Inventários Post Mortem e Testamentos no Estudo de Alforrias e Coartações: Guarapiranga

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Transcrição:

Inventários Post Mortem e Testamentos no Estudo de Alforrias e Coartações: Guarapiranga 1780-1850 Lucilene Macedo da Costa* Tiago Pereira Leal** Resumo: Esse trabalho aborda a conquista da liberdade pelo os escravos forros através da análise das práticas de concessões de alforrias (compra, gratuita, serviços e coartamentos) que eram outorgadas pelos senhores aos escravos em testamentos e nos inventários post mortem. A análise consiste em uma escolha aleatória de testadores, homens e mulheres, que possuíam escravos e concediam alforrias. Além de abordar a formas de concessões de alforrias, objetivamos identificar qual o sexo, designação racial e origem dos escravos mais favorecidos pelas manumissões. Palavras-Chave: Manumissões, Minas Gerais, Guarapiranga Abstract: This paper deals with the conquest of freedom by slaves liners by examining the practices of manumission concessions (purchase, free, services and coartamentos) that were granted by the masters to slaves in wills and inventories post mortem. The analysis consists of a random choice of testers, men and women who has slaves and granted manumission. Apart from addressing the forms of grants of manumission, we aimed to identify the gender, racial designation and origin of the slaves favored by manumissions. Key Words: Manumissions, Minas Gerais, Guarapiranga 1. Introdução Os estudos sobre manumissões em Minas Gerais é algo que vem sendo debatido com ênfase nas últimas décadas. Os resultados têm demonstrado como era dinâmica a vida do cativo às margens da liberdade e, ao mesmo tempo, como a sociedade mineira do século XVIII e XIX possibilitou a ascensão social com a mudança de condição do cativo. *Graduanda em História pela Universidade Federal de Viçosa. ** Graduando em História pela Universidade Federal de Viçosa.

A historiografia aponta a busca pela mobilidade e pela agregação social como um dos fatores de conquista e resistência escrava. Entretanto essa conquista era árdua e estava regida por aspirações e condicionantes que envolviam senhor e escravo num conflito e em uma quebra de normas que geravam casos singulares numa sociedade aluvisionada socialmente. Os principais documentos do período colonial e imperial brasileiro aquinhoavam a população por sua condição (livres, liberto e escravo) e por sua qualidade ou designação racial (branco, mulato, crioulo, cabra e africano). Algumas regiões brasileiras viveram conjuntamente a escravidão urbana e rural circunscritas em pequenos arraiais, aplicações, freguesias, vilas e cidades que proporcionavam aos cativos, estratégias diversas de se entregarem ao mundo dos libertos. O meio social mineiro, dotados de conflitos e negociações foi acompanhado pelo dinamismo econômico que sustentava a economia mineira com estagnação de ouro e proporcionava a essa província ser o principal destino das escravarias que desembarcavam nos portos cariocas (FLORENTINO, 1997: 38). Esse foi o contexto das Minas Gerais subscrita por uma escravidão urbana nas principais vilas onde havia uma diversificação das atividades econômicas (mineração, comércio, agricultura, pecuária, artesanato e prestação de serviços). Essa região também era entrelaçada por uma escravidão rural subsidiada por uma economia agropastoril destinada ao mercado interno. A região de Guarapiranga estava às margens da região mineradora, Mariana e Ouro Preto, e no contexto do século XVIII e XIX essa região integrava o Termo da cidade de Mariana. Sendo freguesia até metade do século XIX e tornando-se Vila a partir da segunda metade, essa região foi composta por vários distritos, alguns com pequenos núcleos urbanos, mas na sua totalidade com perfil rural e toda a região apresentava grande apego a escravidão. Os inventários post mortem e os testamentos 1 são as principais fontes de sustentação empírica deste trabalho. Por meio dos inventários podemos identificar os escravos arrolados 1 Os inventários post mortem e testamentos foram as nossas fontes primárias e se encontram no arquivo da Casa Setecentista de Mariana (ACSM) e no arquivo do Fórum de Piranga (AFP). Vários projetos estão sendo desenvolvidos por uma equipe de estudantes do curso História (UFV) financiados pelos órgãos fomentadores da pesquisa CNPq e FAPEMIG e da extensão PROEXT sob a orientação do Profº Drº Fábio Faria Mendes visando dar continuidade aos projetos articulados de identificação, digitalização e conservação preventiva de acervos documentais das Minas dos setecentos e oitocentos. 2

