Trabalho Escravo contemporâneo no Brasil

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Transcrição:

Trabalho Escravo contemporâneo no Brasil Maíra Costa Etzel 2º semestre/2014 Introdução Estabelecer comparações entre o trabalho escravo contemporâneo e aquele encontrado na Roma Antiga ou no Brasil Colonial é uma prática comum, uma vez que em todos os períodos a submissão de uma pessoa a outrem é o elemento central. Enquanto a escravidão era política de Estado no período colonial, o trabalhador escravizado era mercadoria. Hoje, a legislação brasileira não permite que um ser humano seja comprado e vendido como uma propriedade, mas o processo de transição do trabalho escravo para o trabalho livre tampouco garantiu que os direitos mínimos aos recém-cidadãos fossem respeitados. O trabalhador já não é mais um objeto, porém ao se vender sua força de trabalho sob condições sub-humanas, ele é tratado como tal. A escravidão contemporânea está inserida na lógica do sistema econômico, não se trata de uma sobrevivência do passado. Mas de uma invenção do moderno sistema econômico (Martins, 2004, p. 64), em que moderno e o arcaico convivem e a existência de um não exclui a possibilidade de ocorrência do outro. Para continuar fazendo parte do sistema, o trabalho escravo torna-se um crime dinâmico, que se adapta de acordo com as condições objetivas que permitem sua permanência. Em uma economia globalizada, com a produção de bens cada vez mais pulverizada, as mercadorias consumidas no país podem ter sido produzidas por trabalho escravo, sem que haja controle ou responsabilidade direta de empresas ou grandes proprietários. Para obtermos uma dimensão do problema é preciso olhar para as relações de trabalho presentes nos elos das cadeias produtivas, um processo que se inicia na extração da matéria-prima e percorre diversas etapas e lugares, até a fase de distrinbuição da mercadoria. Este trabalho não irá estabelecer comparações com outros momentos históricos. Para não correr o risco de simplificar a compreensão do fenômeno, focaremos apenas nos aspectos da escravidão atual. 1

Breve histórico O assalariamento como forma específica de relação de produção, mantém a maior parte da população, que não tem propriedade dos meios de produção, refém da venda de sua força de trabalho. E, sabendo-se que o fim último do capital é a busca pelo lucro, caso não haja intervenção externa ou organização dos trabalhadores, a relação de assalariamento pode ultrapassar todos os limites estabelecidos pela lei. Qualquer país capitalista, que tenha a liberdade e a igualdade formal entre os indivíduos previstos em lei, é contrário ao trabalho escravo. No entanto, o fenômeno está presente em grande parte deles. Conforme Sales e Filgueiras (2013) explicam, esse tipo de relação no Brasil tem sua especificidade provinda de uma tradição autoriatária e da pessoalização das relações sociais, isso significa que fatores como falsas promessas, crença na dívida contraída e confiança no gato (nome dado ao aliciador dos trabalhadores), se fazem presente. No Brasil, o fenômeno começa a ganhar sua forma atual com o processo de ocupação da região norte do país, iniciado no período Vargas e ampliado durante a Ditadura Militar. O incentivo fiscal para produção e negócios agropecuários nas fronteiras amazônicas, combinou-se com uma forma específica de exploração da mão de obra, o estímulo ao capital privado atraiu diversas empresas, gerando um fluxo migratório de trabalhadores para a região e, por conta da distância e da censura, as condições de trabalho nas quais estes trabalhadores eram submetidos ficaram invisíveis aos olhos do governo e de grande parte da sociedade. A primeira denúncia pública a respeito da existência de trabalho escravo contemporâneo foi feita pelo bispo Pedro Casaldáliga, em 1971. Na chamada Carta Pastoral Uma Igreja da Amazônia em Conflito com o Latifúndio e a Marginalização Social, o bispo faz uma análise minuciosa da região e das condições nas quais peões e índios eram submetidos. A maior parte do elemento humano presente na Prelazia de São Felix do Araguaia no Mato Grosso, local onde Casaldáliga presenciou a situação degradante da população, que era composta por trabalhadores braçais, não provenientes da região e contratados para trabalhar nas fazendas. No relato, consta que o método de recrutamento destes trabalhadores se dava através de falsas promessas de salários, transporte e assistência médica gratuita, método utilizado até hoje pelos aliciadores de mão de obra escrava. 2

