O ACOLHIMENTO DOS REFUGIADOS NO BRASIL: políticas, frentes de atuação e atores envolvidos



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Transcrição:

JULIA BERTINO MOREIRA Pesquisadora do projeto Condições de Vida da População Refugiada no Brasil, coordenado pela Profa. Rosana Baeninger do NEPO/ UNICAMP, em parceria com ACNUR, Cáritas SP/ RJ e com recursos da Secretaria Especial de Direitos Humanos Doutoranda em Ciência Política (UNICAMP), Mestre em Relações Internacionais (Programa San Tiago Dantas/ UNICAMP), Graduada em Ciências Sociais (UNICAMP) e Direito (PUC-SP). O ACOLHIMENTO DOS REFUGIADOS NO BRASIL: políticas, frentes de atuação e atores envolvidos CAMPINAS 2007

RESUMO Os refugiados são indivíduos compelidos a fugir de seus países de origem, em decorrência de conflitos armados e outras situações de violência, rumo a outros Estados, em busca de proteção. A questão dos refugiados ganhou destaque no cenário internacional no pós-guerra, quando se estabeleceu um órgão subsidiário no âmbito da ONU para proteger esse grupo: o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR). Também foi elaborado o principal instrumento internacional em matéria de refugiados: a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951. O Brasil se inseriu nesse contexto internacional voltado para os refugiados, mas sua atuação se destacou especialmente após a redemocratização política. Em 1997, foi elaborada uma legislação nacional sobre refugiados, que trouxe uma definição de refugiado considerada avançada, criou o Comitê Nacional para Refugiados (CONARE) e estabeleceu o reassentamento como solução durável para refugiados. Atualmente, vale registrar que o Brasil acolhe o maior número de refugiados da América do Sul e possui programas de reassentamento. Tendo esse panorama em mente, o presente trabalho pretende analisar o acolhimento dos refugiados no Brasil, observando as políticas adotadas, as frentes de atuação e o desempenho dos atores (ACNUR, governo brasileiro e sociedade civil) envolvidos nesse processo, bem como apresentar dados sobre o número e a origem refugiados e solicitantes de refúgio no Brasil. INTRODUÇÃO As notícias sobre grandes fluxos migratórios, veiculadas em jornais e revistas de todo o mundo, vêm chamando atenção para esses indivíduos que são obrigados a deixar seus países de origem, por diversos motivos, e a se dirigir para outros Estados. Dentre os grupos de pessoas que se deslocam, merecem destaque os refugiados, que são forçados a abandonar seus lares em situações de conflitos, por questões religiosas, étnicas, políticas ou econômicas, dentre outras. Os conflitos colocam em risco a vida, liberdade e segurança da população civil, ou, ainda, grupos e indivíduos que apresentam etnias ou religiões minoritárias em seu país ou opiniões políticas diversas do governo, estando sujeitos, assim, a sofrer ameaças ou 1

efetivas perseguições. A violência desencadeada pelos conflitos também gera violações aos direitos humanos dos civis atingidos, que passam a necessitar de ajuda humanitária internacional. A título de exemplificação, a ONU calcula que a guerra no Iraque, iniciada em 2003, levou mais de 2 milhões de pessoas a fugir do país e estima em 60 milhões de dólares a quantia necessária para prestar assistência humanitária a todos os deslocados pelo conflito (ACNUR, 2007a). O reflexo dos deslocamentos forçados é uma população refugiada atual de, aproximadamente, 12,7 milhões de pessoas 1 (ACNUR, 2006, p. 6; UNRWA, 2006). Diante desse elevado número e das razões que levam as pessoas a se deslocar, as quais se acirram no mundo, o problema dos refugiados afeta as relações internacionais e impele países e organizações internacionais a buscar soluções para essa difícil questão. No que diz respeito às soluções duráveis implementadas para os refugiados, são elas: a repatriação voluntária, a integração local e o reassentamento. Através da primeira, o indivíduo é mandado de volta ao seu país; por meio da segunda, é acolhido pelo país no qual ingressou, após ser reconhecido como refugiado; e, pela terceira, é enviado a um terceiro país. A repatriação voluntária consiste na solução mais difícil, porém, na maioria das vezes, é desejada pelos refugiados, que pretendem retomar suas vidas em seus lares, onde encontram suas raízes e se identificam. Também é frequentemente almejada pelos países de acolhimento e incentivada pelo ACNUR, que busca o apoio destes e dos países de origem para auxiliar na operação. Todavia, ante as perseguições e efetivas violações dos direitos desses indivíduos, que os levaram a deixar seus Estados de origem, o retorno não deve ocorrer se essas razões ainda subsistirem (MOREIRA, 2006, p. 41-42; ANDRADE, 1996a, p. 40). Por sua vez, a integração local possibilita ao refugiado reconstruir sua vida em outro país, que conta com o auxílio (inclusive financeiro) do ACNUR para promover esse processo de inserção. Porém, esta solução também acarreta algumas dificuldades no tocante à adaptação do refugiado à nova sociedade na qual 1 Esse número foi obtido somando-se os 8,4 milhões de refugiados protegidos pelo ACNUR aos 4,3 milhões de refugiados palestinos no Oriente Médio protegidos por outra agência da ONU, a United Nations Refief and Works Agency for Palestine Refugees in the Near East (UNRWA). Do total de 8,4 milhões de refugiados, cerca de 3,2 milhões se encontram na Ásia, 2,7 milhões, na África, 1,7 milhão, na Europa, 526 mil, na América do Norte, 80 mil, na Oceania e 37 mil, na América Latina (ACNUR, 2006, p. 6). Por sua vez, dos 4,3 milhões de refugiados palestinos, em torno de 1,8 milhões se encontram na Jordânia, 993 mil, na Faixa de Gaza, 705 mil, na Cisjordânia, 434 mil na Síria e 405 mil, no Líbano (UNRWA, 2006). 2

