Educação, Religião e Direitos Humanos: um espaço de discussão



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Transcrição:

1 Educação, Religião e Direitos Humanos: um espaço de discussão Iradj Roberto Eghrari 1 Deus é grande de mais para caber dentro de uma única religião Resumo: O presente artigo tem como objetivo estabelecer uma inter-relação entre os conceitos de educação, religião e direitos humanos por meio de uma perspectiva da responsabilidade do Estado em oferecer condições para que todos os seus cidadãos e cidadãs possam exercer seu direito humano à liberdade de religião ou crença também no ambiente escolar, e de outro lado, como este ambiente pode ser um instrumento para a disseminação de uma cultura de promoção deste direito. Para tanto, serão observados os mecanismos nacionais e internacionais vigentes que garantem o exercício deste direito humano, tais como a Constituição Federal de 1988; a Declaração Universal dos Direitos Humanos; o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos; a Declaração para a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e Discriminação com Base em Religião ou Crença; a Lei de Diretrizes e Bases da Educação LDB; e os Parâmetros Curriculares Nacionais PCNs. Palavras-chave: religião, educação, direitos humanos, ensino religioso, liberdade religiosa. Os conceitos de educação, religião e direitos humanos são de fácil associação, uma vez que os dois primeiros são parte integrante e indissociável do terceiro. A fim de iniciar esta análise, faz-se oportuno considerar de onde vem a inter-relação entre educação e direitos humanos e entre religião e direitos humanos, para então possibilitar o entendimento de como a educação pode levar a uma compreensão adequada do direito humano à liberdade de crença e religião. A educação, conforme entendida no artigo 26 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, é o processo pelo qual os indivíduos recebem não apenas a instrução formal qual seja, a transmissão dos conhecimentos técnicos e acadêmicos como também a formação humana, espiritual e ética 1. Professor do Centro Universitário UNIEURO,Brasília, DF, no curso de graduação em Relações Internacionais e de pós-graduação em Direitos Humanos; diretor da Ágere Cooperação em Advocacy; Secretário Nacional de Assuntos Externos da Comunidade Bahá'í do Brasil; e membro do Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos.

2 que lhes proporcionará o pleno desenvolvimento de suas capacidades intelectuais. Já a Constituição Federal brasileira preconiza em seu Art. 214 que A lei estabelecerá o plano nacional de educação, de duração plurianual, visando à articulação e ao desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis e à integração das ações do poder público que conduzam à... V - promoção humanística, científica e tecnológica do País. Para que isto seja possível, é necessário que os conteúdos a que estes indivíduos estão expostos sejam pensados de forma a abarcar o maior volume de informações humanistas, culturais, sociais, científicas disponíveis naquele período histórico. Encontramo-nos neste momento em uma situação privilegiada: o rápido acesso à informação proporcionado pelos avanços tecnológicos aliado ao amadurecimento das percepções humanas acerca de sua diversidade étnica, racial, de gênero, cultura, religiosidade, regionalidade, entre outros tantos aspectos, favorece o entendimento de que os direitos enunciados na Declaração Universal dos Direitos Humanos e nos pactos e tratados que dela derivam são aplicáveis para todos os seres humanos. Entretanto, é preciso reconhecer que tanta informação somente pode ser processada por cada criança, jovem ou adulto se ele ou ela for estimulado a investigar a sua validade. A escola tem um papel fundamental neste processo de estímulo à investigação individual da verdade. Se os conteúdos programáticos forem capazes de trazer uma abordagem ampla da realidade, transversalizada pelos princípios de direitos humanos, as alunas e alunos desenvolverão a capacidade de utilizar-se destes princípios como paradigma para melhor compreender a realidade e, assim, contribuir para a construção de um mundo melhor. O Artigo 18 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) é o primeiro documento internacional a incluir o direito de ter e praticar uma

