Pró-Reitoria de Graduação Curso de Letras Trabalho de Conclusão de Curso



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Transcrição:

Brasília - DF 2011 Pró-Reitoria de Graduação Curso de Letras Trabalho de Conclusão de Curso A GRAMÁTICA NOS LIVROS DIDÁTICOS DE ENSINO MÉDIO SOB A PERSPECTIVA HISTÓRICO-DISCURSIVA Autor: Camila Oliveira Ribeiro Orientadora: Dra. Mariza Vieira da Silva CAMILA OLIVEIRA RIBEIRO

CAMILA OLIVEIRA RIBEIRO A GRAMÁTICA NOS LIVROS DIDÁTICOS DE ENSINO MÉDIO SOB A PERSPECTIVA HISTÓRICO-DISCURSIVA Monografia apresentada ao curso de graduação em Letras da Universidade Católica de Brasília, como requisito parcial para obtenção do Título de Licenciado em Letras Português. Orientadora: Dra. Mariza Vieira da Silva Brasília 2011

Monografia de autoria de Camila Oliveira Ribeiro, intitulada A GRAMÁTICA NOS LIVROS DIDÁTICOS DE ENSINO MÉDIO SOB A PERSPECTIVA HISTÓRICO-DISCURSIVA, apresentada como requisito parcial para a obtenção de grau de Licenciado em Letras da Universidade Católica de Brasília, em 18 de novembro de 2011, definida e aprovada pela banca examinadora abaixo assinada: Profª. Dra. Mariza Vieira da Silva Orientadora Curso de Letras UCB Prof. Dr. Maurício Lemos Izolan Curso de Letras UCB Prof. MSc. Juarez Moreira da Silva Júnior Curso de Pedagogia, Proform e Pós-Graduação em Educação a Distância UCB(Católica Virtual) Brasília 2011

AGRADECIMENTO A Deus, por ter me dado forças, coragem e sabedoria. À professora Mariza, por toda paciência, apoio, amizade e, principalmente, por me ensinar a acreditar no meu potencial. Aos meus pais, Adriana e Valmir, por terem doado parte de suas vidas para que esse sonho se concretizasse. Aos meus irmãos, Vanessa e Vinícius, pela amizade e compreensão dos necessários momentos de silêncio. À minha madrinha, Elsi, minha avó, Maria do Socorro : sem elas, esse sonho não poderia estar se realizando. A todos os meus amigos que me apoiaram, em especial, Solange e Janaína, por estarem sempre presentes na minha vida, e aos amigos da Ofitex que tanto contribuíram para meu crescimento profissional, principalmente à querida professora Vera. Agradeço, de forma especial, à minha amiga Aline Salgado por me acompanhar durante toda a minha trajetória acadêmica, partilhando do mesmo sonho.

RESUMO RIBEIRO, Oliveira Camila. A GRAMÁTICA NOS LIVROS DIDÁTICOS DE ENSINO MÉDIO SOB A PERSPECTIVA HISTÓRICO-DISCURIVA. 2011. 45p. Monografia Letras UCB, Brasília- DF, 2011. Este trabalho tem como objetivo compreender como o nosso objeto de estudo a gramática no livro didático - produz sentidos. O nosso referencial teórico e metodológico fundamenta-se na Análise de Discurso e na História das Ideias Linguísticas, que nos levam a tomar a gramática e o livro didático como Instrumentos linguísticos, tecnologias e discursos. Analisamos as condições de produção do nosso objeto de estudo, buscando compreender a imagem de língua, de conhecimento linguístico e de leitor presentes no livro didático por meio da pergunta norteadora do nosso trabalho que é: como o saber gramatical é didatizado pelo livro didático? Uma vez que observamos que não é por mera transposição de conhecimentos, mas que eles obedecem a padrões e exigências estabelecidos pelo Estado e pela Ciência, logo buscamos compreender como se dá esse processo, ampliando nossa visão sobre as políticas públicas do livro didático, analisando, principalmente, Guias que são resultantes do processo de seleção das obras produzidas no Brasil. Por meio da compreensão do dispositivo teórico oferecido pela teoria da Análise de Discurso, construímos o nosso dispositivo analítico, delimitando o nosso corpus centrado nos Guias de Livros Didáticos do PNLEM e no livro Português Linguagens de William Roberto Cereja e Thereza Cochar Magalhães, atualmente mais usado no Brasil e em Brasília. E por meio da descrição e análise chegamos à conclusão de que a gramática ainda é quem comanda o ensino, que o conhecimento linguístico presente na escola ainda se resume em estudar uma gramática fechada em conceitos e regras simplificadas e banalizadas, por meio de exercícios para que o leitor identifique fatos gramaticais. Assim, a imagem de língua é projetada como conceitos para serem identificados e decorados, uma língua una e uniforme; a imagem de conhecimento como algo estável e controlável, e a de sujeito como a de quem ainda não é capaz de dominar essa língua homogênea. Palavras-chave: Tecnologias histórico-discursivas. Gramática. Livro didático. Ensino de língua portuguesa. Análise de discurso. História das ideias linguísticas.