será inserido, uma vez que esta pode representar uma cultura (com hábitos, crenças e tradições) diversa da de sua origem. Ao mesmo tempo, a comunidade local pode não se revelar receptiva aos refugiados, sobretudo em virtude das diferenças culturais entre eles (ANDRADE, 1996a, p. 40-41, MOREIRA, 2006, p. 39). Por fim, o reassentamento se trata da transferência do refugiado, em razão de uma série de fatores, para um terceiro país, onde deverá ser inserido. Dentre eles, destacam-se: o país de acolhida abriga um grande contingente de refugiados e não tem condições de prover assistência a todos; o país no qual o indivíduo ingressou decidiu não acolhê-lo; a vida do refugiado se encontra em risco no país de acolhida, seja porque este não consegue fornecer o tratamento médico ou medicamento de que necessita, seja porque continua sofrendo ameaças ou perseguições neste; o refugiado não conseguiu se adaptar ao país de acolhimento ou deseja se reunir a familiares que residem em outro país (ANDRADE, 1996a, p. 40; MOREIRA, 2006, p. 40). OS REFUGIADOS NO CONTEXTO INTERNACIONAL A Segunda Guerra Mundial (1939-1945) constitui um importante marco histórico em relação ao tema dos refugiados, tendo em vista que mais de 40 milhões de pessoas provenientes da Europa se deslocaram por ocasião da guerra (HOBSBAWM, 1995, p. 58). Diante dessa situação no continente europeu, as movimentações de pessoas começaram a causar uma preocupação internacional, principalmente aos países aliados (EUA, URSS, França e Reino Unido) (ACNUR, 2000, p. 13). Assim, em 1951, a ONU decidiu criar um órgão subsidiário responsável pela proteção dos refugiados e por encontrar soluções para eles, existente até hoje: o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) (ACNUR, 2000, p. 13-19). Também celebrou o primeiro e principal instrumento internacional referente aos refugiados: a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados, que trouxe a definição de refugiado, conhecida como clássica, aplicável a qualquer pessoa 3