3 religião como um dos direitos fundamentais dos seres humanos, quando declara que: Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convicção, assim como a liberdade de manifestar a religião ou convicção, sozinho ou em comum, tanto em público como em privado, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pelos ritos. A partir desta construção, outros documentos internacionais2 e nacionais3 passam a caracterizar esse direito de forma mais específica. Neste ensejo, para além do papel desempenhado pelas instituições educacionais onde os indivíduos estão expostos a diversos fatores que virão a compor a sua personalidade e percepção do mundo ao seu redor fica claro, especialmente na redação do Artigo 18 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (1966), que o Estado tem a obrigação de garantir esse direito. Após discorrer sobre o impedimento do uso de medidas coercitivas que possam prejudicar a liberdade individual de ter ou de adotar uma religião ou crenças, o referido Artigo 18 complementa4: (...) Os Estados-Signatários no presente Pacto comprometem-se a respeitar a liberdade dos pais e dos tutores legais, se for o caso, de modo a garantir que os filhos recebam uma educação religiosa e moral que esteja de acordo com as suas próprias convicções. Nesta mesma linha, a Declaração sobre a Eliminação de Todas as Formas 2 Por exemplo, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e a Declaração para a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e Discriminação com Base em Religião ou Crença. 3 Como a Constituição Federal de 1988 e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação. 4 Inciso 4

4 de Intolerância e Discriminação com Base em Religião ou Crença, adotada em 1981, insta todos os Estados a tomar medidas efetivas para evitar e eliminar a discriminação baseada em religião ou crença, seja no reconhecimento, exercício ou no gozo dos direitos humanos e liberdades fundamentais em todas as áreas da vida civil, econômica, política, social e cultural 5. Fica aparente aí também a necessidade de se garantir, por meio da ação do Estado, uma educação que valorize a opção religiosa e edifique uma estrutura moral das crianças e jovens. Isto pode ser traduzido como o direito que os pais e tutores legais têm de ensinar a sua religião para seus filhos e, mais além, de saber que sua religião será respeitada enquanto tal no âmbito da educação oferecida nos estabelecimentos educacionais. Sobre este tema, a Constituição Federal de 1988 versa sobre a inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença, assegurando o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias 6. Fala ainda da prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva 7, a ser assegurada nos termos da lei e, mais adiante, estabelece que o ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental 8. Estas determinações colocam em evidência o fato de o Estado brasileiro reconhecer, em princípio, sua obrigação para com os seus cidadãos no que tange à garantia da liberdade de crença ou religião e a promoção de um ambiente de investigação imparcial sobre o fenômeno religioso. Em novembro de 2004, a Secretaria Especial dos Direitos Humanos lançou uma cartilha denominada Diversidade Religiosa e Direitos Humanos, fruto de um longo período de consultas realizado entre lideranças de diferentes 5 Artigo 4 o da referida Declaração. 6 Art. 5 O, inciso VI. 7 Idem, inciso VII. 8 Art. 210, 1 o.

