José de Almada Negreiros TRÊS HISTÓRIAS DESENHADAS introdução Sara Afonso Ferreira ASSÍRIO & ALVIM
A obra plural de Almada é um palco de experiências gráficas, pictóricas, poéticas e gestuais onde incessantemente se desenrola a «tragédia da unidade» 1. Se Fernando Pessoa, seu companheiro desde os tempos da revista Orpheu, se desmultiplica num sem-número de poetas para «sentir tudo de todas as maneiras, / Viver tudo de todos os lados, / Ser a mesma cousa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo, / Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos / Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo», Almada reinventa-se a cada instante n outro criador, capaz de enxergar, através do prisma das suas várias expressões, o universo inteiro. A unidade que Almada persegue revelada pelo seu leitmotiv «1+1=1» é também a do texto e da imagem, duas facetas artísticas em permanente diálogo no fio da obra total. Numa conferência proferida em 1933, Arte e Artistas, Almada enuncia uma visão fundamentalmente sincrética do Artista. Diz-nos que «[s]er artista é uma aplicação dos cinco sentidos do indivíduo completamente à parte e além de toda a probidade do seu ofício», que «é uma determinada visualidade a par de toda e qualquer profissão ou ciência», 1 La tragedia de la unidad é o título de um projecto dramatúrgico concebido a partir de 1928 em Madrid, fonte de pelo menos três obras almadianas: as peças S.O.S. e Deseja-se Mulher e a conferência Direcção Única. introdução 9
que «[s]er artista é o que há de vital e paralelo a qualquer técnica ou ofício, isso mesmo que um dia é o único que libertará o indivíduo profissional da fria mestria e tirania da técnica do seu ofício particular, ou do conhecimento unilateral da ciência que pratica». Diz-nos, enfim, que os artistas são «indivíduos enciclopédicos [ ] libertos das grades de cada profissão porque são mestres em todas». Almada encarna manifestamente esta figura do «Artista», escrevendo, aliás, numa nota autobiográfica inédita redigida em 1963, que as «suas produções, literária, plástica e estudos da teoria de arte, tão extensas umas como as outras, formam uma obra única». Nos anos dez, o caricaturista Almada, pois é com o traço satírico que começa por agitar o teatro nacional, metamorfoseia-se no panfletário que, no palco da vanguarda portuguesa inaugurada pela revista Orpheu, intervém não só pela palavra, escrita, proclamada e gestualmente encenada dos manifestos (do Anti-Dantas nomeadamente, um manifesto-caricatura em si mesmo), mas simultaneamente pela imagem exposta do cartaz (o Boxe funciona como cartaz-manifesto da revolução órfica) e aquela da ilustração publicada (as capas que compõe para a Ideia Nacional são autênticas bofetadas na cara do público). É clara a visualidade dos seus textos dessa época (A Cena do Ódio, K4 O Quadrado Azul, A Engomadeira, etc.) e o carácter narrativo dos seus desenhos da altura, sobretudo caricaturas e ilustrações (e ainda alguns cartazes), géneros gráficos tão fundamentalmente ligados ao texto. É como «desenhador» que Almada 10 introdução
assina os Frisos para o primeiro número de Orpheu. Poemas que, como se anuncia na revista, o artista pensava publicar num volume ilustrado, sem dúvida por si próprio e muito provavelmente com alguns dos desenhos expostos, no mesmo momento, no salão dos humoristas e modernistas do Porto, visto alguns deles retomarem ou sugerirem os títulos de certos Frisos. O volume não chega a fazer-se e será preciso esperar pelos anos vinte para que Almada surja verdadeiramente como desenhador dos seus textos. A Invenção do Dia Claro, objecto múltiplo nascido do universo plástico do artista, conferência do «pintor José de Almada Negreiros» anunciada no âmbito da exposição dos desenhos de Paris que Almada apresenta no seu regresso a Lisboa, em Maio de 