que, em conseqüência dos acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951, e receando com razão ser perseguida em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou das suas opiniões políticas, se encontre fora do país de que tem a nacionalidade e não possa ou, em virtude daquele receio, não queira pedir a proteção daquele país; ou que, se não tiver nacionalidade e estiver fora do país no qual tinha a sua residência habitual após aqueles acontecimentos, não possa ou, em virtude do dito receio, a ele não queira voltar (ACNUR, 1996a, p. 61). De acordo com a Convenção, os termos acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951 poderiam ser entendidos de duas maneiras: em primeiro lugar, como aqueles que tiveram lugar na Europa (o que ficou conhecido por reserva geográfica); e, em segundo lugar, como aqueles que tiveram lugar na Europa ou fora desta. A Convenção previa que caberia ao Estado contratante adotar uma dessas fórmulas, mediante declaração feita quando da assinatura, adesão ou ratificação do instrumento. Além disso, a qualquer momento, o Estado que tivesse adotado a primeira fórmula (mais restritiva) poderia, mediante comunicação ao Secretário-Geral da ONU, adotar a segunda delas, que abarcava um grupo maior de pessoas na definição de refugiado (ACNUR, 1996a, p. 62). Ainda em 1951, foi criado o Comitê Consultivo para Refugiados, estabelecido pelo Conselho Econômico e Social da ONU (ECOSOC). Este escolheu para fazer parte do Comitê Consultivo quinze Estados que haviam recebido grande contingente de refugiados gerados pela Segunda Guerra Mundial e demonstrado interesse e devoção para solucionar seus problemas. Pouco depois, em 1957, a Assembléia Geral da ONU decidiu criar o Comitê Executivo do ACNUR, que foi estabelecido pelo ECOSOC em 1958, iniciando suas atividades em 1959 (ACNUR, 2001). No decorrer da década de 1960, outros acontecimentos despontaram no cenário internacional, como a descolonização afro-asiática, gerando novos fluxos de refugiados. Em face disso, em 1967, foi elaborado o Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados. Este buscou pôr fim à chamada reserva temporal da Convenção, a qual estabelecia que só seriam reconhecidos como refugiados aqueles que tinham receio de serem perseguidos em conseqüência dos acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951 (ACNUR, 1996b, p. 85; Idem, 2000, p. 56-59). Já as décadas de 1970 e 1980 foram marcadas por regimes ditatoriais em países da América Latina, que foram palco de conflitos armados por motivos políticos, provocando um movimento de mais de 2 milhões de deslocados 4

(ANDRADE, 1998, p. 400). Nesse contexto, em 1984, foi elaborada a Declaração de Cartagena, que trouxe uma definição ampliada de refugiado. Através desta, incluíram-se pessoas que deixaram seus países porque sua vida, segurança ou liberdade foram ameaçadas em decorrência da violência generalizada, agressão estrangeira, conflitos internos, violação maciça dos direitos humanos ou outras circunstâncias que perturbaram gravemente a ordem pública (DECLARAÇÃO, 2001, p. 426). OS REFUGIADOS NO BRASIL Políticas para refugiados No tocante ao tratamento dos refugiados pelo Brasil, durante o período do pós-guerra, o país assinou a Convenção de 1951 no ano seguinte à sua elaboração, quando aderiu à reserva geográfica, e a ratificou em novembro de 1960. Além disso, recebeu cerca de 40 mil europeus em 1954. O Brasil foi escolhido pelo ECOSOC para fazer parte do Comitê Consultivo do ACNUR em 1951 e é membro original de seu Comitê Executivo, desde 1957 (ACNUR, 2003; Idem, 2005a; Idem, 2005c, p. 1; ZARJEVSKI, 1987, p. 211). Durante a ditadura militar (1964-1985), muitos brasileiros decidiram deixar o país, enquanto latino-americanos atingiam o território nacional em busca de refúgio. Com relação a estes, assim como a todos os não-europeus que chegavam ao país durante a década de 1970, em razão da adoção da reserva geográfica, era-lhes concedido apenas o visto de turista, que permitia a estadia provisória de noventa dias no país. Durante esse período, essas pessoas aguardavam para serem reassentadas em um terceiro país (ANDRADE, 1996b, p. 9-10; ALMEIDA, 2001, p. 119). A decisão de manter a reserva geográfica e de conceder estadia provisória aos não-europeus foi fruto de um acordo entre o governo brasileiro e o ACNUR, que iniciou sua missão no Brasil em 1977. Aproximadamente no final dos anos 70 e início dos 80, foi instalado um Escritório do ACNUR no Rio de Janeiro, que teve como função reassentar cerca de 20 mil sul-americanos (dentre eles, argentinos, uruguaios, chilenos e paraguaios) em outros países, principalmente da Europa, EUA, Canadá, Austrália e Nova Zelândia (ALMEIDA, 2001, p. 115-119; COMISSÃO 5