5 tradições religiosas. Conforme descrito na apresentação desta cartilha, O Estado Brasileiro é laico. Isso significa que ele não deve ter, e não tem religião. Tem, sim, o dever de garantir a liberdade religiosa. 9 Este documento pode ser considerado como uma iniciativa do Governo Federal de trazer para si a responsabilidade da implementação do Artigo 18 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, ainda tão pouco reforçada por legislações anteriores. Trata-se do reconhecimento de que é preciso iniciar um processo educativo que sirva de instrumento para a plena realização dos direitos humanos, em especial a liberdade de crença e religião. Ao mesmo tempo, diversos documentos e planos recentes de governo poderiam ser utilizados para a promoção da liberdade de crença e religião como um direito humano fundamental, mas ainda não contemplam esta abordagem de forma satisfatória. É o caso, por exemplo, do Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos PNEDH, em sua versão mais recente datada do ano de 2006. As poucas menções existentes a este direito humano no documento em questão se resumem ao reconhecimento de que a educação contribui para exercitar o respeito, a tolerância, a promoção e a valorização das diversidades 10 (entre elas a religiosa) e na listagem de seus princípios norteadores11. Em termos de ações programáticas, o tema surge de forma tímida em meio a outros princípios nos capítulos referentes à Educação Básica e à Educação Superior, conforme apresentado a seguir: 9. fomentar a inclusão, no currículo escolar, das temáticas relativas a gênero, identidade de gênero, raça e etnia, religião, orientação sexual, pessoas com deficiências, entre outros, bem como todas as formas de discriminação e violações de direitos, assegurando a formação continuada dos(as) trabalhadores(as) da 9 SEDH, Cartilha Diversidade Religiosa e Direitos Humanos (apresentação). 10 PNEDH, pág. 18. 11 PNEDH, pág. 24. O item d dos princípios norteadores menciona que a educação em direitos humanos deve estruturar-se na diversidade cultural e ambiental, reforçando a garantia, entre outros elementos, da eqüidade religiosa.

6 educação para lidar criticamente com esses temas; 12 18. desenvolver políticas estratégicas de ação afirmativa nas IES que possibilitem a inclusão, o acesso e a permanência de pessoas com deficiência e aquelas alvo de discriminação por motivo de gênero, de orientação sexual e religiosa, entre outros e seguimentos geracionais e étnico-raciais; 13 Um estudo da Lei de Diretrizes e Bases da Educação - LDB, inserida no contexto dos Parâmetros Curriculares Nacionais PCNs, revela que a regulamentação da garantia constitucional do oferecimento do ensino religioso cabe aos estados e municípios, que deverão optar entre o ensino confessional ou interconfessional: Art. 33. O ensino religioso, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, sendo oferecido, sem ônus para os cofres públicos, de acordo com as preferências manifestadas pelos alunos ou por seus responsáveis, em caráter: I - confessional, de acordo com a opção religiosa do aluno ou do seu responsável,ministrado por professores ou orientadores religiosos preparados e credenciados pelas respectivas igrejas ou entidades religiosas; ou II - interconfessional, resultante de acordo entre as diversas entidades religiosas, que responsabilizar-se-ão pela elaboração do respectivo programa. É notório que a LDB (e, por conseqüência, os PCNs) não considera a perspectiva da religião enquanto fenômeno da expressão da diversidade 12 PNEDH, pág. 24, capítulo sobre Educação Básica. 13 Idem, pág. 29, capítulo sobre Educação Superior.

7 cultural humana. Isto constitui uma desatenção ao fato expressado na Declaração de 1981 de que a religião ou crença, para qualquer pessoa que as professam, é um dos elementos fundamentais da sua conceituação de vida 14. É a partir de suas crenças que as pessoas que praticam alguma religião (ou que se identificam com ela) estabelecem seu modo de agir e de interpretar grande parte dos fenômenos da vida, seja no âmbito individual ou coletivo. O reconhecimento deste fato é de extrema importância para que se possa trabalhar a liberdade religiosa de forma adequada no ambiente educacional. Nesta base, é preciso cautela por parte do Estado para que a diretriz educacional estabelecida pela LDB não venha a ferir o princípio constitucional previsto no artigo 1915: Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público; (...) preferências entre si. III - criar distinções entre brasileiros ou Se o Estado permite que apenas algumas tradições participem dos processos de educação religiosa nas escolas, está claro que uma relação de, no mínimo, maior aceitação daquelas em detrimento de outras confissões, foi estabelecida. Qualquer indivíduo que se identifique com uma religião ou crença que fique suprimida por práticas como esta poderá alegar, com razão e embasamento legal, tratamento discriminatório por parte das instituições do Estado. Portanto, estimular a construção de um currículo para a educação religiosa que suceda no tratamento eqüitativo de todas as tradições religiosas 14 Declaração para a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e Discriminação com Base em Religião ou Crença (preâmbulo). 15 Constituição Federal de 1988, Art. 19 (grifos nossos).