na descrição de bens e perceber a composição demográfica dos plantéis com as informações que são apresentadas pelo documento. O valor do monte-mor também proporciona uma variável importante de análise, pois possibilita compreender o peso da escravaria no valor total da riqueza do indivíduo. Entretanto, o cerne da análise será feita a partir dos testamentos, sendo estes desenvolvidos a partir de relatos individuais, nos proporcionando assim o conhecimento do viver coletivo e informando sobre o comportamento dos indivíduos na sociedade em que se inseriam (PAIVA, 1995: 29). As práticas de manumissões registradas nos testamentos proporcionaram o desenvolvimento do objetivo central deste trabalho. Por meio dessas práticas identificamos as alforrias, os motivos e as condições na qual os escravos eram sujeitados. A partir das análises das fontes objetivamos também identificar o sexo, a designação racial e a origem dos escravos mais favorecidas pela manumissão 2. 2. Manumissões em Minas Gerais As transformações econômicas que ocorreram na sociedade mineira do século XVIII foram o ponto de partida para o estudo de manumissões na região. Estudos que analisaram as Minas Setecentistas e apontaram para o aumento da população livre e liberta em detrimento da população cativa, uma vez que as manumissões em Minas alcançaram um número elevado em relação ao restante do Brasil (PAIVA, 1995, p.18). As análises explicativas situavam-se em torno do perfil econômico da região. Nos anos de 1970, os estudos subsidiados pela suposta ideia de crise ou estagnação da economia mineira apontavam ônus gerado pela manutenção da escravaria como principal motivo da libertação dos escravos. Nesse sentido, o escravo seria liberto a partir de condições pré-estabelecidas e/ou obrigações de adquirir o pecúlio para o pagamento de sua liberdade. A partir de 1980, estudos acerca da economia da capitania e da província apontaram para um novo perfil econômico na qual desmistificou a ideia de decadência da economia mineira. A partir dessa perspectiva, as explicações se situaram no sentido de atribuir as 2 Muitas de nossas inquietações serão apenas esboçadas nesse trabalho, pois o trabalho encontra-se no início, e ainda falta à análise de um corpus documental mais diversificado para estabelecer um padrão das práticas de manumissões na região. 3

possibilidades de alcançar o pecúlio através da inserção do cativo no mercado, razão a qual possibilitou o aumento do número de manumissões. A partir desse período, algumas análises buscaram compreender as alforrias como resultado da resistência escrava. Eduardo França Paiva se destacou nesses estudos e segundo ele Resistir ao sistema significou diversificar as estratégias de acordo com as peculiaridades de cada região e cada período do escravismo (PAIVA, 1995:92). Quanto ao conceito de adaptação e acomodação que começou a perpetuar nos debates acerca das estratégias para obtenção da manumissão, o trabalho de Kátia Mattoso teve grande contribuição nessa linha de interpretação ( ver MATTOSO apud PAIVA, 1995: 49). Segundo Andréa Lisly Gonçalves, baseada em Jacob Gorender, a obra de Mattoso exerceu influência nos novos estudos sobre escravidão brasileira na qual renovou na produção acadêmica nacional, o vigor das proposições de Gilberto Freyre (GONÇALVES, 2011:55). Os trabalhos de Paiva (1995) e Souza (1999) apontam o estudo de Silvia Hunoldt Lara (1988) como o marco de mudança da concepção resistência escrava. Para a autora, a resistência não seria cingida pela violência, fuga ou motins, mas pelas novas formas de estratégias que estariam sendo construídas a partir das relações senhor e escravo. A partir da concepção de resistência escrava, Paiva (1995) elabora suas argumentações atribuindo dois significados às manumissões. O autor argumenta que as práticas de alforrias eram percebidas pelo Estado e pelo proprietários como instrumento de controle social, e por consequência, aparelho da manutenção do sistema escravista. O outro argumento aponta as práticas de alforrias como uma conquista escrava, condicionada a uma real libertação do cativo, por isso a adaptação e a acomodação ao sistema. Os escravos percebiam que as estratégias engendradas no dia-a-dia dariam resultado, deixariam a condição de escravo, mesmo que carregasse a estigma da escravidão na sua trajetória como liberto. Em suma, compartilhamos a tese de que o número elevado de alforrias nas Minas do final do século XVIII deva-se ao dinamismo econômico que estava presente no meio urbano e rural. O perfil dinâmico da economia contribui para que as estratégias e negociações entre senhores e escravos fossem estabelecidas e cumpridas. 3. Manumissões em Guarapiranga 4

