1 Introdução A principal motivação para este trabalho foi a redescoberta da seção Versão Brasileira, publicada mensalmente na revista Língua Portuguesa, após ter entrado em contato, durante o meu mestrado, com a área dos Estudos da Tradução. Em 1972, em sua famosa conferência intitulada The name and nature of Translation Studies, James Holmes descreveu quais seriam as ramificações desse campo de estudo, e dentre elas incluiu uma que trataria da crítica de tradução (translation criticism), a qual, segundo ele, muitas vezes apresentava um nível muito baixo, além de, em muitos países, aparentemente não sofrer qualquer influência dos desenvolvimentos obtidos pelos estudiosos da tradução (Holmes, 1988, p.78). Inicialmente descobri que, especialmente no Brasil, a crítica de traduções é ainda um tema pouco explorado, o que demonstra que a constatação de Holmes feita há mais de trinta anos pode ainda ser considerada pertinente. Em minha pesquisa encontrei poucos estudos brasileiros que tratassem centralmente da crítica de traduções, apenas alguns trabalhos de pós-graduação (Battisti, 2000; Silva, 2001; Cardozo, 2004), alguns artigos publicados em revistas acadêmicas, e algumas considerações acerca desse tema espalhadas em estudos da tradução como os de Rosemary Arrojo e José Paulo Paes. A crítica de traduções discute a qualidade dos textos traduzidos, tópico que sempre foi preocupação dos teóricos da tradução, como, por exemplo, Friedrich Schleiermacher e Lawrence Venuti. Esse interesse pela crítica de traduções gerou a elaboração de diferentes modos de abordá-la, sejam eles mais simples ou mais sofisticados do ponto de vista teórico. Vários estudiosos discutem o que seria uma boa tradução, mas em minhas pesquisas só encontrei três que de fato formulam em minúcia princípios e modelos a serem adotados na crítica de traduções, razão pela qual foram escolhidos para compor o referencial teórico desta dissertação: as
11 alemãs Katharina Reiss (2000) e Juliane House (1981; 1997) e o francês Antoine Berman (1995). Além disso, acredito que esses três estudos possam dar um panorama abrangente da crítica de traduções por terem sido elaborados em três momentos históricos distintos e por não constituírem necessariamente uma tradição de referência teórica direta entre si. Quanto à prática, a crítica de traduções praticamente inexiste no Brasil, ainda que o país conte com um vasto número de obras traduzidas disponíveis no mercado. E mais, segundo Silva, nos textos dos poucos críticos que analisam, comparam e avaliam traduções, quase nenhum espaço é dedicado à reflexão sobre os critérios que determinam tais avaliações e à discussão do modo como efetuá-las (2001, p.16). Ainda assim, a prática propriamente dita de crítica de traduções, em especial das literárias, tem uma importante referência no trabalho que foi desenvolvido por Agenor Soares de Moura no suplemento literário de O Diário de Notícias. Assinados por este tradutor, foram publicados de setembro de 1944 a junho de 1946 vários artigos de crítica de tradução em uma seção intitulada À Margem das Traduções (Barroso, 2003). Dentre as várias manifestações de reconhecimento da importância desse trabalho de crítica na história da tradução literária brasileira, José Paulo Paes questiona por que essa iniciativa pioneira não teve continuadores, principalmente em nossos dias, onde o enorme incremento do número de títulos traduzidos e o nível tantas vezes insatisfatório das traduções está a exigir, mais que nunca, fiscais capazes de ajudar os leitores a distinguir o joio do trigo em meio à nossa copiosa produção editorial (1990, p.117-118). Affonso Romano de Sant Anna também se manifestou, considerando que a cultura brasileira teria muito a ganhar se, de novo, abrissem espaço para a crítica e análise de traduções (2003, p.2). Os leitores ganhariam porque poderiam contar com um espaço de avaliação da qualidade das traduções que lhes são oferecidas pelo mercado editorial. Os tradutores, porque seções de crítica de tradução trariam maior respeitabilidade a essa atividade. E finalmente, porque tais críticas exerceriam uma pressão benéfica na qualidade das traduções realizadas, constituindo um espaço útil não só para os leitores, autores e editores, mas até mesmo para centenas de alunos que espalhados por uma meia dúzia de faculdades no país, estão-se formando como tradutores (Sant Anna, 1986, s.p.).