JUSTIÇA E PAZ, 1994, p. 47). Vale mencionar também que, em 1977, a Cáritas Arquidiocesana de São Paulo, instituição ligada à Igreja Católica, iniciou o atendimento a refugiados, recebendo os latinos até que o ACNUR conseguisse um país de reassentamento (SANTOS, 2003, p. 137-138). Em 1979, com a lei da anistia, exilados e refugiados políticos retornaram ao país. No mesmo ano, 150 vietnamitas foram abrigados em nosso território e, embora o governo não lhes tenha reconhecido a condição de refugiados, concedeulhes visto temporário de estadia, o que legalizava sua situação jurídica e permitia que trabalhassem legalmente no país. Além disso, no mesmo ano, dezenas de cubanos foram recebidos pelo país e assistidos pela Comissão de Justiça e Paz, em São Paulo (ALMEIDA, 2001, p. 120-121). A partir de 1984, permitiu-se a estadia de refugiados no território nacional por período não limitado, enquanto se aguardava o reassentamento em outros países (ANDRADE, 1996b, p. 9). Com a redemocratização política no plano interno, em 1986, com o auxílio do ACNUR, 50 famílias de fé Bahá í provenientes do Irã foram acolhidas pelo Brasil pela aplicação do estatuto de asilados (ALMEIDA, 2001, p. 122). Em 19 de dezembro de 1989, o Brasil retirou a reserva geográfica, passando a acolher refugiados de todos os continentes (ANDRADE, 1996b, p. 10; ALMEIDA, 2001, p. 124; COMISSÃO JUSTIÇA E PAZ, 1994, p. 47). Nesse contexto, consolidou-se o trabalho da Cáritas São Paulo com os refugiados (SANTOS, 2003, p. 138). Além disso, embora o governo não tenha assinado a Declaração de Cartagena, passou a aplicar a definição ampliada de refugiado contida nesse instrumento desde então (ALMEIDA, 2001, p. 148). Um exemplo se verificou entre os anos de 1992 e 1994, quando, aproximadamente 1.200 angolanos chegaram ao Brasil em busca de refúgio, em razão do período conturbado das eleições na Angola. Nesse momento, as autoridades nacionais decidiram aplicar a definição ampliada de refugiado contida na Declaração de Cartagena, já que os angolanos não se enquadravam na definição clássica, dada pela Convenção de 1951 (ALMEIDA, 2001, p. 126; ANDRADE, 1996b, p. 10). Em 1993, observou-se um salto com relação aos refugiados reconhecidos pelo país, passando de 322 para 1.042 o número de refugiados aqui acolhidos, após o recebimento de 720 angolanos. No ano seguinte, foi estabelecido o Centro de Acolhida para Refugiados pela Cáritas São Paulo (SANTOS, 2003, p. 139). 6

Pouco tempo depois, o Brasil foi o primeiro país da região a elaborar uma legislação específica sobre refugiados, a Lei Federal n. 9.474 de 1997. É importante salientar que se passaram 45 anos (contados da assinatura da Convenção de 1951) para que a questão dos refugiados fosse regulamentada internamente. Nesse ponto, vale mencionar que houve pressão por parte da sociedade civil, sobretudo da Cáritas, para que o projeto de lei, elaborado em 1996 por funcionários do ACNUR, fosse aprovado pelo Congresso Nacional (COMISSÃO JUSTIÇA E PAZ, 1994, p. 49; ANDRADE, 1996b). A lei brasileira para refugiados é considerada inovadora e avançada, sobretudo por sua definição de refugiado, que contempla tanto os motivos clássicos (dados pela Convenção de 1951) quanto os motivos ampliados de refúgio (dados pela Declaração de 1984) (MOREIRA, 2004, p. 47-52), transcrita a seguir: Será reconhecido como refugiado todo individuo que: I devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país; II não tendo nacionalidade e estando fora do país onde antes tece sua residência habitual, não possa ou não queira regressar a ele, em função das circunstancias descritas no inciso anterior; III devido à grave e generalizada violação de direito humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refugio em outro país (BRASIL, 1997). A Lei n. 9.474/97 também criou um órgão responsável para analisar e julgar o pedido de refúgio: o Comitê Nacional para Refugiados (CONARE), composto por representantes dos Ministérios da Justiça, das Relações Exteriores, do Trabalho, da Saúde, da Educação e do Desporto, do Departamento da Polícia Federal (DPF) e da Cáritas. O CONARE está atrelado ao Ministério da Justiça, que o preside (BRASIL, 1997). A mesma lei previu o reassentamento como solução durável para refugiados, estabelecendo em seu artigo 46 que: se efetuará de forma planificada e com participação coordenada dos órgãos estatais e, quando possível, de organizações não-governamentais, identificando áreas de cooperação e determinação de responsabilidades (BRASIL, 1997). Ademais, em agosto de 1999, o Brasil assinou um acordo com o ACNUR instituindo o Programa de Reassentamento Solidário, destinado a refugiados que continuaram sofrendo ameaças ou sendo perseguidos ou que não conseguiram se 7

