REVISTA PHYSIS Revista Eletrônica do Instituto de Filosofia I.F ISSN 2175-7801



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REFORMA AGRÁRIA ECOLÓGICA NA AMAZÔNIA: RELATOS DA EXPERIÊNCIA EM COMUNIDADES TRADICIONAIS NA FLONA DE TEFÉ 1 Thaís Brianezi 2 Elenise Scherer 3 RESUMO Na Floresta Nacional de Tefé, localizada no rio Tefé, médio Solimões, Estado do Amazonas, criada em 1989, vivem cerca 360 famílias, consideradas como povos tradicionais e reconhecidas como assentadas, em 2002, por meio da política de reforma agrária ecológica. Nessa Unidade de Conservação realizou-se a experiência pioneira no país e que representa um esforço de sinergia entre duas políticas, até então, historicamente opostas na Amazônia: a ambiental e a fundiária. Este artigo trata de alguns aspectos dessa experiência inovadora, desafiante e em andamento. Palavras-chave: Desenvolvimento sustentável; povos e comunidades tradicionais; reforma agrária; unidades de conservação. 1 O artigo é produto de uma pesquisa desenvolvida na Floresta Nacional de Tefé em 2006 e 2007, que resultou na dissertação de mestrado de Thais Brianezi intitulada Reforma Agrária Ecológica na Flona de Tefé, no Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia PPGSCA, 2008. 2 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental da USP. 3 Professora do Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia PPGSCA e pesquisadora do CNPq. 39

RÉSUMÉ Dans la Forêt National de Tefé, située sur la rivière Tefé, Moyen Solimões, l'etat d'amazonas, établie en 1989, vivent environ 360 familles, considérés comme des peuples autochtones et reconnus comme réglés en 2002 grâce à une politique de programmes de réforme foncière. En cette Unité de Conservation on a organisé une expérience pionnière dans le pays et qui représente une synergie des efforts entre les deux politiques, jusqu'ici, historiquement opposés en Amazonie: l'environnement et des terres. Cet article traite de certains aspects de l'expérience de novateur, stimulant et en cours. Mots-clés: développement durable, les peuples et les communautés traditionnelles, la réforme agraire, les unités de conservation. 40

INTRODUÇÃO A Floresta Nacional de Tefé foi criada em 1989 abarcando cerca de 1.020.000 hectares e atingindo os municípios de Tefé (47,3%), Alvarães (36,7%), Carauari (4,5%) e Juruá (11,5%), que compõem a região do médio Solimões no Estado do Amazonas. A Flona de Tefé é palco onde se desenvolve uma experiência pioneira de assentamento dos moradores em uma unidade de conservação de uso sustentável. Desde 1999, o IBAMA como órgão gestor de áreas protegidas e o INCRA responsável pela política de reforma agrária uniram-se em torno do ideário de Chico Mendes e demais sindicalistas acreanos, ao iniciar a chamada reforma agrária ecológica na Flona de Tefé. Embora haja uma vasta bibliografia sobre as reservas extrativistas, há poucos estudos sobre Florestas Nacionais e, especialmente, sobre a política inovadora de reforma agrária em unidades de conservação. Este artigo, portanto, pretende somar com os estudos e com o debate sobre a aproximação entre a política fundiária e a política ambiental na Amazônia, tomando como referência o projeto de reforma agrária executado pelo INCRA e pelo IBAMA na Flona de Tefé. Centramos nosso olhar sobre esse processo inovador e desafiante, porque pioneiro na Amazônia, com base na relação entre o Estado e as chamadas comunidades tradicionais, 4 por meio das políticas públicas, o respeito à sua cultura tradicional, a garantia das suas estratégias de reprodução social e as formas de lidar com a natureza, em três povoados localizados nos rios que cortam a Flona de Tefé: São João do Mulato, no rio Tefé, São Sebastião, no rio Curumitá de Baixo, Vila Sião, no rio Bauana, todos os afluentes do rio Tefé no médio Solimões, onde concentram as sedes das associações de moradores criadas para dialogar com os gestores estatais para viabilizar a política de reforma agrária e ecológica. 4 Aqui a referência ao tradicional será apoiada nos argumentos de A. W. Almeida, que entende a noção de tradicional não se reduz à história, nem tampouco a laços primordiais que amparam unidades afetivas, mas incorpora identidades coletivas redefinidas situacionalmente numa mobilização continuada, assinalando que as unidades sociais em jogo podem ser interpretadas como unidades de mobilização (ALMEIDA, 2001, p. 25). 41