A diversificação econômica foi um dos elementos norteadores para o complexo universo de manumissões em Minas Gerais e a região de Guarapiranga se enquadra no perfil que a historiografia mineira chama de período de acomodação. Tal período corresponde à transição de uma economia centrada na mineração para uma economia articulada pela agricultura mercantil (LIBBY, 1988). A região em questão sempre esteve às margens do núcleo minerador. Por meio da análise dos inventários encontramos descrições de algumas poucas terras minerais e uma constante descrição produção de bens de raiz, principalmente milho e cana-de-açúcar 3. Uma das problemáticas salientada pela historiografia foi o aumento considerável no número de forros na sociedade mineira do final dos setecentos. Conforme a tabela 1 a seguir, no final do século XVIII a população livre e liberta em Guarapiranga perfazia quase 50% da população e apresentava um aumento progressivo ao longo do século XIX 4. Tabela 1: População livre/ liberta e escrava de Piranga (1797-1872) Condição Livres e (%) Escravos (%) Total Período Libertos 1797 5.124 47.5 5.665 52.5 10.789 1831 8.248 67,1 4.050 32.2 12.298 1872 34.976 81,6 7.847 18.4 42.638 Fonte: Taboa de população da freguesia de Guarapiranga do Termo de Mariana, 31 de dezembro de 1797, elaborado por Lino Lopes de Mattos, APM, Casa dos Contos, Cx. 94 (totais revisados). APM, LN 1831-32 dos distritos de Piranga, Calambau, Tapera, Bacalhau, Mestre de Campos, Manja Légoas, Espera, Brás Pires, Conceição do Turvo, Pinheiro, São Jose do Chopotó e Dores do Turvo; Censo de Minas Gerias dos anos de 1872-73. Acreditamos que o aumento do número de livres e libertos nas primeiras décadas do século XIX foi consequência da concessão de alforrias. Além disso, é importante observamos a redução do número de escravos nesse período. Os dados sobre população não são concisos em sua totalidade, porém há evidências que vários indivíduos deixaram a condição de escravo e passaram a viver como livre. 3 Mais informações ver o conjunto de inventários disponíveis no 1º e 2º ofício do arquivo da Casa Setecentista de Mariana (ACSM) e arquivo do Fórum de Piranga (AFP). 4 Agradecemos ao profº Fábio Faria Mendes a disponibilidade da tabela. 5