adaptar ao primeiro país de refúgio (PNUD, 2004; ONU, 2007; PONTE NETO, 2003, p. 157-167). O primeiro grupo recebido pelo país era composto por 23 afegãos, que foram instalados em Porto Alegre em 2001. É de se salientar que essa operação de reassentamento teve a coordenação do CONARE, a participação do ACNUR e a colaboração da Associação Antonio Vieira do Rio Grande do Sul e do Centro de Orientação e Encaminhamento de Porto Alegre (CENOE). Dois anos depois, foram acolhidos mais 75 colombianos, provenientes da Costa Rica e do Equador, pelos estados do Rio Grande do Sul, Rio Grande do Norte e São Paulo (PNUD, 2004; ONU, 2007; DOMINGUEZ e BAENINGER, 2006, p. 6-7; PONTE NETO, 2003, p. 167). As operações de reassentamento são financiadas pelo ACNUR, de maneira que sua execução depende da disponibilidade de recursos desse organismo internacional. Dominguez e Baeninger (2006, p. 7) ainda registram que o Brasil não possui cotas anuais pré-fixadas para reassentados e que envia missões aos países de primeiro refúgio, para avaliar a viabilidade dos refugiados serem reassentados em território nacional. Em novembro de 2004, em reunião realizada na Cidade do México, para celebrar os vinte anos da Declaração de Cartagena, elaborou-se o Plano de Ação do México, adotado por vinte países da América Latina. Por iniciativa do governo brasileiro, criou-se o Programa Regional de Reassentamento Solidário, a fim de proteger os refugiados latino-americanos que fugiam de conflitos e perseguições na região e, ao mesmo tempo, ajudar os países que acolhem grande contingente de colombianos, como Costa Rica e Equador. Este programa atualmente beneficia cerca de 200 refugiados, sendo a maioria colombiana (ACNUR, 2004; Idem, 2006a, p. 17; ONU, 2007). Diante disso, vale ressaltar que o Brasil é o 12º país que mais reassenta refugiados no mundo (ACNUR, 2004; Idem, 2006a, p. 17). Recentemente, foi noticiado que, até julho deste ano, mais um grupo de 100 palestinos, que viviam num campo de refugiados na Jordânia, será beneficiado pelo Programa de Reassentamento Solidário (ONU, 2007). Nesse ponto, é interessante notar que o ACNUR considera o Brasil um líder regional em matéria de refugiados, com a capacidade de ajudar a prevenir a intensificação de conflitos na região que possam resultar em novos fluxos de 8

refugiados. Também reconhece o seu comprometimento com a proteção dos refugiados e entende ser exemplar o tratamento desses indivíduos no país, tanto em termos de legislação quanto dos esforços empregados para sua integração (ACNUR, 2005b). Por fim, o Brasil abriga a maior população refugiada na América do Sul, em torno de 3.458 pessoas, e recebeu 195 solicitações de refúgio (com base na estatística de 2005). A maioria dos refugiados acolhidos no país provém da Angola, perfazendo 1.751 indivíduos. Em seguida, aparece a Colômbia, com 360 refugiados, depois a Libéria, com 261, República Democrática do Congo, com 207 e Serra Leoa, com 135. Já os solicitantes de refúgio são, na maioria, colombianos, totalizando 137 pessoas, seguidos pelos congoleses (88), pelos cubanos (61), angolanos (59) e peruanos (47) (ACNUR, 2007b, p. 270-271; MOREIRA, 2005, p. 67-69) (vide tabelas, p. 18-19). O acolhimento aos refugiados No Brasil, o acolhimento dos refugiados é realizado preponderantemente pela sociedade civil, que têm se mobilizado para integrar esses indivíduos no país. Diante disso, merece destaque o trabalho da Cáritas como Centro de Acolhida para Refugiados, a qual auxilia solicitantes de refúgio, desde que chegam ao país, e refugiados já reconhecidos. A instituição, ligada à Igreja Católica, encontra-se instalada nas duas maiores capitais brasileiras: São Paulo e Rio de Janeiro. A Cáritas, ao funcionar como centro de acolhida para refugiados, atua como mandatária do ACNUR no Brasil, organismo responsável pela proteção dos refugiados no âmbito internacional. Diante disso, cabe a este organismo internacional supervisionar e fiscalizar o trabalho realizado pela instituição brasileira. Tais funções decorrem da necessidade de que todas as instituições (sejam governamentais ou não-governamentais) de acolhida para refugiados tenham uma linha de conduta ao menos semelhante internacionalmente. E, para tanto, devem seguir as determinações do ACNUR. Nesse sentido, há um convênio celebrado entre eles, estipulando obrigações a serem cumpridas por ambos, como, por exemplo, a Cáritas deve prestar contas de todas as despesas efetuadas, ao passo que o ACNUR deve repassar uma verba anual para esta, a fim de custear as suas despesas. 9