A FLONA DE TEFÉ E AS SUAS COMUNIDADES TRADICIONAIS: O LUGAR DO RECONHECIMENTO E LUTA PELOS DIREITOS Na Flona de Tefé vivem cerca de 360 famílias, agrupadas em 30 comunidades localizadas nas calhas dos rios e nos lagos, em terras de várzeas e terras firmes ao longo do rio Tefé, Bauana e Curumitá de Baixo no médio Solimões. O nucleamento dos moradores nas comunidades, comumente denominados e autodenominados de ribeirinhos, foi incentivado pelos Movimentos Eclesiais de Base MEB, coordenados pela prelazia de Tefé, a partir dos anos 60. Esses segmentos dos povos tradicionais na Amazônia têm como principal fonte de subsistência a agricultura familiar, com destaque para a produção da mandioca, pesca artesanal e extrativismo da borracha, castanha, açaí, andiroba, copaíba e madeira. A vida comunitária tem um significado particular para os povos tradicionais na Amazônia, pois foram estimulados pelo MEB que a comunidade deveria ser vista como espaço do entendimento, da união de forças para reivindicação de serviços públicos, especialmente a saúde e a educação. Esses lugares de entendimento prévio e tácito associado ao mito do paraíso perdido, como observa Bauman (2003), parecem ainda persistir nos dias atuais nos mais distantes lugares e rincões da Amazônia. Em 2006, na comunidade do Mulato, durante a celebração da missa pelo bispo da prelazia de Tefé, foi entoada uma canção Eu sou feliz é na comunidade. Na comunidade eu sou feliz. Reforçando a mensagem cantada, defendeu expressamente que as famílias do Mulato deveriam perseguir a utopia de ser um só coração e uma só alma, o que ilustra bem o entendimento de comunidade para os povos tradicionais da Amazônia. Mas se a letra da canção revelava o ideal de comunidade fomentado pela prelazia de Tefé desde os anos 60, expressa também como o lugar onde se esboçam as demandas e as reivindicações dos direitos, especialmente às voltadas ao poder público municipal. Expressa também a sua vinculação com a luta política pela reforma agrária na região: O trabalhador unido/ as coisas vão melhorar/ lutando pela reforma agrária para na terra plantar/ Todos os pobres sem terra/ sem ter casa para morar/ lutam pelos direitos para a vida melhorar. A comunidade na Amazônia constitui, portanto, uma importante referência de identificação, especialmente para os moradores da Flona de Tefé, tanto no interior quanto no exterior dessa unidade de conservação. Em um movimento de pertencimento e exclusão, que 42

funciona como delimitação de fronteiras e reforço da alteridade, a comunidade serve também como referência na organização de atividades de socialização e disputa, como, por exemplo, os campeonatos de futebol. Para entender-se o significado desse termo e seus diferentes usos sociopolíticos é preciso ir além do contexto meramente espacial, aproximando-se do conceito de territorialidade nos termos propostos por Cara (1994) e Neves (1994): como um espaço produzido socialmente baseado na mescla da temporalidade e da ação social consciente, como lugares e tempos de ação e de poderes. A REFORMA AGRÁRIA ECOLÓGICA: DA INSERÇÃO INSTITUCIONAL À CONQUISTA DE DIREITOS A reforma agrária ecológica: uma experiência pioneira em Unidades de Conservação Desde os anos 80, a luta pela reforma agrária incorporou a temática da democracia e da cidadania (AUED, 1997, p. 243-247). No âmbito regional, em 1985, é também um ano significativo na história da construção de uma reforma agrária que atendesse às especificidades da Amazônia. Em outubro desse mesmo ano, o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri (Acre) organiza o 1.º Encontro Nacional dos Seringueiros, que reuniu em Brasília líderes sindicais do Acre, do Amazonas e de Rondônia. Esse evento marcou o surgimento do Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS), que passou a reivindicar a desapropriação dos seringais, mantendo, porém, a estrutura original de posse e uso coletivos da terra, configurada em torno das colocações de seringa. Nasce, assim, a luta pela criação das Reservas Extrativistas (Resex) e a adoção, por parte do CNS, do termo reforma agrária ecológica (ALMEIDA, 2004; PAULA, 1999). O conceito de reserva extrativista foi inspirado na definição de reservas indígenas: terras da União sobre as quais os seringueiros teriam direito perpétuo de usufruto coletivo. Em 1987, surge a primeira tentativa de concretização desse novo modelo de reforma agrária: o Projeto de Assentamento Agroextrativista (PAE) São Luiz do Remanso, em Rio Branco, no Acre. Incorporava ele as reivindicações dos seringueiros e apresentava estrutura e função 43

semelhantes àquelas contidas na proposta das Resexs. Já a primeira reserva extrativista a Resex do alto Juruá, também no Acre foi criada apenas em 1990, quase dois anos depois do assassinato do líder seringueiro Chico Mendes alcançar repercussão internacional. Na Amazônia, no início do século 20, quando o preço da borracha entra em queda, os seringueiros formados por imigrantes nordestinos passam a diversificar a produção para a sua subsistência, a caçar e a plantar, a aumentar a cultura de subsistência, a apropriar-se da floresta. Muitos, inclusive, casam com mulheres indígenas. Aos poucos vão se constituindo, assim, os povoados ribeirinhos, formados por moradores que historicamente não possuem garantias legais da posse e uso legítimos sobre o território. Assim, principalmente a partir da década de 70, com o financiamento do governo militar aos grandes projetos madeireiros e agropecuários na região, o país assiste à explosão da grilagem da terra, da depredação da floresta e da expulsão de seus moradores tradicionais (ALMEIDA, 2004, p. 36-40). O modelo de reforma agrária adotado pelo governo não dava conta da realidade desses pequenos agricultores e extrativistas das florestas amazônicas. No Acre, os dados do Plano Regional de Reforma Agrária revelam que, nos últimos 30 anos, os projetos de assentamentos convencionais que seguem a estrutura de distribuição de lotes individuais de terra, com incentivo à prática da agricultura e pecuária predatórias levaram à reconcentração fundiária, cujo índice estimado é de 40 a 50%, recriando e regularizando o latifúndio no Estado (PRRA/AC, 2004). Se no Acre surgem os primeiros projetos de assentamento agroextrativistas e as primeiras reservas extrativistas, é no Estado vizinho, o Amazonas, que, em 1999, foi assinado o primeiro convênio entre o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) para implantação da política de reforma agrária dentro de unidades de conservação (UCs). No relato da superintendência do INCRA no Amazonas, verificou-se que não havia diferença de perfil entre os assentados dos projetos agroextrativistas que o INCRA vinha criando desde 1987 e os moradores das UCs de uso direto. Após consulta à procuradoria-geral do órgão, em Brasília, o INCRA regional passou a reconhecer os moradores de Flonas, Reservas Extrativistas (Resex) e Reservas de Desenvolvimento Sustentável (RDS) como possíveis assentados. O primeiro convênio celebrado referia-se à Resex do médio Juruá, também na 44