8 nada mais é que garantir um direito constitucional dos cidadãos e cidadãs brasileiras. Ao mesmo tempo, há que se considerar o compromisso de uma sociedade livre e democrática de estimular o reconhecimento da diversidade religiosa por meio de uma prática educacional que não seja somente enciclopédica, mas que leve ao desenvolvimento de habilidades e competências dentro de um quadro de valores. Neste sentido, em vez de distribuir nas escolas compêndios de materiais acerca de cada religião ou crença, mais produtivo será reunir informações coerentes acerca dos ensinamentos que cada uma dessas vertentes do pensamento religioso oferece, apresentando-as numa perspectiva analítica que possa favorecer a investigação por parte dos alunos acerca dos temas que lhes sejam de interesse. A sociedade civil tem-se mobilizado por meio da constituição de conselhos, grupos de pesquisa e fóruns de discussão para suprir a necessidade de trabalhar este tema de forma satisfatória nas escolas públicas e privadas, conforme sugerido nas várias peças legais citadas ao longo deste artigo. Não obstante, este processo não pode ser levado como um jogo de forças em que as minorias religiosas presentes em nosso país sejam submetidas à decisão da maioria. O papel do Estado é o de garantir que todas as expressões religiosas possam participar deste diálogo e desta construção de forma equilibrada. Deixar que as forças da sociedade busquem por si mesmas resolver esta questão constituirá no claro abandono das atribuições estatais previstas na Constituição Federal e em outros documentos nacionais e internacionais que regem a política nacional. Nesta linha de raciocínio, o Estado precisa trabalhar de forma a garantir que nenhum grupo religioso em especial tenha seu pensamento ou ideologia privilegiada. As estruturas de trabalho devem ser analisadas de forma a favorecer a ampliação do conhecimento por parte de quem recebe as

9 informações, sem que haja enviesamento para esta ou aquela tradição. O que se espera do Estado é que ele aja como elemento regulador nessas discussões. A fim de buscar uma solução para este dilema, faz-se necessário pensar uma educação que vise oferecer real conhecimento acerca das diversas religiões existentes. A única forma de se trabalhar nesta perspectiva é a partir do estabelecimento de uma inter-relação entre todas as manifestações religiosas. Uma abordagem interessante aparece nos escritos de Bahá'u'lláh16, que discorrem sobre o reconhecimento da progressividade da revelação religiosa. Shoghi Effendi, Guardião da Fé Bahá'í, assim descreveu o princípio da revelação progressiva17: Repudiando o suposto direito de qualquer religião de ser a revelação final de Deus ao homem, inclusive Sua própria Revelação, Bahá'u'lláh inculca o princípio básico de ser relativa a verdade religiosa, contínua a Revelação Divina, progressiva a experiência religiosa. Visa Ele a alargar a base de todas as religiões reveladas, e desvendar os mistérios de suas escrituras. Insiste sobre o reconhecimento incondicional de sua unidade de propósito, expressa novamente as eternas verdades que todas elas encerram, coordena-lhes as funções, distingue, em seus ensinamentos, o essencial e autêntico do nãoessencial e espúrio, separa as verdades de origem divina das supertições de precedência sacerdotal e, nesta base, proclama ser possível, e até inevitável, sua unificação e a consumação de suas mais altas esperanças. 16 Profeta Fundador da Fé Bahá'í, declarou a Sua missão aos povos do mundo em torno do ano de 1863, na antiga Pérsia. 17 Shoghi Effendi, Chamado às Nações.