Além disso, a Cáritas conta com o apoio de outras instituições, com as quais estabeleceu parcerias, para implementar o acolhimento dos refugiados no país, que se dá através de três frentes de atuação: proteção, assistência e integração. Adiante, explicaremos como funciona esse processo a partir da experiência na Cáritas de São Paulo. Proteção A proteção está diretamente relacionada à situação jurídica do solicitante de refúgio no país de acolhida, que deve se submeter a um procedimento administrativo para ter a condição jurídica de refugiado reconhecida. Contudo, antes deste procedimento ser julgado, quando ainda estiver na situação de solicitante de refúgio, alguns direitos já lhe são concedidos de antemão, como o direito a um documento de identidade provisório e a uma carteira de trabalho provisória. O procedimento de refúgio foi regulamentado pela Lei Federal n. 9.747/97 e envolve as seguintes fases: a solicitação de refúgio; a instrução do processo; a decisão proferida pelo CONARE; e, caso esta seja desfavorável ao refúgio, a interposição de recurso e a decisão proferida em segunda instância (MOREIRA, 2004, p. 50-51). A primeira fase se inicia quando o estrangeiro, após ingressar (ainda que não documentado) no território nacional, apresenta-se à autoridade competente (normalmente, do DPF) e externa a sua vontade de solicitar refúgio. Diante disso, a autoridade o notifica para prestar declarações e informa o ACNUR sobre a existência de processo de solicitação de refúgio. O estrangeiro deve preencher um termo de declarações, contendo seus dados pessoais, as circunstâncias relativas à entrada no Brasil e às razões que o fizeram deixar o país de origem, podendo contar com a ajuda de um intérprete, caso seja necessário (MOREIRA, 2004, p. 51). Após isso, o estrangeiro também deve preencher a solicitação de refúgio, informando seus dados pessoais, as circunstâncias e fatos que fundamentam o pedido de refúgio e indicando, para tanto, provas pertinentes. Este documento é preenchido na Cáritas, com o auxílio de seus profissionais em consonância com o que estabelece a legislação brasileira. Recebida a referida solicitação, o solicitante e os membros de sua família são autorizados a permanecer no território nacional 10

até a decisão final do processo, pela aplicação da legislação de estrangeiros, e recebem uma carteira de trabalho provisória (MOREIRA, 2004, p. 51). Ainda nessa fase, é realizada uma entrevista entre o solicitante e os advogados que trabalham na Cáritas. Contratados mediante um convênio celebrado entre esta instituição, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) (a qual indica os profissionais habilitados para esse trabalho) e o ACNUR, eles atuam como se fossem advogados deste organismo internacional, visto que não são seus funcionários, mas o representam no Brasil. Em razão disso, pautam-se pela legislação nacional e pelos instrumentos internacionais referentes aos refugiados. Nesta entrevista, os advogados buscam averiguar se realmente é cabível o pedido de refúgio, colhendo as informações necessárias do solicitante. Ao final dela, elaboram um parecer jurídico, contendo: a) sinopse dos fatos, com base na entrevista realizada com o solicitante e nos dados que apontam a situação objetiva de seu país de origem, confrontando a realidade fática deste com aquela relatada pelo solicitante; b) fundamentação jurídica, estabelecendo-se a relação jurídica entre a situação do solicitante e os dispositivos da Lei Federal n. 9.474/97, bem como da Convenção de 1951 e de outros instrumentos internacionais em matéria de refugiados; e c) conclusão, pela concessão ou denegação do refúgio. Em seguida, começa a fase de instrução do processo de refúgio, em que o CONARE realiza diligências (a exemplo de entrevistas) para a averiguação dos fatos narrados pelo solicitante. Com o fim da instrução, a autoridade competente elabora um relatório e o encaminha ao Secretário do Comitê, para inclusão na pauta de sua próxima reunião. Para que esta seja realizada, é necessário que haja quorum de quatro membros do CONARE com direito a voto. Também participa da reunião o ACNUR, a convite do CONARE, com direito a voz, porém sem voto. Nesta, discutem-se os pontos principais sobre o caso do solicitante, bem como se delibera sobre a concessão ou denegação do pedido de refúgio. Em caso de empate, o voto decisivo será do representante do Ministério da Justiça. A decisão é notificada ao solicitante e ao DPF (MOREIRA, 2004, p. 51). Em se tratando de decisão positiva, o refugiado é registrado no DPF, onde assina termo de responsabilidade, solicita documento de identificação permanente (Carteira de Identidade de Estrangeiro), recebe carteira de trabalho permanente e um documento de viagem. Após seis anos contados do reconhecimento como refugiado, este pode requerer permanência no país de acolhida (Ibidem, p. 51). 11