região do médio Solimões. Aos poucos, essa parceria entre o INCRA e o IBAMA foi estendida a outras áreas, 5 tendo sido formalizada na Flona de Tefé, em 2002. A chamada reforma agrária ecológica tem como pressupostos a conservação da floresta, a assistência técnica agroflorestal, o estímulo ao associativismo e à geração de renda. O primeiro passo após a celebração do convênio entre o INCRA e o IBAMA foi o cadastramento voluntário das famílias no Sistema de Informações de Projetos de Reforma Agrária (Sipra). Para que o reconhecimento oficial como assentado seja possível o morador deve atender ao perfil estabelecido no Estatuto da Terra (1964): não pode ter renda mensal familiar superior a três salários mínimos provenientes de atividades não-agrícolas, não pode ser funcionário público, aposentado ou pensionista nem empresário. Pelo cadastramento no Sipra, cada família assentada está apta a receber do INCRA o crédito implantação, que se divide na modalidade instalação (R$ 2.400,00 para a compra de alimentos e equipamentos de trabalho) e na modalidade habitação (R$ 5.000,00 para construção de uma casa). 6 Dados do INCRA revelam a quantidade de famílias assentadas na Flona de Tefé que já receberam os materiais do crédito fomento nas três comunidades estudadas: 18, no Mulato; 33, na Vila Sião, e 33, no São Sebastião. Após a concessão desse crédito inicial, os assentados passam a ter direito a duas linhas especiais de financiamento do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), criado em 1996, graças à pressão exercida sobre o governo federal pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST). 7 As famílias assentadas da Flona de Tefé, ainda em fase inicial, não acessaram esse crédito, que exige a apresentação à instituição financeira (no caso, o Banco da Amazônia) de um projeto indicando no que o recurso será investido e 5 Dados do Incra de agosto de 2005 mostram que seis reservas extrativistas e duas florestas nacionais já tinham adquirido o status de projetos de reforma agrária. São elas, com sua data de formalização do convênio entre o Incra e o órgão ambiental gestor: Resex do médio Juruá, em Carauari (1999); Resex baixo Juruá, em Uarini (2001); Resex Auati-Paraná, em Fonte Boa (2001); Resex rio Jutaí, em Jutaí (2002); Flona de Tefé, em Tefé (2002), Resex do lago do Capanã-Grande, em Manicoré (2004); Resex Catuá-Ipixuna, em Coari (2004); Flona de Humaitá, em Humaitá (2004). 6 O crédito implantação modalidade instalação é um empréstimo a fundo perdido. Já o crédito implantação modalidade habitação deve ser pago em até 20 anos, com três anos de carência e desconto de 50% para pagamento em dia. Os valores citados são referentes a maio de 2006. 7 As duas linhas são o Pronaf Grupo A e o Pronaf Grupo A/C, exclusivas para assentados. A primeira disponibiliza até R$ 13,5 mil, com mais R$ 1,5 mil para assessoria técnica, com juros de 1,15% ao ano e bônus (desconto para pagamento em dia) de até 46% sobre o principal. O prazo para pagamento é de até dez anos, com até cinco anos de carência. A segunda é um crédito de custeio, com valores de R$ 500 a R$ 3 mil, com juros de 2% ao ano e bônus de adimplência de R$ 200,00, independentemente do valor contratado. O prazo para pagamento é de até dois anos. Os valores referem-se a maio de 2006. 45

como será pago (ou seja, a comprovação da viabilidade econômica do empreendimento), talvez pelo fato da não conclusão do Plano de Manejo. Associativismo como estratégia de participação política no mundo rural Cerca de um ano após a assinatura do convênio entre o Incra e o Ibama, os moradores das comunidades criaram, com incentivo do poder público, três associações comunitárias juridicamente válidas e organizadas por calhas de rio Tefé. Essa forma de associativismo foi institucionalmente necessária para estabelecer-se diálogo entre o governo e as comunidades tradicionais na condução da política agrária ecológica por meio do Programa Nacional de Agricultura Familiar Pronaf. Essa estratégia visa a um só tempo o reconhecimento jurídico e a necessidade de organização política dos moradores das comunidades do rio Tefé. Embora nos povoamentos as associações existentes anteriormente não estivessem inseridas no universo da regulação estatal, dos registros formais, elas constituem-se também como uma maneira direcionada de dialogar com os poderes públicos, notadamente o municipal. No interior das comunidades as famílias que habitam nas margens dos rios Tefé, Bauana e Curumitá de Baixo já haviam construído, desde os anos 60, com influência das CEBs, sua forma própria de organização. Com base no nucleamento desses moradores e da eleição de presidentes das comunidades, os vereadores eram os interlocutores que representam os ribeirinhos nas suas reivindicações por serviços de saúde, educação e assistência nas esferas municipais. Essas formas tradicionais de organização nem sempre são consideradas como modelo de gestão institucional, mas elas baseiam-se nos princípios cristãos de valorização da solidariedade e da cooperação, centrados nas relações familiares e de vizinhança. As práticas culturais, a ocorrência de mutirões de limpeza, de ajuris de roçado e de trocas de dia de trabalho, por exemplo. A recriação dessas associações e sua institucionalização foi uma exigência do INCRA para viabilizar o recebimento direto dos créditos fomento e habitação da política do Pronaf, que só poderiam ser repassados pelo INCRA a uma pessoa jurídica. Se não houvesse uma 46