Foi apenas em 1995, por meio do então presidente da república Fernando Henrique Cardoso, que o país reconheceu formalmente a existência de escravidão no seu território. Esse reconhecimento foi o ponto de partida para que o Estado passasse a criar políticas públicas e atuar, de forma repressiva e preventiva, no combate ao trabalho escravo. Conceito Antes de adentrarmos nas políticas públicas existentes, é preciso entender o que é considerado trabalho escravo, segundo a legislação brasileira. O artigo 149 1 do Código Penal traz a definição e as maneiras de reduzir alguém à condição análoga de escravo. Segundo o artigo, são quatro os elementos que caracterizam o trabalho escravo: trabalho forçado, jornada exaustiva, condições degradantes de trabalho e servidão por dívida. Basta um elemento estar presente para que ocorra o crime. O trabalho forçado é exigido sob ameaça de qualquer punição, havendo o cerceio da liberdade do trabalhador; a jornada exaustiva refere-se à submissão a um ritmo de trabalho intenso, sem pausa ou descanso semanal, colocando em risco a saúde física ou mental do trabalhador, não se restringindo apenas ao número de horas trabalhadas. Exemplos de jornada exaustiva podem ser vistos principalmente em atividades laborais, cuja remuneração depende de maior produção diária, como o corte de cana ou o pagamento por peça nas oficinas de costura; as condições degradantes de trabalho são aquelas em que há o descumprimento dos direitos fundamentais do trabalhador, em que se constata a precariedade da higiene, segurança, saúde, moradia, alimentação, saneamento; a servidão por dívida é o último elemento que tipifica o crime, ocorre em situações nas quais o trabalhador contrai dívidas a partir de cobranças indevidas e não consegue pagá-las. Esse tipo de servidão é comum quando o empregador passa a cobrar a viagem do trabalhador (que na maioria das vezes é migrante), pelo uso de equipamento de proteção individual ou quando o trabalhador tem acesso apenas a um local de compras, em que os produtos são superfaturados. Com base nesta definição, existem dois elementos caracterizadores do trabalho escravo contemporâneo: a privação da liberdade do trabalhador e a anulação da sua 1 O artigo 149 existe desde 1940 e teve sua redação alterada em 2003. 3

dignidade 2. Na relação entre capital-trabalho a dignidade do ser humano é colocada em cheque em virtude da ambição pelo lucro, ela também é uma barreira à reprodução do capital, pois respeitá-la demanda dispêndio de recursos que não necessariamente implicarão retornos financeiros (Janes e Filgueiras, 2013, p.64). Importa ressaltar que a concepção de trabalho escravo contemporâneo está em constante disputa porque atinge setores e interesses divergentes da sociedade, não há consenso entre o que deve ser considerado como grave violação dos direitos trabalhistas e o que deve ser caracterizado como trabalho escravo. Existe um senso comum que acredita que se o trabalhador não estiver acorrentado ou sendo chicoteado, não é trabalho escravo, ou seja, quando falamos do tema, ainda existe uma forte representação da escravidão colonial. Ocorre que grande parte dos casos e dos resgates de trabalhadores se justifica por conta das condições degradantes de trabalho, pode não haver coerção física, mas [...] é análogo, pois são as mesmas condições, mas com base em outros mecanismos de coerção. Isso não torna o fato menos grave, pelo contrário, torna o fenômeno mais cruel, pois a coerção impessoal do mercado sugere que o trabalhador aceita a degradancia por opção, pois pretensamente livre (FILGUEIRAS E SALES, 2013) E, como no Brasil as competências trabalhista e penal são autônomas, não é incomum observar casos em que a justiça trabalhista considera trabalho escravo, enquanto no âmbito penal há o arquivamento do processo, ou seja, existem duas interpretações do mesmo fato, há cerca de quatro dezenas de casos que resultaram em condenações criminais por conta de trabalho escravo contemporâneo em um universo de mais de 3 mil fazendas fiscalizadas por denúncias relativas a esse crime e 42 mil trabalhadores libertados desde 1995 (Sakamoto, 2014). Políticas Públicas O Grupo Especial de Fiscalização Móvel, criado no mesmo ano do reconhecimento oficial da existência do problema no Brasil, é um dos principais instrumentos de repressão do trabalho escravo. Ligado ao Ministério do Trabalho e Emprego, é responsável por fiscalizar as 2 O conceito de dignidade da pessoa humana, extraído da obra de Immanuel Kant Fundamentação da Metafísica dos Costumes, passa pela a razão enquanto atributo exclusivo dos seres humanos, em oposição ao preço. 4