O aumento populacional pode ter relação tanto com as práticas de alforria como com a rearticulação interna da população. As áreas que tinham uma maior especialização na mineração sofreram uma considerável perda populacional (ALMEIDA, 2006), como a região em questão não esteve diretamente vinculada à mineração, o aumento populacional pode estar vinculado a essa rearticulação. As nossas análises partiram de uma construção de banco de dados 5, na qual buscamos identificar as manumissões seja ela gratuita, paga, serviços e coartação 6, e assim como as condições e motivações para alforrias. As informações como o valor do monte-mór, o número de escravos são informações complementares indispensáveis ao nosso estudo. As alforrias gratuitas eram aquelas pelas quais não se impunha nenhuma condição (pagamento ou prestação de serviços) pela liberdade, como o caso da escrava Januária (crioula) que ganhou a liberdade por [...] bons serem seus que tem feito pello [ilegível?] Deos o deixo forra e liberta como se de livre vento (ACSM,1789, 1º ofício, 144, 3016) 7. Geralmente as alforrias gratuitas eram justificadas pela realização de bons serviços e temor a Deus (PAIVA, 1995: 87). Haviam situações na qual gratuidade estava acompanhada de imposições e condições que oneravam o cativo por certo tempo como é caso de (ver LIBBY & GRAÇA FILHO, 2003: 132). Como, por exemplo, o caso da escrava Maria Mulata que foi forra em testamento, Declaro que deixo forra e liberta huma mulatinha por nome Maria filha da dita negra Quiteria e o seu valor o tomo na minha terça e meu Testamenteiro lhe passará Carta de Liberdade logo depois de meu falescimento [...] ( ACSM, 2º. Oficio, 23, 582) As alforrias pagas 8 por escravos não foram identificadas em nossas amostras. Porém, encontramos casos terceiros compram a liberdade do cativo. O caso a seguir exemplifica essa situação 5 As nossas análises, construídas a partir do programa Access e Excel, partem de 25 casos de manumissões na qual optamos somente por citar alguns. Ainda nos falta uma padronização dos tipos de manumissões, mas estamos cumprindo o protocolo da primeira fase da pesquisa que é identificação dos casos. 6 Compartilhamos da definição de coartação apresentada por (PAIVA, 1995: 20). 7 As citações dos inventários objetivam preservar a escrita original, as exceções são quando aparecem os colchetes com o ponto de interrogação e/ou escrito ilegível. 8 As alforrias pagas e os coartamentos por envolverem transações monetárias podem se assemelhar, mas optamos por analisa-las separadamente. 6

Deveme mais a dita Anna Francisca dezesseis oitavas de ouro procedidos da liberdade que dei a hum escravo meu por nome Candido ao qual ella e seo irmão Manoel Caetano da Silva e Souza me fizerão logo no Baptismo logo [?] Baptismo dar lhe liberdade obrigando [o e me?] ella o dito seu irmão Manoel Caetano a pagar-[me?] trinta e duas oitavas Respondendo cada hum pela sua Respctiva parte de dezesseis oitavas e me ella o dito seu irmão Manoel Caetano a pagar-[me?] trinta e duas oitavas Respondendo cada hum pela sua Respctiva parte de dezesseis oitavas [...] (ACSM, 1º. Oficio, 26, 677). Assim vemos que Ana Francisca e seu irmão Manoel se comprometeram com pagamento da alforria do escravo Cândido, ainda na pia batismal. Esse caso instiga a pensar na hipótese da existência de um laço de parentesco entre o liberto e os seus fiadores. Outro caso semelhante é do testador Nicolau Martins, homem pardo, que declara em seu testamento que sua testamenteira pagaria pela alforria de duas escravas, que não constavam em seu plantel, Laureanna Cabo Verde e Jurana, sendo esta, sua irmã. A coartação foi uma modalidade específica em Minas Gerais, um dos poucos lugares da América portuguesa onde foi difundido essa prática (SOUZA, 1999: 156). Tanto Laura (1999) como Paiva (1995) defende que a condição de coartado era uma de transição para a condição social de livre. A coartação inseria o escravo no mercado e na busca da conquista de pecúlio e quitação de sua dívida. Os casos de coartamentos foram frequentes em nossas amostras. Deparamos com situações da qual o escravo é coartado com valores e tempo diversos e às vezes condicionados a servir até a morte do testador correndo o risco de ser reescravizado caso os tratos não fossem cumpridos. Havia ainda outras situações em que o coartado estava incumbido de permanecer no local e [...] não poderao mudar de terra e nem ir para longe sem consentimento do testamenteiro e que terao toda obediencia [...] (ACSM, 1º. oficio, 26, 677). Os acordos entre senhores e escravos nem sempre eram respeitados e quando uma das partes não conseguia cumprir o combinado explodiam os conflitos e surgia as contradições (SOUZA, 1999:163). As alforrias condicionais foram identificadas por serviços que o cativo deveria prestar até a morte do seu senhor. Identificamos apenas um caso que representa essa situação. Mas ressaltamos que outras formas de alforrias não estavam isentas de algum tipo de condição. 7