entidade comunitária juridicamente constituída na Flona de Tefé, os recursos financeiros seriam enviados às prefeituras de Tefé e de Alvarães, que fariam sua distribuição aos assentados. Além da exigência burocrática, os técnicos do governo federal, tanto do INCRA quanto do IBAMA, incentivaram o associativismo como uma forma de potencializar a organização socioprodutiva dos moradores da Flona Tefé e de melhorar a relação deles com o poder público e sua inserção no mercado. É curioso observar que os estatutos das três associações de moradores das comunidades da Flona de Tefé são idênticos todos eles foram escritos por gestores da UC que atuava na área. Para ser membro das três associações o estatuto assegura, por exemplo, que é preciso ter mais de 16 anos e viver nas margens direita ou esquerda do rio em cada comunidade localizada. A rigor, todos os participantes dessas associações devem pagar uma taxa mensal (que na época da pesquisa era de R$ 5) para desfrutar dos bens comuns da entidade. Mas essa é uma das dificuldades enfrentadas pelos dirigentes das associações, pois muitos associados não estavam contribuindo regularmente em face das longas distâncias a percorrer, comunicação e transporte, muito presente em comunidades isoladas na Amazônia. A distância entre comunidades que compõem a mesma associação, que pode chegar a dezesseis horas de viagem, também gera contradições no processo organizativo: embora por princípio os investimentos, bens e projetos da entidade devessem beneficiar todos os associados, na prática estão eles concentrados nas comunidades-sede. Os estatutos preveem, inclusive, que em caso de dissolução o patrimônio social e bens permanentes da associação permanecerão na comunidade-sede. A institucionalização de organizações tradicionais traz o risco de afastar e despolitizar os representados, na medida em que privilegia a participação dos chamados militantes profissionais pessoas com tempo para dedicar-se à causa e para construir uma burocracia e um linguajar próprios (BORDIEU, 1990). Na Flona de Tefé, há indícios de que o processo de representação institucional inaugurado com a criação das três associações de moradores esteja incentivando uma maior participação política dos representados. Conforme já descrito, esses povoados surgiram por um processo organizativo fomentado pela Igreja Católica, cujos catequistas e missionários convidavam os chamados ribeirinhos para a realização de trabalhos voluntários coletivos de limpeza, de construção de escolas ou de roça, por exemplo conhecidos na Amazônia como mutirões ou ajuris. Com a política de reforma agrária sendo 47

implantada, 42% dos moradores do Mulato afirmaram que essas atividades coletivas aumentaram após o início da implantação de políticas públicas na comunidade. No São Sebastião, os ribeirinhos assentados fizeram uma avaliação positiva do efeito da associação de moradores sobre as atividades comunitárias coletivas. Aqui, porém, manifestou-se uma avaliação contrária à da maioria Os mutirões de limpeza aumentaram logo que começou a reforma agrária. Mas agora estão diminuindo. As pessoas construíram lixeiras, mas não estão usando (entrevista, comunidade São Sebastião, 2006). Já na Vila Sião, a maior parte dos informantes (59%) respondeu que a criação da associação de moradores foi seguida de um aumento na realização de atividades comunitárias coletivas. A institucionalização das associações de moradores parece estar se revelando aos assentados da Flona de Tefé como oportunidade de melhoria das condições de vida. Na Vila Sião e no Mulato, 91,6% afirmou que acha importante a criação da Associação de Moradores do Rio Tefé: Antes era só comunidade e nunca recebemos nada. Pela associação, já recebemos muitas coisas. Antes o prefeito passava ano sem vir aqui. Agora tem andado sempre na comunidade, reparando (entrevista, informante do Mulato, 2006). O reconhecimento institucional: a existência civil e o cadastro no Sipra Simultaneamente ao processo de organização política por meio das associações foi feito o cadastramento dos moradores como o primeiro passo para o acesso ao crédito agrícola O processo de reforma agrária vai exigir a documentação pessoal condição indispensável para a existência civil e de cidadania, pois ainda muitos moradores das comunidades distantes na Amazônia não possuem documentos que lhes comprove a existência civil. Para que tenha acesso às políticas públicas nas mais diversas áreas, notadamente as linhas de financiamento produtivo são necessárias a documentação pessoal. À assinatura do convênio de cooperação técnica entre o INCRA e o IBAMA, segue-se o registro dos moradores da unidade de conservação no Sistema de Informações de Projeto da Reforma Agrária (Sipra). Para isso, elas precisam ter carteira de identidade ou Registro Geral e Certidão de Pessoa Física (CPF). Em 2004, segundo levantamento realizado por consultores contratados pelo IBAMA, 40% dos 48