12 Segundo o tradutor Mauro T. B. Sobhie 1, uma crítica de traduções séria, que não se limite a mostrar problemas pontuais de escolha lexical, e sim promova um debate de idéias, um segundo olhar de um outro estudioso sobre a tradução, poderia sempre ter resultados positivos no aprimoramento dos profissionais envolvidos, dos estudantes e dos leitores em geral (2003, p.180). Esses depoimentos mostram que, embora seja reconhecida como uma atividade muito importante para a discussão da qualidade das traduções, a crítica de traduções ainda é feita apenas esporadicamente na mídia. Assim sendo, a revista Língua Portuguesa, por meio da seção Versão Brasileira, traz uma contribuição relevante ao permitir que novamente os leitores em geral tenham acesso a críticas de traduções publicadas no Brasil. Desde seu lançamento em agosto de 2005, todos os números da revista com exceção do oitavo, de julho de 2006 apresentam essa coluna, que, desde o segundo número, vem sendo assinada pelo professor e escritor Gabriel Perissé. Dentre os textos publicados até a edição de janeiro de 2009, apenas um não trata da avaliação das traduções de uma obra específica: o intitulado Garimpeiro de idiomas, do sétimo número, em que são tratadas as contribuições do tradutor e poeta José Paulo Paes para a tradução no Brasil. Todos os outros textos publicados na seção tratam das traduções brasileiras de uma obra da literatura mundial. Esses textos fazem normalmente uma apresentação do original e seu autor; algumas considerações sobre as traduções disponíveis (ou já esgotadas) no mercado brasileiro e até mesmo português, seus tradutores e editoras; e finalmente, fazem o cotejo de um trecho do original com suas respectivas traduções. O crítico, com a coluna em seu terceiro ano de publicação, já recebeu algumas manifestações de reconhecimento publicadas na seção Cartas da revista. Dentre estas, destaco a da tradutora e estudiosa Ivone C. Benedetti que teve sua opinião publicada em novembro de 2007: É confortador saber que um estudioso de seu quilate tem publicado artigos sérios sobre tradução, assunto pelo qual poucos se interessam fora de um âmbito acadêmico restrito ou do círculo dos profissionais diretamente ligados à atividade (2007, p.6, grifo meu). 1 Tradutor técnico nas áreas de eletrônica e telecomunicações; foi nomeado Tradutor Público e Intérprete Comercial do Estado de São Paulo em 2000 (Benedetti & Sobral [orgs.], 2003).
13 Em vista disso tudo se delineou a proposta desta dissertação de fazer um estudo a fim de melhor entender a crítica de traduções, tanto em seus desenvolvimentos teóricos quanto em sua prática. No que se refere a esta, será feita a análise dos trinta e oito artigos publicados na coluna Versão Brasileira até janeiro de 2009. Como esse objetivo também se apóia nas visões de que tanto a execução quanto a avaliação de um texto não poderão realizar-se fora de um ponto de vista, ou de uma perspectiva, ou sem a mediação de uma interpretação (Arrojo, 1993, p.24); e de que a avaliação da qualidade de uma tradução pressupõe uma teoria da tradução 2 (House, 2000, p.197), a análise visa verificar se a Versão Brasileira, publicada mais de 35 anos após a conferência de Holmes, apresenta princípios teóricos desenvolvidos na área dos Estudos da Tradução. Para isso, procurarei perceber se a crítica realizada na Versão Brasileira se distancia ou se aproxima de orientações teóricas desenvolvidas nessa área. A fim de atingir seu objetivo, este estudo se organiza da seguinte forma: O próximo capítulo, Sobre a conceituação de crítica de tradução (literária), apresentará uma breve reflexão sobre os conceitos e classificações envolvidos na discussão sobre a crítica de traduções. No terceiro capítulo, intitulado A boa tradução: entre o nacional e o estrangeiro, serão apresentados os posicionamentos teóricos de Schleiermacher (2001), Venuti (1995b) e Berman (2002; 2007) sobre o que consideram uma boa tradução, além de algumas abordagens que discutem os princípios que garantiriam a qualidade de uma tradução. No capítulo A busca de um modelo para a crítica de traduções, serão apresentados os modelos de avaliação de tradução propostos por Reiss (2000), House (1981;1997) e novamente Berman (1995), estudiosos de destaque na área da crítica de tradução. Cada um desses modelos será descrito de modo a que o referencial da análise possa ser estabelecido. O trabalho de alguns importantes nomes da tradução brasileira, especialmente o que foi desenvolvido por Agenor Soares de Moura na década de 1940, ocupará um espaço central no quinto capítulo, Um panorama da crítica de 2 Foram por mim traduzidas todas as citações de textos estrangeiros que ainda não foram publicados em português.
14 traduções literárias no Brasil. Esse capítulo tem como objetivo secundário revelar as dificuldades enfrentadas pela crítica de tradução na imprensa brasileira. O capítulo seis, As críticas de tradução literárias na Versão Brasileira, apresentará maiores informações sobre a revista e sobre o crítico Gabriel Perissé, discutindo a sua contribuição para a prática da crítica de traduções literárias no Brasil. Também nesse capítulo será feita a análise do corpus os 38 artigos publicados na coluna até janeiro de 2009 em que procurarei identificar suas principais características e princípios. Nesse momento, verificarei se é possível determinar uma filiação do crítico com quaisquer dos modelos de crítica aqui estudados, destacando as questões da interpretação, da fidelidade e da visibilidade do tradutor. Além disso, também será feita uma análise de qual concepção de significado parece reger cada uma das críticas de Perissé, todas elas apoiadas no cotejo de trechos dos originais com as respectivas traduções realizadas por diferentes tradutores 3. Por fim, apresentarei os resultados alcançados, indicando possibilidades para futuras contribuições, seja no campo mais geral da crítica de traduções literárias em periódicos, seja no quadro mais restrito da análise das críticas publicadas na seção Versão Brasileira da revista Língua Portuguesa. 3 Embora eu não vá me deter nesse fato, não posso deixar de chamar atenção para a surpreendente frequência com que são publicadas inúmeras traduções de um mesmo original, em um curto espaço de tempo.