denúncias de trabalho escravo em todo território nacional. Composto por auditores fiscais e procuradores do trabalho, juntamente com policiais federais, cada ator possui um olhar e uma competência específica para tratar a questão. No momento do resgate, é efetuado o pagamento de salários e encargos aos trabalhadores, a inscrição no seguro-desemprego, além de receberem prioridade na fila do Programa Bolsa Família e serem, se assim quiserem, encaminhados aos seus locais de origem, ao empregador são aplicadas multas. Não é difícil imaginar que esta atuação encontra limites. Em um país com dimensões como o Brasil, os agentes do Estado encontram dificuldade para estarem presentes em todos os lugares e, a ação do Grupo Móvel se restringe, inicialmente, a uma punição administrativa dos empregadores e a libertação temporária dos trabalhadores. A Comissão Pastoral da Terra realizou uma análise dos dados do registro do Seguro- Desemprego entre os anos de 2003 e 2012, do total de trabalhadores resgatados neste período, 35,3% eram analfabetos e 38,4% possuíam um nível de instrução até o 5º ano incompleto. Sem qualificação, emprego regular, ou vínculo com sindicato, o trabalhador que precisa sobreviver e alimentar sua família não tem poder de barganha sobre a condição de trabalho que lhe é imposta. Segundo dados da OIT, 60% dos trabalhadores resgatados retornam à situação de exploração. A falta de oportunidade e a grande oferta de mão de obra encontram demanda e como a duração do tempo de trabalho é irregular e temporário, quando o trabalhador não tem mais utilidade ao empregador, ele é descartado até ser contratado por outro. Muito provavelmente, a condição do próximo trabalho irá permanecer a mesma. No que se refere à impunidade do explorador, há uma ferramenta pública, o Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições análogas à de escravo, conhecido como Lista Suja, que dá visibilidade aos empregadores de mão de obra escrava. Ao serem inseridos nesta lista, os nomes permanecem públicos por dois anos e são impedidos de receberem financiamento público. Trata-se de um instrumento que tem como efeito inibir o crime através da possibilidade de punição econômica. A lista separa empregadores que respeitam as leis trabalhistas daqueles não a cumprem, serve de referência aos bancos públicos para a concessão de créditos e, para que as empresas estabeleçam restrições comerciais aos inclusos da lista. 5

Na última atualização semestral do cadastro constavam 609 nomes, sendo 40% deles provenientes do Pará e sendo a pecuária a atividade com maior incidência na lista. Em dezembro de 2014 ela foi suspensa por liminar concedida por Ricardo Lewandowski, presidente do Supremo Tribunal Federal. Segundo a Comissão Pastoral da Terra, ao impedir a informação proporcionada pelo Cadastro, a dignidade do ser humano, valores sociais do trabalho, direito fundamental de acesso à informação são atacados e, ainda pode servir como estímulo à prática do crime, a partir da certeza da impunidade. Por enquanto, a decisão está sendo amplamente criticada por órgãos do governo e sociedade civil e, aguardando votação final. Por fim, vale mencionar a CONATRAE - Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, sediada na Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República e responsável pela articulação de ações em esfera nacional e principal instância que discute o tema. Em 2003 foram os responsáveis pela elaboração do Plano Nacional de Combate ao Trabalho Escravo - já em sua segunda versão, desde 2008- e seu respectivo monitoramento. Números do trabalho escravo O alojamento onde eles dormiam não possuía camas, nem colchões, não havia banheiro, e os empregados eram obrigados a utilizar um buraco no chão como vaso sanitário. Não havia água potável, e os alimentos, como carnes, eram mantidos sem refrigeração, pendurados em varais improvisados (SINAIT, 2013) A descrição acima compõe o relatório de fiscalização em uma fazenda de café, trata-se de um caso entre os 46.478 resgates que foram feitos desde 1995. Não existem estimativas exatas da quantidade de trabalhadores escravos no Brasil, ou no mundo, visto que é uma atividade ilícita, os dados são mais difíceis de serem coletados. Há, no entanto, informações relativas aos trabalhadores que foram resgatados e empregadores, que constam na Lista Suja. O quadro das operações de fiscalização abaixo retrata o número de trabalhadores resgatados por ano. Embora tenha aumentado ao longo do tempo, isso não representa necessariamente o aumento de trabalhadores submetidos a essas condições, mas sim, o aumento das fiscalizações. 6

