturais e civis: Em sentido vulgar e errôneo [sic], são tão-somente os bens que o Cidadão adquire, e possui em terras, casas, dinheiro, e outras coisas que o valem. Porém a primeira propriedade do homem é a vida, a liberdade, e a igualdade; conjuntamente é a indústria, e forças de corpo e espírito, e sua mulher, e filhos. 36 Cumpre notar, todavia, que, na visão da Nova Luz Brasileira, só haveria cidadania de fato nas sociedades regidas por um governo liberal. Nestas, o Súdito também é cidadão, entendido como o nacional de um país que tem Constituição, ou governo misto liberal, isto é, governo com boas

108 TOPOI e bem mantidas garantias. Já onde impera a tirania e inexistem direitos constitucionais, o povo é reduzido a Vassalo ou, pior ainda, a Vassalo-Escravo. O primeiro seria o nacional de um país que tem governo absoluto, acrescentando o jornal que havia apenas duas distinções entre o vassalo e o escravo: 1. que o vassalo hoje não é vendido como o escravo 2. que suposto pague muitos tributos desnecessários para o luxo do senhor e seus sequazes; contudo pode ter propriedade: mas apesar disto neste estado de vassalo a propriedade, a liberdade são superficiais e ilusórias, pois é um favor do senhor, e não um Direito. Já o segundo até vendido poderia ser, pois é o pretendido vassalo em um governo puramente despótico; cuja ferocidade arbitrária anda mais descoberta, e pronta, e mais disposta a se desenfrear do que em o governo absoluto ; advertia, então, o jornal que entre o governo despótico e o absoluto a diferença era apenas de grau, chegando ambos a se confundirem: até se pode dizer com verdade, que são irmãos. O rei absoluto é senhor, que absorve as leis à seu arbítrio, e tiraniza debaixo de fórmulas ordenadas por ele mesmo, e seus sequazes: o rei despótico, obra só por sua única vontade, sem essas fórmulas. 37 A concepção exaltada de cidadania integra, portanto, ao menos em parte, as três vertentes clássicas da tradição democrática ocidental, cuja combinação acha-se no cerne do Liberalismo Radical. Está fortemente impregnada do humanismo cívico, enfatizando a preocupação com o interesse público, o bem coletivo, valorizando, então, a virtude cívica e o envolvimento direto dos cidadãos no governo da sociedade. Da mesma forma, está imbuída da visão comunitária, frisando o sentimento de pertencimento a uma comunidade (a nação), fomentando, assim, a identidade nacional. E está aí presente também o conceito liberal clássico de cidadania como titularidade de direitos, centrado na conquista das garantias individuais, em reação ao poder do Estado e às limitações legais e institucionais. 38 Quanto a este último ponto, tomando como referência a classificação de T. H. Marshall para os direitos de cidadania, verifica-se que os direitos civis e políticos encontram-se perfeitamente presentes nas definições da Nova Luz Brasileira (os primeiros mesclados aos direitos naturais), mas faltam aí os direitos sociais, que, segundo Marshall, ainda não integravam