chefes de família da Flona de Tefé e 49% dos moradores em geral (IBAMA, 2004) não possuíam carteira de identidade. Em algumas localidades os técnicos do INCRA e do IBAMA foram obrigados a realizar mutirões para a retirada desses documentos. Em outras comunidades, porém, muitos já possuíam o documento de identidade ou o CPF em parte porque outros programas de retirada imediata e gratuita de documentos, como o Pronto Atendimento Itinerante (PAI), do governo estadual, já haviam atuado nessas localidades. O Pronaf e as necessidades sociais dos ribeirinhos assentados Uma das estratégias das associações de moradores da Flona para conseguirem estruturar-se foi a de reunir e discutir sobre o crédito fomento do Pronaf que deveria ser recebido pelos assentados para a aquisição de bens de consumo coletivo. Esse processo desencadeou práticas de participação e gestão coletivas pelas necessidades sociais das comunidades. De início foi feito um levantamento dos instrumentos necessários que cada família gostaria de receber. Com base nos produtos listados e de suas respectivas quantidades, os técnicos do INCRA e do IBAMA coordenaram um processo de concorrência pública simplificada entre os comerciantes locais, pela tomada de preço por carta convite. Dos R$ 2,4 mil que cada família receberia na forma de alimentos e equipamentos de trabalho, R$ 400 foram destinados a essas aquisições de bens de consumo coletivo. Dependendo de tais necessidades as comunidades optaram, sempre por intermédio das associações de moradores, a adquirir barcos e uma balieira (canoa motorizada). Outras preferiram comprar de um flutuante. Aqui se discutiu e se divergiu sobre o local onde o flutuante deveria ser fixado: se na comunidade-sede da associação, para estocar a produção de farinha, ou na cidade de Tefé, para servir de local de hospedagem àqueles que necessitarem pernoitar lá. Outros moradores assentados preferiram construir uma sede para associação. Outros preferiram equipamentos, pois no caso dos moradores da Vila Sião e do entorno já contavam com uma embarcação da Assembleia de Deus, cujos custos ajudavam a pagar. Além disso, já dispunham elas de um barco-recreio da Prefeitura de Alvarães, que semanalmente cruza o rio Bauana, indo e vindo da sede do município de Tefé. Por isso, lá, 49

houve apenas dois projetos de aquisições conjuntas: de uma balieira, já realizado, e de um flutuante, ainda em processo de compra. A escolha das mercadorias que concretizariam o crédito fomento, porém, não era completamente livre: teve ela como limite uma lista de produtos previamente definida pelos técnicos do INCRA e do IBAMA, com consulta aos presidentes das associações. No Mulato, Vila Sião e São Sebastião os informantes puderam escolher entre os seguintes produtos para compor o valor total do crédito fomento a que tinham direito: forno de torrar farinha, motor rabeta, tarisca ou bola (roda de ralar a mandioca), bota, enxada, terçado e motosserra. No Mulato, todos os informantes foram unânimes em afirmar que esses equipamentos melhoraram suas condições de trabalho: Um forno desse, para comprar com trabalho, seria R$ 700,00. No caso, ganhamos de mão beijada (entrevista, comunidade Mulato, 2006). O fato de os moradores, em sua maioria, já possuírem os instrumentos distribuídos pelo INCRA não foi considerado desvantajoso por eles. Apesar de esses investimentos nos bens de consumo coletivos terem sido discutidos e aprovados nas assembleias das associações de moradores, registrados em atas, alguns assentados perceberam a contribuição como uma imposição: Não dei, eles tiraram; o plano foi deles. O plano já veio de cima (entrevista, comunidade São Sebastião, 2006). Na Vila Sião, essa queixa também foi registrada: Eles que queriam comprar, a gente nem sabia. O dinheiro não tava na mão da gente, mesmo. O jeito foi aceitar (entrevista, comunidade Vila Sião, 2006). Na Flona de Tefé ainda não existe Acordo de Pesca, embora seus rios e lagos sejam frequentados por muitos pescadores profissionais do médio Solimões. Para tentar tirar benefício dessa atividade, as associações fizeram um acordo informal com a Colônia de Pescadores de Tefé para divisão do pescado capturado dentro da unidade. Pelo trato estabelecido, cuja negociação contou com acompanhamento do IBAMA, parte dos peixes coletados próximo às comunidades deve ser doada aos moradores, exclusivamente para alimentação deles. Nas comunidades os moradores assentados dedicam a maior parte do dia à agricultura familiar, restando pouco tempo para a pesca. No período de enchente dos rios dificulta a captura dos peixes, e o pescado distribuído pelos pescadores profissionais contribui para o 50