ABSTRACT The objective of this paper is to comprehend how our object of study grammar within the didactic book produces meanings. Theoretical and methodological referential were Discourse Analysis and the History of Linguistic Ideas, which lead us to take grammar and the didactic book as linguistics tools, technologies and discourses. We have analyzed the conditions of production of our object of study, trying to comprehend the image of language, linguistic knowledge and presence of the reader in the didactic book through the guiding question of this paper: how is grammatical knowledge didactically put through the didactic book? Once observed that it's not through simple knowledge transposition, but that such knowledge obeys patterns and demands established by the State and Science, soon we tried to comprehend how this process occurs, broadening our view about public policies on didactic books, analyzing, primarily, Guides which are a result of the process of selection of books produced in Brazil. By comprehending the theoretical device offered by the theory of Discourse Analysis, we have built our analytical device, limiting our corpus of study within the Guide of Didactic Books of PNLEM and the book currently highly used in Brazil and Brasília called Português Linguagens by William Roberto Cereja and Thereza Cochar Magalhães. Through description and analysis we have reached the conclusion that grammar is still the one commanding the teaching process. We have also perceived that the linguistic knowledge used nowadays in schools still means studying simplified and banalized rules and concepts in a closed grammar through exercises which enable the reader to identify grammatical aspects. Therefore, the image of language is projected as concepts to be identified and memorized, a single and uniform language; the image of knowledge is seen as something stable and controllable, and the image of the subject is one of someone who still can't fully domain this homogeneous language yet. Keywords: Historical-discourse Technology. Grammar. Didactic book. Portuguese language teaching. Discourse analysis. History of linguistic ideas.

SUMÁRIO INTRODUÇÃO... 7 CAPÍTULO 1 TECNOLOGIAS HISTÓRICO-DISCURSIVAS... 10 1.1 A GRAMÁTICA... 10 1.2 O LIVRO DIDÁTICO... 17 CAPÍTULO 2 CONSTRUINDO UM DISPOSITIVO ANALÍTICO... 24 CAPÍTULO 3 O LIVRO DIDÁTICO DE LÍNGUA PORTUGUESA NO ENSINO MÉDIO... 31 CAPÍTULO 4 DESCRIÇÃO E ANÁLISE: LINGUAGENS E LÍNGUA... 37 CONSIDERAÇÕES FINAIS... 50 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS... 53