L UZES A QUEM ESTÁ NAS TREVAS 109 o conceito de cidadania no século XIX. 39 No caso em questão, todavia, esta ausência deve ser, no mínimo, relativizada, pois a preocupação sistemática com os problemas sociais, com a justiça social, era uma das principais características do pensamento exaltado, não encontrada em qualquer outro grupo político da época. Os exaltados partilhavam da crença de que a sociedade imperial era profundamente desigual e excludente, dividindo-se entre ricos e pobres, privilegiados e oprimidos. Como notou Emília Viotti da Costa, Para os radicais deste período, a história é a história da luta entre os grandes e poderosos e o povo oprimido. 40 Os exaltados não hesitaram em se colocar, então, ao lado dos pobres e oprimidos, lutando por uma sociedade mais justa e igualitária, por uma melhor distribuição das riquezas e pela incorporação desses segmentos à cidadania plena. Para eles, a liberdade só estaria realmente assegurada se acompanhada de uma certa igualdade, uma igualdade não apenas jurídica como para os moderados, que seguiam os postulados clássicos do Liberalismo, na linha de Locke, Montesquieu e Guizot, mas também social, segundo os preceitos democráticos, inspirados em Rousseau. Dentro desta perspectiva é que se situam uma série de definições do dicionário que trabalham com aquela referida dicotomia social. A começar, por um lado, pelas de Mendigo ou Mendicante, Miserável e Pobre. O primeiro seria aquele que pede esmolas, porque não pode trabalhar, nem ganhar nada com justa causa, ressaltando o jornal que Mendigo também é Cidadão que pede os desvelos e piedade da Sociedade. O segundo, da mesma forma, seria aquele que não pode bem suprir suas despesas e precisões com o que ganha; e por isso passa mal de sustento e vestuário, ficando até roto e sujo, sendo novamente frisado que o miserável também é Cidadão e pede os cuidados da Sociedade. Quanto ao terceiro, seria aquele que lucra com que manter com parcimônia a si, e à sua família; mas a quem não ficam restos para guardar, mais uma vez sendo assinalado que o pobre é Cidadão como qualquer. 41 Tais categorias não eram vistas aqui, portanto, sob a ótica preconceituosa da vadiagem e da criminalidade, típica do pensamento dominante sobre as classes perigosas; a condição em que estavam reduzidas era, antes, atribuída às desigualdades e às injustiças sociais. E mais do que dispensar a elas a piedade da filantropia iluminista, o discurso do jornal procurava dignificá-las, elevando-as ao rol da cidadania.

110 TOPOI Por outro lado, várias outras definições estão associadas às categorias sociais, às doutrinas e às instituições identificadas como portadoras de privilégios e defensoras do despotismo, como tal merecendo duras críticas do jornal. Em primeiro lugar, estão os conceitos diretamente ligados à postura profundamente antiaristocrática típica dos exaltados, oriunda daquele seu ideal igualitário. É o caso de Aristocracia, definida como a classe da gente privilegiada, pela maior parte sem merecimentos nem virtudes: gente perigosa porque luta continuamente para sustentar o espírito de corporação e faz esforços para dominar a sociedade civil por meio de títulos vaidosos; e apossar-se de todas as terras, cargos, postos, dignidades, e honras, insultando e pisando o Povo. Já ficava aí patente a aversão da Nova Luz Brasileira aos privilégios, comendas, títulos de nobreza e, por extensão, aos detentores de tais distinções, ainda mais evidenciada na definição de Nobre ou Fidalgo, espécie de senhor, d alguma sorte feudal; ignorante, vadio, mal-fazejo, orgulhoso pelas obras de seus antepassados, e nada pelas suas próprias ; a isto acrescentava que Toda a nobreza hereditária é peste da sociedade, por ser sequaz do governo absoluto, e do despotismo; é inimiga da liberdade, da igualdade, da justiça, e das boas leis sociais: toda ela é desprezadora do Povo, para o qual olha com desdém, e como para bestas de trabalho. A esta o jornal contrapunha a Nobreza Verdadeira, aquela proveniente de grandes serviços feitos à Pátria unicamente, ou ao gênero humano. A Nova Luz Brasileira defendia, assim, o fim de todos os títulos, condecorações e ordens honoríficas, que, segundo ela, introduziam distinções perniciosas entre os cidadãos. Havia ainda uma outra figura abjeta, que já teria desaparecido, mas nem por isso deixava de inspirar os nobres e senhores de engenhos brasileiros, o Senhor Feudal ou Encastelado, fidalgo ignorantíssimo e brutal, que existiu antigamente; absoluto em suas terras e domínios, como qualquer Rei absoluto desses tempos de trevas, e de sangue; era déspota horrível, e tirano feroz em todo o sentido; seus vassalos eram verdadeiros escravos. 42 Esta ferrenha postura anti-aristocrática estendia-se também às instituições que permitiriam perpetuar a nobreza (e a concentração fundiária), como o Morgado, Marquesado, Condado, Ducado etc., que contavam com o privilégio de não poderem ser vendidos, nem alienados, nem separados