10 Sobre este mesmo assunto, 'Abdu'l-Bahá18 escreveu: Desde Abraão, cada Educador Divino tem trazido uma mensagem na qual se destaca algum princípio necessário, e cada vez se reiteram certos preceitos básicos por serem estes sempre verdadeiros, sempre vitais ao bem-estar do homem. Moisés trouxe uma mensagem de justiça, Buda ensinou a renúncia, Jesus o amor, Maomé a submissão. Hoje o Autor da Fé Bahá'í Mundial traz a mensagem da unidade. Mas através de todas essas mensagens se percebe a Regra de Ouro, segundo a qual todos os homens são irmãos, filhos de um só Deus. 19 Não se supõe com isso que todas tradições religiosas do mundo sejam iguais. Ao contrário, são grandes e nítidas as diferenças existentes entre as principais religiões, especialmente no que se refere aos seus preceitos sociais e formas de adoração. Estas variações são facilmente justificáveis quando se consideram os milhares de anos durante os quais as sucessivas revelações do Divino buscavam atender às constantes variações das necessidades das civilizações às quais foram inicialmente reveladas. De fato, está claro que uma característica inerente às escrituras sagradas da maior parte das grandes religiões parece ser o reconhecimento da natureza evolutiva da religião. Em sendo este princípio reconhecido, há que se tomar cuidado para que não se justifique a manipulação de legados culturais cujos objetivos sempre foram o enriquecimento da experiência espiritual para darem lugar ao preconceito e alienação. Portanto, a educação religiosa nas escolas públicas e privadas do país deve estimular cada indivíduo a investigar a realidade e, se for 18 Filho de Bahá u lláh, é o único por Ele autorizado a interpretar Seus ensinamentos. 19 'Abdu'l-Bahá, Respostas a Algumas Perguntas

11 sua vontade, futuramente adotar as verdades das quais se convenceu, primando pelo respeito pleno aos esforços de outras pessoas nesta mesma direção. É preciso ressaltar mais uma vez que o caráter de laicidade do Estado não lhe proporciona isentar-se deste tema. Ao contrário, é mesmo por esta característica que deve prevalecer sua autoridade enquanto ente responsável por garantir e estabelecer a justiça. Nesta perspectiva, há que se reconhecer que um Estado justo é aquele que não permite a uma ou outra tendência religiosa impor o estudo aprofundado acerca de suas escrituras e dogmas em detrimento de outras. Ensino religioso é algo que compete às próprias igrejas e aos grupos religiosos realizar com seus fiéis. A educação religiosa oferecida nas escolas há de ser algo voltado para o entendimento da cosmovisão que cada religião traz e de como essas diferentes cosmovisões podem se integrar, harmonizar-se e se complementar ou pelo menos conviver de forma pacífica, respeitosa e harmoniosa. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 'ABDU'L BAHÁ. Respostas as algumas perguntas. (Tradução: Leonora Stirling Armstrong). 4ª edição. Ed. Bahá'í do Brasil: Rio de Janeiro, 1979. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 1988. (Disponível em www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituiçao.htm) BRASIL. Diversidade Religiosa e Direitos Humanos. Secretaria Especial dos Direitos Humanos, Presidência da República: Brasília, 2004. BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais Bases Legais. Ministério da Educação: Brasília, 2000. BRASIL. Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos. 4ª edição. Secretaria Especial dos Direitos Humanos, Presidência da República: Brasília, 2006. EFFENDI, Shoghi. Chamado às Nações. (Tradução: Leonora Stirling Armstrong). Ed. Bahá'í do Brasil: Rio de Janeiro, 1979. Nações Unidas. Declaração para a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e Discriminação com base em Religião ou Crença. In: Seminário em Comemoração dos 25 anos da Declaração para a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e Discriminação com base em Religião ou Crença. Secretaria Especial dos Direitos Humanos e Fórum Nacional de Educação em Direitos Humanos. São Paulo, 2007.. Declaração Universal dos Direitos Humanos - Resolução 217A(III) da Assembléia Geral das Nações Unidas. Nova Iorque, 1948.. Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos - Resolução 2200A(XXI)

12 da Assembléia Geral das Nações Unidas. Nova Iorque, 1966.