De outro lado, em se tratando de decisão negativa do CONARE, o solicitante pode interpor recurso, no prazo de quinze dias, contados da notificação da decisão, e dirigido ao Ministro da Justiça. Para tanto, conta com o auxílio de uma advogada contratada pelo convênio celebrado entre a CÁRITAS e o ACNUR, que expõe as razões de seu inconformismo (Ibidem, p. 51). Por fim, tem lugar a última fase: a decisão final, proferida pelo Ministro da Justiça, que é irrecorrível. Se for mantida a decisão desfavorável ao refúgio, o solicitante ainda poderá permanecer no país, não devendo ser transferido ao seu país de origem, no caso em que sua vida, liberdade e integridade física estejam em perigo. Se este não existir, o indivíduo deverá ser deportado ao seu país (MOREIRA, 2004, p. 51). Assistência A assistência abrange direitos, concedidos aos solicitantes de refúgio e aos refugiados, referentes à saúde, alimentação e moradia. O primeiro diz respeito ao atendimento em hospitais públicos, garantido a todos os estrangeiros que se encontrem no Brasil pela Constituição Federal; e aos medicamentos, adquiridos com verba do ACNUR e fornecidos pela Cáritas, após avaliação individual da situação do solicitante de refúgio ou do refugiado. Vale mencionar que o CONARE destina uma verba anual concedida pelo governo para um programa de saúde mental para solicitantes (O ESTADO DE S. PAULO, 2007). Além disso, a Cáritas estabeleceu parcerias com o Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, que realiza arteterapia e atendimento psicológico, e com o Serviço Social do Comércio (SESC), instituição privada sem fins lucrativos de âmbito nacional, que oferece serviços de odontologia (SANTOS, 2003, p. 142-143). Já o segundo abrange o convênio, firmado entre a Cáritas e o SESC, que oferece refeição a baixo custo para solicitantes e refugiados. Aqueles recebem, ainda, um desconto de 60% do preço normal da refeição. Por fim, o terceiro se refere aos abrigos públicos, mantidos pela Prefeitura Municipal e pelo Governo do Estado de São Paulo, e aos albergues mantidos por outras instituições, com as quais a Cáritas celebrou convênios (como Arsenal da Esperança, Casa do Migrante e Casa das Mulheres) (O ESTADO DE S. PAULO, 2007). 12

Integração A integração no país de acolhida inicia-se com a solicitação de refúgio, tendo em vista que o solicitante, enquanto aguarda a tramitação legal do procedimento de refúgio, já procura se inserir na sociedade da qual passa a fazer parte. Isso se dá de duas maneiras: com o estudo do idioma do país (lembrando que muitos solicitantes provêm de países que têm como língua oficial o espanhol, o francês e, atualmente, o árabe) e com a sua inserção no mercado de trabalho. O SESC e a Cáritas oferecem aulas de português aos solicitantes e refugiados. Por sua vez, o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI) e o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (SENAC), instituições também privadas e sem fins lucrativos, oferecem cursos profissionalizantes apenas para os refugiados. A Cáritas procura incentivar a inserção dos refugiados no mercado de trabalho, através do programa do Centro Arquidiocesano do Trabalhador (CEAT), para que sua subsistência seja garantida e a ociosidade, combatida. Além disso, o SESC oferece acesso gratuito à internet, área de lazer e cultura, visando à integração cultural. Um caso de integração que vale ser citado é o dos 75 refugiados colombianos, que foram reassentados no Brasil em 2004. Para tanto, foram implementados programas visando à sua integração na comunidade local, que compreenderam cursos de língua portuguesa, capacitação profissional e assessoria para colocação em postos de trabalho. Além disso, o ACNUR prestou assistência aos refugiados de baixa renda, fornecendo auxílio para subsistência, moradia e transporte por período inicial limitado, e ofereceu programas de micro-créditos para refugiados que pretendiam montar um pequeno negócio. A partir dessa iniciativa, muitos dos refugiados colombianos conseguiram se integrar no país. Contudo, outros tiveram problemas, principalmente pela dificuldade em obter trabalho (ACNUR, 2005; DOMINGUEZ e BAENINGUER, 2006, p. 8; MOREIRA, 2005, p. 68). Nesse sentido, o fato de possuir uma profissão no país de origem pode ser um fator que facilita o processo de integração, dependendo da situação do mercado de trabalho no país de acolhimento. Em contrapartida, a alta qualificação profissional do refugiado pode se revelar prejudicial. Outra questão que pode prejudicar a integração se trata do estado de insegurança vivido pelos refugiados. Alguns casos foram relatados por colombianos 13