sustento das famílias embora não se possa contar somente com ele, uma vez que não é possível prever quando haverá um barco pesqueiro passando pelo local. AS NOVAS MORADIAS: MUDANÇAS CULTURAIS E AMBIENTAIS Toda família recém-assentada pela política nacional de reforma agrária tem direito ao crédito implantação modalidade habitação, que atualmente correspondente a R$ 5 mil. Esse valor não é distribuído em espécie, mas na forma de materiais e serviços para a construção de uma casa. A ideia do crédito é oferecer ao assentado que ali vivem ou está chegando ao local a possibilidade de erguer uma moradia Assim, na Flona de Tefé, para receber o crédito habitação as famílias foram obrigadas a construir uma casa nova, seguindo o modelo proposto pelos engenheiros do INCRA. O modelo da casa deveria ser padronizado e deveria ser seguido por todos. A padronização serve como sinal diacrítico de reconhecimento da comunidade como uma área beneficiada pela política de reforma agrária ou seja, como uma divulgação das ações do governo federal. Na Flona de Tefé, a proposta elaborada pelo engenheiro do INCRA foi de uma casa de madeira, de oito metros de largura por 10 de comprimento, divididos entre varanda, sala, cozinha, dois quartos, despensa e banheiro. Essa planta básica poderia ser modificada internamente, desde que fossem respeitados o tamanho mínimo, a existência de banheiro e a fachada. A maior parte das construções antigas da Flona de Tefé tinha teto de brasilite ou, em menor número, de palha. Mas as moradias construídas com o crédito modalidade habitação do INCRA, necessariamente, usaram o alumínio nas suas coberturas, o que desagradou parte dos moradores, em função do barulho ocasionado durante as chuvas mais fortes. A construção de novas casas transforma a paisagem nas comunidades e impõe novos hábitos com o processo de assentamento da reforma agrária, ainda em andamento. No Mulato, 75% dos entrevistados destacaram as casas novas em suas respostas: A comunidade aumentou, as casas são de mais valor. Morava mais de uma família na mesma casa e agora separou. Teve também a melhoria de transporte. Tinha gente que ia morrer e não ia conseguir um motor nem uma casa dessas (entrevista, comunidade do Mulato, 2006). 51

A nova moradia é um fator de motivação dos moradores na busca por outras melhorias de infraestrutura: Muita gente nunca tinha sonhado de ter uma casa boa, confortável. Tinha gente que nem casa tinha, morava com os outros. Eu acho que nem na cidade não é todos que têm uma casa dessas. Tá todo mundo mais animado morando na casa nova (entrevista, comunidade do Mulato, 2006). Além disso, para os moradores veem isto como sinal de modernidade: As comunidades eram mais desorganizadas, agora estão mais padronizadas. De primeiro, as casas eram mais primitivas (entrevista, comunidade do Mulato, 2006). Entre os povos tradicionais da Amazônia, especialmente na zona rural do médio Solimões, é costume das famílias subirem e descerem o rio. Nesse processo, é comum que as famílias desmanchem suas casas de madeira e carreguem consigo o material da construção, para com ele erguer novamente a moradia em uma outra comunidade. Mas as casas construídas com crédito habitação não podem ser removidas, Por isso, aquelas famílias que não haviam recebido o crédito habitação: Se não vier (a casa nova, que eles ainda não receberam) é até bom, porque é uma casa que a gente não pode vender, não pode desmanchar para levar para outro canto (entrevista, comunidade do Mulato, 2006). O processo de assentamento provoca mudança nos costumes e na cultura das famílias nas zonas rurais. A não existência de banheiros no interior das casas da zona rural da Amazônia, até mesmo aquelas construídas nas terras firmes, é um fator importante na análise do cotidiano dos moradores, que costumam fazem as suas necessidades fisiológicas atrás das árvores (durante a seca) ou diretamente no rio (na época da cheia). Por isso, na Flona de Tefé, a exigência do INCRA em se ter banheiro nas casas construídas com crédito habitação está modificando alguns hábitos dos moradores do Mulato, Vila Sião e São Sebastião. A construção de banheiros no interior das casas foi avaliada positivamente pelos ribeirinhos assentados. Entre as melhorias que eles destacaram está o fato de não precisarem mais se molhar para irem na casinha quando está chovendo e a diminuição do risco de serem picados por animais peçonhentos, especialmente à noite: Isso toda a vida eu sonhei. Não tem coisa melhor. As crianças acordam de noite sem ter que andar no mato (entrevista, comunidade do Mulato, 2006). A melhora na limpeza e no odor da comunidade, contribuindo para a saúde dos moradores, também foram lembradas pelos assentados: A gente já queria 52

fazer, mas não tinha orientação. O banheiro de casinha atrai moscas e ajuda a espalhar os vermes (entrevista, comunidade de Vila Sião, 2006). O funcionamento dos banheiros ainda é precário, porque não há sistema de encanamento de água, uma responsabilidade do poder municipal. Segundo relato dos informantes, as obras de canalização da água na Flona de Tefé foram um dos compromissos assumidos pelo atual prefeito de Alvarães durante sua campanha para eleição promessa, entretanto, ainda não efetivada: O lado ruim é que tem de buscar água. O prefeito prometeu encanar e estamos esperando. Mas ele só deve fazer isso no fim do mandato, durante a campanha (entrevista, comunidade de Vila Sião, 2006). Desse modo, alguns dos moradores continuam a fazer sua higiene pessoal diretamente no rio e são obrigados a carregar água nos baldes para efetuar a descarga do vaso sanitário. As casas financiadas pelo crédito habitação foram construídas, em sua maioria, pelos próprios moradores, geralmente com esforço do seu núcleo familiar com auxílio de serradores e marceneiros profissionais. As três associações de moradores da Flona participaram ativamente do processo de construção das novas moradias. Foi na conta bancária delas que o Incra depositou o valor relativo ao crédito habitação das famílias cadastradas, para que, após um processo simplificado de licitação, fossem comprados os materiais de construção. O pagamento dos serradores e marceneiros contratados para atuar nas obras também se deu por meio das associações: no início, por orientação dos gestores do INCRA e do IBAMA, o dinheiro era repassado diretamente pelo presidente de cada associação aos trabalhadores. Mas, aos poucos, esse procedimento se mostrou inviável, não apenas em termos de logística, mas também de fiscalização: por falta de acompanhamento da pessoa que estava realizando o pagamento, alguns mestres de obras trabalharam sem receber e outros receberam sem terem concluído o trabalho. FINALIZANDO: A REFORMA AGRÁRIA UM PROCESSO EM RECONSTRUÇÃO DE UMA CONSCIÊNCIA ECOLÓGICA A reforma agrária na Flona de Tefé é um processo social e, como tal, ainda em construção. Os registros feitos aqui, portanto, não são conclusões fechadas sobre fatos 53