7 INTRODUÇÃO Este Trabalho de Conclusão de Curso busca compreender como a gramática, no sentido de um saber produzido sobre a língua em um momento histórico de uma determinada sociedade, vem sendo escolarizada por meio do livro didático. Isso significa que estamos trazendo para reflexão e análise duas questões que têm estado sempre presentes, pelo menos nas três últimas décadas, nos estudos e nas discussões sobre o processo ensino-aprendizagem de língua portuguesa: a de ensinar ou não a gramática e da centralidade do livro didático no processo escolar, considerando seus efeitos em termos de qualidade da educação. Podemos iniciar nosso trabalho, com as palavras de Dias (2000): Já se tornou comum a idéia de que o ensino de gramática padece de sérios problemas. Alguns desses problemas estão relacionados com a própria metodologia utilizada pelo professor em sala de aula; outros estão ligados às características excessivamente rebuscadas da linguagem utilizada pelos gramáticos; outros ainda são devidos à falta de uma hierarquia nos níveis de complexidade e detalhamento de conteúdo apresentado aos alunos através do livro didáticos. Esses problemas têm sido levantados em diversos trabalhos nos últimos anos (DIAS, 2000, p. 21). É preciso ressaltar que Dias é a favor do ensino da gramática na escola e que o problema não se resolve, segundo ele, apenas com métodos e técnicas, estratégias pedagógicas adequadas. E, nesse mesmo artigo, sinaliza para o lugar que merece reflexão mais aprofundada que é pensarmos nos conhecimentos que temos sobre esse instrumento de normatização de uma língua, na nossa própria atitude frente aos conceitos produzidos pela gramática; e aponta outros caminhos, como o de não conceber a língua apenas como um fato gramatical e, sim, como um fato discursivo, ou seja, que tem história e memória, que se produz pela relação entre sujeitos em condições específicas. A outra questão que está em jogo em nosso trabalho é o livro didático, o meio pelo qual esse conhecimento gramatical chega à escola, pois não é mais comum a própria gramática fazer parte do material escolar de cada aluno. O livro didático tornou-se, no decorrer do tempo, principalmente nas escolas públicas, o ator principal da cena enunciativa pedagógica, ocupando, muitas vezes, o lugar do professor, decidindo sobre o conteúdo ou a metodologia a serem usados. Trata-se, pois, de uma questão a que não se pode fugir de uma reflexão e análise mais

8 aprofundadas, se quisermos tomar uma posição em nossa vida profissional, sermos profissionais competentes e autônomos. A partir da década de 1980, principalmente, outra discussão, relacionada ao nosso objeto de estudo, também ganha a cena escolar, criando uma dicotomia entre um ensino tradicional, superado, do qual a gramática seria representante, em oposição a um ensino moderno, porque científico, objetivo, não preconceituoso, representado pela linguística. Trata-se, contudo, de uma oposição redutora e simplista que ignora toda a história de produção de conhecimento linguístico, do qual a gramática faz parte. Por outro lado, observamos que quando se fala ou se pergunta, ainda hoje, qual é o foco de ensino de Português na escola, ouvimos a palavra gramática : saber português ainda é saber gramática. Mas, o que está se entendendo por gramática? Como ela se articula com a leitura e a produção de texto? Há, aí, várias questões a compreender que não podemos esgotar neste TCC, mas queremos ampliar nossa visão sobre algumas delas. Nosso objetivo, considerando o objeto de estudo a gramática no livro didático-, é compreender como essas tecnologias, responsáveis por descrever, normatizar e instrumentalizar a língua portuguesa, como língua nacional, produzem sentido no modo de dizer uma língua em diferentes espaços de circulação. Nosso referencial teórico e metodológico para compreender esse objeto de estudo será a História das Ideias Linguísticas e a Análise de Discurso, o que significa que a gramática e o livro didático serão tomados, neste trabalho, como instrumentos linguísticos (AUROUX, 1992) e como discursos (PÊCHEUX,1990 e ORLANDI, 2007). Tomamos como conceitos para reflexão e análise as condições de produção da gramática e do livro didático no Brasil, com ênfase, em se tratando da gramática no livro didático, nas imagens de língua, de conhecimento linguístico e de sujeito leitor presentes no livro didático. Nosso dispositivo de análise tomou como corpus os Guias de Livros Didáticos PNLEM- apresentação e de Língua Portuguesa, e o livro didático de Ensino Médio atualmente mais usado no país e em Brasília, Português Linguagens 2 de William Roberto Cereja e Thereza Cochar Magalhães, edição de 2010, fazendo um recorte para descrição e análise, dado o tempo disponível, da primeira Unidade do livro destinado ao segundo ano. No primeiro Capítulo, ampliamos nossa visão acerca da gramática e do livro didático, considerando-os como tecnologias histórico-discursivas, ressaltando as