De acordo com as nossas amostras os escravos nativos foram os mais beneficiados com as praticas de manumissões, também e percebemos que não há desigualdade de gênero na obtenção de alforrias. Esses resultados podem estar relacionados ao tipo de fonte por nós utilizados, pois ao utilizar as cartas testamentos para região de São José, Libby & Graça Filho (2003), encontraram uma diferenciação do sexo entre alforriados. Manolo Florentino demonstra em seus estudos para o contexto carioca do século XIX, que os escravos africanos foram, em algumas práticas de manumissão, majoritários na obtenção das alforrias. As hipóteses dos estudos apontam a ladinização e a experiência urbana e mercantil dos africanos da região da áfrica ocidental. Os casos aqui apresentados ainda são insuficientes para uma comparação sobre a historiografia sobre o tema. Porém, a partir destes, se torna possível formular hipóteses sobre o perfil das alforrias e coartamentos na região Guarapiranga. 4. Considerações Finais A região teve um aumento considerável da população livre e liberta o que possibilita levantar várias hipóteses, dentre elas as práticas de manumissão que foram muito comum nas Minas Gerais dos séculos XVIII e XIX. Nossos dados não permitiram uma padronização das categorias de práticas de manumissões. Mas a escolha aleatória dos testamentos permitiram identificar situações em que as alforrias envolviam transações monetárias e situações de gratuidade condicionada. As fontes ocultaram algumas informações, como a idade do escravo beneficiado pela manumissão e também a sua ocupação, pois dados como esses seriam importantes para entendermos o significado da alforria para senhor e para cativo. O cruzamento de fontes é de suma importância para a complementação dos dados encontrados nos inventários e testamentos, pois poucas informações dos manumitidos estavam no arrolamento de bens dos inventários. Outro fato é que muitos dos escravos alforriados em testamento não estavam arrolados nos inventários. Bibliografia 8

Fontes Manuscritas Arquivo da Casa Setecentista de Mariana (ACSM) Arquivo do Fórum de Piranga (AFP) Referências ALMEIDA, Carla Maria. De Vila Rica ao Rio das Mortes: mudança do eixo econômico em Minas colonial. Locus, Juiz de Fora, v. 11, 2006. FLORENTINO, Manolo. Alforrias e etnicidade no Rio de Janeiro oitocentista: notas de pesquisa. Topoi, nº. 5, 2002. FLORENTINO, Manolo. Em Costas Negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro: séculos XVIII e XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. GONÇALVES, Andréa Lisly. As margens da liberdade: estudo sobre as práticas de alforrias em Minas colonial e provincial. Belo Horizonte, MG: Fino Traço, 2011. LARA, Silvia Hunoldt. Campos da violência: escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro 1750 1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. LIBBY, Douglas. Transformação e trabalho em uma Economia escravista: Minas Gerais no século XIX. São Paulo: Brasiliense,1988. LIBBY, Douglas Cole, GRAÇA FILHO, Afonso de Alencastro. Reconstruindo a liberdade. Alforrias e forros na freguesia de São José do Rio das Mortes, 1750-1850. In: Varia História, nº 30, julho, 2003. PAIVA, Eduardo França. Escravos e libertos, nas Minas Gerais do século XVIII: estratégias de resistência através dos testamentos. São Paulo: Annablume, 1995. SOUZA, Laura de Mello e. Norma e Conflito: aspectos de Minas no século XVIII. Belo Horizonte. Ed. UFMG, 1999.. 9

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