predefinidos, mas uma leitura preliminar de um movimento, apontando caminhos para o seu entendimento presente e contribuindo, dessa forma, com sua construção futura. A apropriação do conceito de desenvolvimento sustentável pelo discurso oficial muitas vezes cumpre o papel de legitimar a expansão do capitalismo em áreas como a Flona de Tefé, nas quais a natureza não foi completamente degradada e onde as formas de produção ainda são consideradas mercantis. As políticas de desenvolvimento ditas sustentáveis, ora em vigor, parecem oscilar entre o meio ambiente restritivo e o meio ambiente lucrativo, ainda sendo pouco vistas como a expressão de uma luta social e política (ACSEBRAD, 1995). É preciso examinar, pois, as contradições ideológicas, sociais e institucionais do discurso da sustentabilidade, para que ele não sejam apenas retórico, um enverdecimento do estilo atual de desenvolvimento, como sugere Guimarães (1997). Para modificar-se a relação entre os homens e a natureza é preciso alterar a relação dos homens entre si. A superação da pobreza e a satisfação das necessidades básicas de alimentação, saúde e habitação são metas fundamentais para a construção de um modelo de desenvolvimento que respeite o tempo de reprodução da natureza. Desde o Relatório Brundtland, de 1987, já se preconizava que problemas do meio ambiente não podiam mais ser dissociados dos problemas do desenvolvimento. Cada vez mais ganhava força a percepção de que as consequências de como os seres humanos utilizam os recursos naturais do planeta revelam a estrutura e o padrão de relações sociais entre os próprios seres humanos. Nesse sentido, tentam caminhar as experiências da chamada reforma agrária ecológica, ao conceberem a política ambiental pela garantia do direito ao território das chamadas populações tradicionais, valorizando o papel socioambiental da terra de proteção do meio ambiente e das culturas a ele associadas (LEROY e PACHECO, 2003/04). A política ambiental do governo brasileiro vem, nos últimos 25 anos, deslocando-se do preservacionismo para o socioambientalismo. Esse movimento, embora positivo, traz em si o risco de que as estratégias e ações do Estado e das organizações não-governamentais congelem os pequenos produtores familiares no papel de guardiões da floresta, não reconhecendo como direitos suas aspirações por melhores condições de infraestrutura, saúde e educação. O cadastramento dos moradores e atuais assentados da Flona de Tefé, como assentados, está ligado à idealização da chamada cultura tradicional, mas também é fruto do processo de organização dos trabalhadores extrativistas da Amazônia Ocidental. No convênio 54

entre INCRA e IBAMA, as pessoas que vivem na Flona de Tefé saíram da invisibilidade a que estavam condenadas e passaram a ser vistas pelos agentes estatais como pessoas portadoras de direitos. Não por acaso, a Rede Grupo de Trabalho Amazônico (Rede GTA), que reúne aproximadamente 600 movimentos sociais, sindicatos e associações, considera que a experiência da Flona de Tefé deve ser replicada para outras áreas protegidas da região. Mas os líderes do Movimento dos Sem-Terra (MST) argumentam que a chamada reforma agrária ecológica representa um mero processo de regularização fundiária, por meio do qual o governo federal maquia as estatísticas oficias de famílias assentadas. De fato, a principal característica desse modelo adotado na Amazônia é o processo de regularização fundiária diferenciado: no lugar da distribuição de terras a colonos está o reconhecimento do direito de posse e uso de pessoas que já habitavam a região. Na Flona de Tefé, porém, apesar de o processo de reforma agrária não estar concluído, diversas melhorias de infraestrutura estão sendo percebidas pelos moradores como resultantes desse processo. Entre as principais, destacadas durante a pesquisa, estão: a construção das novas moradias (com banheiro) que vem modificando os hábitos e a cultura e, sem dúvida, deixam de poluir os rios, uma vida mais sustentável e as aquisições de bens de consumo coletivo feitas pelas associações de moradores, tais como a compra de barcos regionais e balieiras. A luta socioambiental era realidade para os moradores da Flona de Tefé desde a década de 60 (ainda que não fosse assim denominada por eles nem por seus analistas). Apesar disso, a política nacional de meio ambiente, com sua estratégia de criação de áreas protegidas, só começa a ganhar sentido em suas vidas com a existência de políticas públicas voltadas para os moradores das unidades de conservação. Em outras palavras: as ações da política nacional de reforma agrária, as restrições legais características de uma área protegida e a cogestão da unidade passam a fazer parte do cotidiano dos moradores da Flona de Tefé: Antes de ser apreciado pelo projeto do INCRA, as pessoas não tinham nenhum interesse, não davam muita importância para a preservação. Hoje, os próprios moradores já estão exigindo que a gente seja mais rígido, não deixe o pessoal de fora invadir (entrevista, comunidade de São Sebastião, 2006). Como consequência desse processo de implementação efetiva da unidade de conservação, os informantes do Mulato, São Sebastião e Vila Sião começam a identificaremse como moradores da Flona de Tefé e como protagonistas no seu contínuo processo de 55

