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O A L C O O L I S M O : U M A F O R M A D E D E S I S T Ê N C I A D A V I D A
A edição deste livro é parcialmente subsidiada pela FCT Fundação para a Ciência e a Tecnologia MINISTÉRIO DA CIÊNCIA E DA TECNOLOGIA Apoio do programa operacional Ciência, Tecnologia, Inovação, do Quadro Comunitário de Apoio III TÍTULO: O ALCOOLISMO: UMA FORMA DE DESISTÊNCIA DA VIDA AUTOR: ALBERTO AFONSO DE DEUS ã INSTITUTO SUPERIOR DE PSICOLOGIA APLICADA CRL RUA JARDIM DO TABACO, 34, 1149-041 LISBOA TELEFONE: 21 881 17 30 / FAX: 21 886 09 54 1.ª EDIÇÃO: MARÇO DE 2002 GRAVURA DA CAPA: «CAFÉ DES HALLES» (1952) DE ROBERT DOISNEAU COMPOSIÇÃO: INSTITUTO SUPERIOR DE PSICOLOGIA APLICADA IMPRESSÃO E ACABAMENTO: PRINTIPO INDÚSTRIAS GRÁFICAS, LDA. DEPÓSITO LEGAL: 177422/02 ISBN: 972-8400-40-3
ALBERTO AFONSO DE DEUS O ALCOOLISMO: UMA FORMA DE DESISTÊNCIA DA VIDA I S P A L i s b o a
I N T R O D U Ç Ã O
O presente trabalho, de cariz exploratório, pretende estudar alguns dos motivos psicológicos que levam um número significativo de pessoas, em determinada altura das suas vidas, a optarem pelo álcool em detrimento de todos os outros interesses pessoais. Deixam de cuidar de si próprias e progressivamente vão-se desligando das pessoas mais significativas à sua volta. O alcoolismo é, na sua essência, uma doença que afecta a liberdade de escolha. Estes doentes manifestam o desejo de terem uma vida diferente e, no entanto, o prazer e o alívio que dizem sentir quando consomem álcool suplanta a opção da abstinência. Progressivamente vão assistindo à degradação do seu estado de saúde física e mental e, quando são alertados para estes factos, mos - tram-se indiferentes, como se a eminência da morte não os assustasse e fosse inevitável. Na relação psicoterapêutica, estes doentes expressam muitas vezes a vivência da ruptura face a si próprios e aos outros. Em que é que se distinguem estas pessoas, dependentes do consumo de bebidas alcoólicas, da população geral, em termos da estrutura da personalidade? Colocamos a hipótese que na base desta patologia está uma profunda alteração da personalidade e esperamos encontrar um conjunto de características psicológicas comuns aos alcoólicos e distintas dos sujeitos «normais», que nos ajudem a compreender a dependência psicológica do consumo de álcool. 9
Na prática clínica, temos vindo a observar mu dan ças nas características dos doentes alcoólicos internados. Progressi va mente têm vindo a ser internados indivíduos mais jovens, que iniciaram o consu - mo de álcool muito cedo e que apresentam comportamentos anti-so ci - ais, muitas vezes com problemas legais na sua história de vida. Com fre quência têm comportamentos de risco que se reflectem, por exemplo, no número de acidentes de viação. As bebidas alcoólicas ingeridas com mais frequência são de alto teor alcoólico, produzindo rapidamen - te o efeito de «pedrada». Esta nova forma de beber assemelha-se ao pa - drão de consumo das drogas noutras toxicodependências. O que estávamos habituados a encontrar nos alcoólicos era um início de consumo mais tardio, geralmente depois dos 20 anos, num contexto em que o factor social tinha grande peso a taberna era um lugar de iniciação que marcava a passagem para a vida adulta. O grupo tinha muita importância e o beber estava geralmente associado a jogos de cartas e outros, não sendo o objectivo imediato atingir o estado de em - briaguez. Se, por vezes, surgiam desacatos, estes não colocavam geralmente a vida dos participantes em risco. Quando internados, estes pacientes apresentavam-se com frequência deprimidos e culpabilizados pelos seus actos, ao contrário dos novos alcoólicos, que não parecem so frer de qualquer culpabilidade. Somos assim levados a supor que estes dois tipos de alcoolismo correspondem a perturbações psicológicas distintas. Na medida em que o novo tipo de alcoólicos com que somos confrontados na clínica (al - co ólicos tipo 2) apresenta um padrão de consumo semelhante ao dos outros toxicodependentes, parece provável que a sua estrutura de personalidade se aproxime também da dos outros toxicodependentes o que não aconteceria tanto com o tipo «tradicional» (alcoólicos tipo 1). Para estudar as características de personalidade dos alcoólicos, bem como as características específicas de cada um dos grupos referidos, pareceu-nos interessante utilizar o Teste de Szondi. Com efeito, co mo veremos, o esquema teórico que fundamenta o teste permite pen- 10