9 suas condições de produção num sentido mais amplo, o que significou incluir em nossa reflexão o contexto sócio-histórico (ideológico) em que são produzidos, ou seja, o da gramatização (AUROUX, 1992) das línguas na Europa e no Brasil. No segundo Capítulo, apresentamos conceitos que constroem o nosso dispositivo de interpretação a Análise de Discurso - e construímos o nosso dispositivo de análise, a fim de que nos desse elementos para compreender, pelas pistas e vestígios presentes na materialidade linguística dos textos, o nosso objeto de estudo. No terceiro Capítulo, tratamos das condições de produção do livro didático em um sentido mais estrito, isto é, o contexto imediato em que o livro selecionado para descrição e análise está inserido: o da disciplina de Língua portuguesa, o nível de ensino e o das políticas públicas de educação, analisando parte do material guias-, que regem as relações entre essas instâncias, relações essas que envolvem muitos interlocutores. Por fim, no quarto Capítulo, descrevemos e analisamos o nosso corpus, observando os efeitos de sentidos produzidos no processo de escolarização, de didatização do conhecimento gramatical em termos das imagens de língua, de conhecimento linguístico, de sujeito. Todo esse trabalho analítico nos levou a algumas considerações finais sobre esse processo de didatização, como a de que a gramática ainda é quem comanda o ensino, mas uma gramática enrijecida, cristalizada, fechada em conceitos e regras simplificadas e banalizadas, por meio de exercícios para que o leitor identifique fatos gramaticais. Assim, a imagem de língua é projetada como conceitos para serem identificados e decorados de uma língua una e uniforme; a imagem de conhecimento como algo estável e controlável, e a de sujeito como a de quem ainda não é capaz de dominar essa língua homogênea. Este TCC criou condições também para nos situar em outro lugar em relação às ciências da linguagem e ao ensino de língua portuguesa, abrindo possibilidades para outros estudos e pesquisas.

10 CAPÍTULO 1 TECNOLOGIAS HISTÓRICO-DISCURSIVAS Neste Capítulo, considerando nosso referencial teórico a História das Ideias Linguísticas no Brasil e Análise de Discurso-, iremos fazer uma reflexão sobre a gramática e o livro didático como instrumentos linguísticos, como tecnologias e como objetos discursivos, tendo ambos sido produzidos em condições históricas específicas. De acordo com Auroux (1992), a gramática, assim como o dicionário, é um instrumento linguístico em que se evidencia uma relação com a alteridade, com o outro que deve dominar a língua da qual já é falante como objeto de conhecimento. A gramática não é uma simples descrição da linguagem natural, é preciso concebê-la também como um instrumento lingüístico: do mesmo modo que o martelo prolonga o gesto da mão, transformando-o, uma gramática prolonga a fala natural e dá acesso a um corpo de regras e de formas que não figuram junto na competência de um mesmo locutor (AUROUX, 1992, p.69). Consideramos o livro didático também como um instrumento linguístico, uma vez que o aluno não domina todo o conhecimento apresentado pelo LD(Livro Didático), que por sua vez tem a função de instrumentar esse conhecimento, ampliando a competência do aluno em matéria de domínio de língua. A Análise de Discurso tem como objeto de estudo o discurso, que é definido por Pêcheux (1990) como efeito de sentidos entre locutores. Isso significa que, se a gramática e o dicionário são considerados como discurso, é preciso compreender os efeitos de sentido entre os interlocutores aí envolvidos. Enquanto uma teoria e uma metodologia de leitura de textos, de arquivos, ela nos permite compreender a relação desses instrumentos gramática e livro didático com o sujeito e com a língua na história, em determinadas condições de produção. Nesse sentido, apresentamos, a seguir, outras questões que ampliam a nossa compreensão sobre esses objetos histórico-discursivos. 1.1 A GRAMÁTICA