implementação. Talvez a maior mudança que a chamada reforma agrária ecológica tenha trazido aos assentados, até o momento, não seja material, mas identitária. Utilizamos aqui o conceito de identidade como uma estratégia organizativa, um modo de construir sentidos que influencia e organiza nossas ações e a concepção que temos de nós mesmos (HALL, 2005). Mas para que esse protagonismo se efetive ainda há inúmeros obstáculos. Os presidentes das três associações de moradores da Flona sofrem cobrança dos gestores federais para que atuem diretamente na fiscalização de crimes ambientais praticados na área, sem que tenham condições financeiras, de infraestrutura ou de segurança para exercer essa atividade. Durante o levantamento socioeconômico-ambiental realizado pelo IBAMA, ao longo de 2003, ficou evidente que não há extração sistemática de madeira na unidade: de 30 pessoas indagadas sobre se tinham visto balsas carregando madeira nos últimos 12 meses, apenas quatro (13%) responderam que tinham visto uma ou duas vezes (IBAMA, op. cit). Mas os moradores assentados relataram que muitos invasores caçam e pescam ilegalmente na Flona de Tefé e que a falta de um sistema de comunicação imediata das comunidades entre si e com a sede dos municípios vizinhos impede a notificação dessas ocorrências em tempo hábil. Além disso, eles estão cientes de que sofrem maior risco de morte que os fiscais profissionais, por viverem na área do conflito e não contarem com proteção policial, pondo em perigo inclusive membros de sua família. Outro entrave ao exercício da fiscalização comunitária na Flona de Tefé é a falta do Plano de Manejo da unidade. Sem esse importante documento de zoneamento a discussão sobre acordos de pesca e a divulgação de regras mais claras para o uso dos recursos naturais da Flona ficam pendentes. Apesar de não concluído, entretanto, o processo de elaboração participativa do plano já começa a apresentar efeitos no discurso dos agricultores: A mata representa a floresta amazônica. Devemos preservar a natureza porque ela é nossa mãe, sem ela as coisas certamente ficarão mais difíceis. A morte da floresta é o fim da nossa vida (entrevista, comunidade do Mulato, 2006). Ao falar sobre o significado da floresta, os informantes revelam sua familiaridade com ela: Na floresta assim tem muita coisa que a gente sabe valorizar, muitas plantas. Se você trabalhar na sua terra, preserva uma madeira. Eu também acho muito bonito: tem terra firme que você entra e limpa, fica parecendo sítio (entrevista, comunidade de São Sebastião, 2006). Mas eles também indicam que têm consciência de que a floresta está em perigo e de que possuem um papel importante na sua 56

proteção: É como um desenho, algo muito importante de crescer, de ter as coisas dentro dela. Se a gente não procurar zelar, não vai ter futuro (entrevista, comunidade de Vila Sião, 2006). A criação de associações juridicamente constituídas, uma exigência formal do INCRA para a distribuição dos créditos, é outro efeito perceptível da ação do Estado vivenciada pelas comunidades. A constituição das associações de moradores dos rios Tefé, Bauana e Curumitá de Baixo foram percebida pelos moradores assentados, como algo positivo e a relacionaram aos benefícios que os créditos habitação e fomento trouxeram para suas comunidades. O processo de reforma agrária na Flona de Tefé, até o momento, ainda não teve efeitos significativos na produção e comercialização da farinha, fonte principal (quase sempre exclusiva) de renda das comunidades estudadas. Continua a predominar na região a cadeia de crédito e dívida alimentada por compradores de farinha que funcionam também como fornecedores de mercadorias industrializadas. É grande a expectativa dos informantes pela oportunidade de diversificar a produção e melhorar as condições de venda, baseado no acesso às linhas de crédito especiais do Pronaf. Para que essa possibilidade se viabilize é preciso que o Estado invista em consultorias para elaboração de projetos e assistência técnica agroflorestal, o que ainda não ocorreu. Estudiosos alertam que o associativismo formal e a distribuição de créditos podem provocar a inserção abrupta dos agricultores da Flona de Tefé no modo de produção capitalista e a perda da sua cultura. Mas como demonstrou Barth (2000), a identidade se fortalece na relação, não no isolamento. Por isso, apesar das inúmeras imposições da política nacional de reforma agrária, pudemos concluir que esses moradores estão buscando assumir o lugar de protagonistas no processo de reorganização socioprodutiva e reivindicando do governo condições materiais para que possam exercer esse protagonismo. É tênue o limite entre a participação social e a mera legitimação de ações governamentais é justamente por essa corda bamba que caminham os agricultores e extrativistas do São João do Mulato, Vila Sião e São Sebastião. 57

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