sar de uma forma original o «lugar» da patologia alcoólica, isto é, o nível da estrutura psíquica que estaria em jogo nesta perturbação. Por outro lado, que tenhamos conhecimento, nenhum trabalho publicado até à data usou o Teste de Szondi para estudar as diferenças na organização da personalidade dos sujeitos que se integram nos dois grupos. No quadro das várias indicações que podemos encontrar na literatura sobre as perturbações psíquicas subjacentes, ou, de algum modo, ligadas ao alcoolismo, a referência à depressão assume um relevo particular. Por exemplo, Lesse (1996) caracteriza o alcoolismo como um «equivalente depressivo» considerando-o um «suicídio indirecto». Nes te estudo pretendemos igualmente estudar as diferenças nos dois subgrupos de alcoólicos tipo 1 e tipo 2 ao nível da vivência da de - pres são. Para concretizarmos este objectivo, decidimos aplicar aos dois subgrupos o Inventário de Depressão de Beck. Um outro aspecto que nos interessa estudar, e que poderá estar associado à dependência alcoólica, é a expressão da agressividade face ao próprio. O alcoolismo pode ser considerado uma conduta para-suicidária e parece efectivamente ligado a um aumento do risco suicidário. Para estudar este problema, aplicámos a ambos os grupos a escala de Risco Suicidário de Stork. Apresentamos, no capítulo 1, a definição de síndrome de depen - dên cia alcoólica, explanando em pormenor a evolução histórica deste conceito, desde uma dimensão médica até à dimensão mais actual bio-psico-social. Referimo-nos ainda neste capítulo às diferentes tipo - logias que tentaram distinguir grupos de alcoólicos, com especial ênfase na classificação de Cloninger, que é uma das classificações que relaciona as variáveis biológicas, psicológicas e sociais. Por último fazemos referência aos factores etiológicos do alcoolismo, entre os quais destacamos os factores psicológicos. No capítulo 2 expomos algumas das correntes psicodinâmicas que têm abordado o alcoolismo. A relação entre o síndrome de dependência alcoólica e a depressão 11
é apresentada no capítulo 3. Apresentamos alguns pontos de vista teóricos que consideram o alcoolismo um equivalente depressivo e procura - re mos analisar a relação entre a depressão e a agressividade dirigida con tra o próprio, dimensão que consideramos essencial no estudo desta patologia. A desistência de viver apresentada pela generalidade dos alcoólicos leva-nos a considerar o alcoolismo como uma conduta para-suicidária. A distinção do conceito de suicídio e para-suicídio, bem como a referência a alguns estudos que se debruçaram sobre a relação entre o alcoolismo e o suicídio são apresentados no capítulo 4. No capítulo 5 apresentamos o esquema pulsional szondiano e al - guns estudos feitos anteriormente com o Teste de Szondi junto de do - en tes alcoólicos, nos quais se destacam algumas características de personalidade subjacentes à dependência alcoólica. No capítulo 6 descrevemos o plano experimental da nossa investigação, definimos os objectivos e hipóteses de investigação e os instrumentos utilizados. Caracterizamos também a amostra utilizada e o procedimento de selecção dos doentes alcoólicos, aos quais aplicamos o Teste de Szondi, o Inventário Depressivo de Beck e a Escala de Risco Suicidário de J. Stork. No capítulo 7 apresentamos os resultados obtidos e procedemos à sua discussão. Finalmente, no capítulo 8, tecemos algumas conclusões re lativas ao trabalho efectuado. 12
C A P Í T U L O I D E F I N I Ç Ã O D O S Í N D R O M E D E D E P E N D Ê N C I A A L C O Ó L I C A