1920, e finalmente proferida e publicada em 1921 fora do seu contexto inicial, livro de «Ensaios para a iniciação de portugueses na revelação da pintura», onde se desvenda, na página de abertura, um «retrato do autor por ele-próprio» (conceito diferente, entenda-se, do do auto-retrato, pois neste caso o autor é um duplo autor, simultaneamente escritor e desenhador), une manifestamente várias máscaras num rosto só. Obra central da sua produção, o «meu único livro» diria Almada numa entrevista de 1953 (ao Diário de Lisboa), A Invenção do Dia Claro aponta para o caminho do «Artista». O desenho e as palavras, que no tempo do poeta destrutor de Orpheu nos aparecem como vectores paralelos de uma mesma intervenção, unem-se agora frequentemente no quadro de uma única obra, assinados com o nome desenhado do artista «com- introdução 11
pleto» a partir de 1919-1920 a haste do «d» de «almada» alonga-se, ornamenta-se (em bandeira, árvore, máscara de arlequim ), complementa o traço da ilustração. A Histoire du Portugal par cœur illustrée aux couleurs nationales, datada de Paris 1919, publica-se, assim, no primeiro número da revista Contemporânea de José Pacheco, em 1922, acompanhada dos desenhos do autor. Também o poema Rondel do Alentejo, datado de 1913, se publica em 1922 na Contemporânea (n.º 2), ilustrado pela mão do desenhador- -poeta. É no início da década de vinte que Almada compõe os três caligramas enviados ao «Club das Cinco Cores», obras- -diálogo em que as palavras são as linhas do desenho; a revista manuscrita e ilustrada parva (em latim); e o Pierrot que Nunca Ninguém Soube que Houve. História Trágica Ilustrada com Sol e Palmeiras. Composto entre 1921 e 1922, este livro de artista porque transcende a definição comum de «livro», transformando-se num veículo múltiplo de expressão artística, num objecto inteiro que ultrapassa a soma das partes que o compõem é um livro único integralmente manuscrito. A história, «ilustrada com sol e palmeiras» como a Histoire du Portugal par cœur é ilustrada «aux couleurs nationales» é-nos contada ao mesmo tempo pela escrita (literalmente) desenhada de Almada e pelos desenhos do artista (formados também, como na capa, por palavras). É ainda nesta década de vinte, em 1926, que Almada publica, no semanário ilustrado Sempre Fixe, as histórias Era Uma Vez, O Sonho de Pechalim e A Menina Serpente, que aqui se apresentam com base nos desenhos originais, fora 12 introdução
uma ou outra lacuna. A história inaugural, Era Uma Vez, surge-nos, na sua forma primeira (tal qual foi localizada no espólio de Almada), como um caderno composto pelo autor que colou, em cada folha, um desenho numerado (56 no total). Almada não elaborou este caderno com o mesmo cuidado que dedicou aos seus inúmeros livros de artista além do já mencionado, o autor confecciona ao longo dos anos uma série de caderninhos, geralmente em harmónio, por ele manuscritos e ilustrados dedicados ao estudo do número e da geometria. No entanto, ao apresentar desta forma os desenhos destinados à publicação de uma história aos quadradinhos num jornal, sem acompanhar os desenhos originais do texto do seu conto (de que apenas temos a versão do Sempre Fixe), Almada sugere a importância das imagens como veículo da narrativa a segunda história publicada no Sempre Fixe, O Sonho de Pechalim, apresenta- -se, aliás, sem qualquer texto (as legendas deviam ser redigidas pelos pequenos leitores no âmbito de um concurso infantil) que as histórias podem ser contadas apenas por desenhos, que as histórias podem ser: desenhadas. S.A.F. introdução 13
15 E os treinos começavam em intensiva 160 a menina serpente
16 tendo chegado a inventar novas dificuldades a menina serpente 161
ÍNDICE Introdução... 7 Era Uma Vez... 15 O Sonho de Pechalim... 71 A Menina Serpente... 145 Nota editorial... 195 índice 197