perseguidos pelas Forças Armadas Revolucionárias Colombianas (FARC), os quais continuavam temendo por sua segurança no território brasileiro, em razão de sua proximidade com a Colômbia (DIÁRIO DE S. PAULO, 2004; MOREIRA, 2005, p. 69). CONSIDERAÇÕES FINAIS Observamos que a atuação do Brasil em relação aos refugiados se destaca sobretudo a partir da década de 1990, com a elaboração da lei nacional para refugiados e a criação do comitê específico para julgar os pedidos de refúgio no país. A partir de então, novos passos foram dados rumo a um comprometimento maior em relação aos refugiados, o que se observa com o estabelecimento de programas de reassentamento. No tocante ao acolhimento dos refugiados no Brasil, constata-se a participação de três atores envolvidos no processo: ACNUR, governo brasileiro (por meio do CONARE) e sociedade civil (através da Cáritas e outras instituições), o que Leão (2003, p. 174) identifica como uma estrutura tripartite. A atuação do ACNUR se faz notar na área da assistência, com o subsídio repassado à Cáritas, que é fornecido aos solicitantes de refúgio e aos refugiados, e o auxílio dado aos reassentados. Também abrange o financiamento dos programas brasileiros de reassentamento de refugiados. A atuação do governo brasileiro abrange as políticas adotadas para refugiados, como o estabelecimento dos programas de reassentamento, e as decisões referentes ao recebimento de refugiados. Além disso, volta-se para a área da proteção, mediante a decisão de reconhecer ou não solicitantes como refugiados, concedendo ou negando o refúgio (que fica a cargo do CONARE). Mas também abarca a área da assistência, oferecendo moradia nos albergues públicos e atendimento médico nos hospitais públicos, vale registrar: serviços destinados à população local, dos quais os solicitantes e refugiados se beneficiam. A atuação da sociedade civil (com destaque para a Cáritas) se faz presente nas três frentes: proteção, assistência e, sobretudo, integração. Esse terceiro quesito está diretamente relacionado com o êxito no processo de acolhimento, à medida que envolve a inserção e adaptação do refugiado na sociedade local. 14

Diante disso, concluímos que a atuação da sociedade civil tem uma abrangência maior se comparada às do ACNUR e do governo, tornando-se indispensável para que o refugiado tenha condições de reconstruir sua vida num novo país. BIBLIOGRAFIA ACNUR. A situação dos refugiados no mundo: cinquenta anos de acção humanitária. Almada: A Triunfadora Artes Gráficas, 2000.. Background on the Executive Committee. 2001. Disponível em: <http://www.unhcr.org>. Acesso em: 20 set. 2006.. Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados. In:. Manual de procedimentos e critérios a aplicar para determinar o estatuto de refugiado. Lisboa: ACNUR, 1996a. p.60-84.. Declaración y Plan de Acción de México para Fortalecer la Protección Internacional de los Refugiados en América Latina. 2004. Disponível em: <http://www.acnur.org>. Acesso em: 18 set. 2006.. Executive Committee membership by date of admission of members. 2005a. Disponível em: <http://www.unhcr.org>. Acesso em: 7 set. 2006.. Guterres praises Brasilian efforts to integrate refugees. 2005b. Disponível em: <http://www.unhcr.org>. Acesso em: 14 set. 2006.. Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados. In:. Manual de procedimentos e critérios a aplicar para determinar o estatuto de refugiado. Lisboa: ACNUR, 1996b. p. 85-89.. Refugees by numbers. 2006. Disponível em: <http://www.unhcr.org>. Acesso em: 8 jan. 2007. 15

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Tabela 2 Solicitantes de refúgio no Brasil em 2005 Origem Total Colômbia 137 República Democrática do Congo 88 Cuba 61 Angola 59 Peru 47 Fonte: ACNUR.2005 UNHCR Estatistical Yearbook. 2007. p. 271. 19