Nº de Trabalhadores Ano operações resgatados 2013 179 2063 2012 141 2750 2011 170 2485 2010 142 2628 2009 156 3769 2008 158 5016 2007 116 5999 2006 109 3417 2005 85 4348 2004 72 2887 2003 67 5223 2002 30 2285 2001 29 1305 2000 25 516 1999 19 725 1998 17 159 1997 20 394 1996 26 425 1995 11 84 TOTAL 1.572 46.478 Quadro das operações de fiscalização para a erradicação do Trabalho Escravo SIT/SRTE 1995 a 2013 No ano de 2013, o MTE realizou o maior número de operações no país: 179, e 2063 resgatados. Pela primeira vez, a quantidade de trabalhadores regatados no meio urbano foi maior do que no rural. Concentrado em Minas Gerais e São Paulo, esse resultado se deu por conta do grande número de trabalhadores no setor da construção civil. 7

Considerações Finais O fenômeno não se restringe a um estado da federação ou a um setor econômico específico. A falta de eficiência ou prioridade do poder público, no que se refere a reduzir a vulnerabilidade do trabalhador através de políticas sociais, democratização do acesso à terra, apoio ao pequeno produtor, e programas de geração de emprego e renda nas áreas de aliciamento de trabalhador, educação profissionalizante, programas na área, contribui para a persistência do problema. A solução é mais complexa do que fiscalizar e libertar. Por estarem imersos em uma situação de vulnerabilidade social, a reincidência torna-se consequência esperada de uma libertação sem garantias reais de emancipação. Apesar dos trabalhadores regatados receberem três meses de salário do seguro- desemprego e terem prioridade para entrarem nos programas do governo, isso não é suficiente para gerar autonomia do trabalhador e reduzir a precariedade das condições de vida. Sem educação formal, emprego, ou acesso às políticas públicas, as oportunidades para o sustento próprio e da família tornam-se escassas e o problema permanece. Referência Bibliográfica BRASIL. Código Penal. Decreto-Lei nº 2.848, de 1940. São Paulo: Saraiva, 2005 BRASIL. Ministério do Trabalho e Emprego. (2012) Trabalho escravo no Brasil em retrospectiva: referências para estudos e pesquisas. BRASIL, Secretaria de Direitos Humanos. (2013). 10 anos de CONATRAE. CASALDÁLIGA, Pedro. Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social. Carta Pastoral, 1971. Disponível em: <http://www.prelaziasaofelixdoaraguaia.org.br/uma-igreja-na-amazonia/umaigreja.htm>. Acesso em nov 2014. FILGUEIRAS, V. A.; SALES, J.. Trabalho análogo ao escravo no brasil: natureza do fenômeno e regulação. Revista da ABET (Online), v. 12, p. 29, 2014. 8

MARTINS, José de Souza. (2004). A nova face da escravidão. Família Cristã. Ano 70, N. 82. RIBEIRO, Bruno Quiquinato. A dignidade da pessoa humana em Immanuel Kant. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3223, 28 abr. 2012. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/21605>. Acesso em: nov. 2014. SAKAMOTO, Leonardo. (2006) A economia da Escravidão. Disponível em:<http://reporterbrasil.org.br/2006/04/a-economia-da-escravidao/>. Acesso em nov 2014. THERY, Hervé; DE MELLO, Neli Aparecida; HATO, Julio; GIRARD, Eduardo Paulon. Atlas do trabalho escravo no Brasil. SP. Amigos da Terra - Amazônia brasileira, 2012. Disponível em: <http://amazonia.org.br/wp-content/uploads/2012/05/atlas-do-trabalho- Escravo.pdf>. Acesso em: nov 2014. 9