11 Inicialmente, é preciso distinguir os dois conceitos que são atribuídos à palavra gramática: o de conhecimento produzido pelo homem e o do saber inerente ao homem. Assim como explicam Dias e Bezerra (2006), após uma explanação mais ampla sobre o uso do termo gramática pelo gerativismo, uma teoria da chamada linguística moderna: Podemos agora explicar melhor a diferença entre os dois usos do termo. Em suma, há diferença básica entre: a) gramática como o próprio saber a língua (competência internalizada), objeto de estudo da teoria gerativa; b) gramática como um saber sobre a língua, isto é, um conjunto de estudos que descrevem ou explicam a língua (p.18). Neste trabalho, estaremos trabalhando com a segunda acepção: a da gramática no sentido de um saber metalinguístico que se constrói ao longo da história de acordo com interesses e necessidades de uma sociedade dada. Trata-se de um lugar da prática da linguagem e de normatização dessas práticas, de acordo com a Análise de Discurso, no qual são produzidos efeitos de sentidos não transparentes, afetados pela estrutura e pelo funcionamento da língua, da história e da ideologia, tomados como a direção que esses sentidos tomam. A produção desse saber, conforme Auroux (1992), iniciou-se na Mesopotâmia, por volta do segundo milênio antes de Cristo, onde podemos encontrar os primeiros rudimentos gramaticais, nos quais foram construídos agrupamentos de palavras com características comuns. Isso, porém, não foi suficiente para construir uma gramática como um corpo organizado de conceitos e regras. Ainda, conforme Auroux, na Grécia, a Lógica e Retórica foram imprescindíveis no desenvolvimento dessas reflexões, desses primeiros estudos. Com a contribuição da Retórica, foi constituído o que hoje denominamos classe de palavras. E com a contribuição da Lógica, nasceram os primeiros rudimentos de predicação, o que hoje fundamenta a sintaxe. Dias e Bezerra (2006), tratando também dessa história, afirmam que, mesmo com as contribuições advindas da Grécia, ainda não existia uma gramática no sentido tradicional, esclarecendo que a primeira gramática grega aparece por volta de 170 a 90 a.c, escrita por Dionísio, o Trácio, e que já abordava a estrutura dos sons e das classes de palavras. Outra gramática grega que merece destaque foi a de Apolônio Díscolo, no século II d. C, que já abordava a sintaxe e as partes do discurso. Dias e Bezerra(2006) ressaltam ainda que, antes dos gregos, por volta do

12 século V a. C, o gramático hindu Panini escreveu uma obra detalhada que analisava os sons e a estrutura vocabular da língua sânscrita. As primeiras gramáticas do Latim que se destacaram foram as de Varrão (século I a. C) e a de Quintiliano (século I d. C). E alguns séculos depois, merecem destaque, as gramáticas latinas de Donato e Prisciano no século V d. C, que já trazem noções de transitividade e regência, que ainda hoje são fundamentais na sintaxe. Um conceito que tem sido central para os estudiosos de História das Ideias Linguísticas, dentro e fora do Brasil, tem sido o de gramatização proposto por Auroux (1992, p.65): Por gramatização deve-se entender o processo que conduz a descrever e a instrumentar uma língua na base de duas tecnologias, que são ainda hoje os pilares de nosso saber metalinguístico: a gramática e o dicionário. Esse processo, em se tratando do Ocidente, tem como referência a produção dos gregos e romanos e vem se desenrolando pouco a pouco, e ganha força a partir do final da Idade Média, indo constituir o que Auroux (1992) chama de gramatização massiva das línguas e que irá ocorrer em condições históricas determinadas. No curso desses treze séculos de história vemos o desenrolar de um processo único em seu gênero: a gramatização massiva, a partir de uma só tradição linguística inicial (a tradição Greco-latina) das línguas do mundo. Esta gramatização constitui- depois do advento da escrita no terceiro milênio antes da nossa era a segunda revolução técnico lingüística. Suas conseqüências práticas para a organização das sociedades humanas são consideráveis. Essa revolução- que só terminará no século XX- vai criar uma rede homogênea de comunicação centrada inicialmente na Europa(p.35 grifo nosso). Esse autor explica tal fato sinalizando para o período de transição que se vivia na época, e dentre os fatos por eles mencionados como causa desse processo, ressaltamos a Reforma (Lutero) que difundiu o acesso às escrituras, o que até então era exclusivo de membros da igreja que sabiam latim, abrindo, assim, espaço para a tradução entre línguas. Em síntese, essa passagem de uma língua para a outra, foi a primeira causa da gramatização, pois além desse interesse de tradução das escrituras, era possível atender a vários outros interesses práticos, como: i.acesso a uma língua de administração; ii. acesso a um corpus de textos sagrados; iii. acesso a uma língua de cultura; iv. relações comerciais e políticas. v. viagens (expedições militares, explorações); vi. implantação/exportação de uma doutrina religiosa;

13 vii. colonização (AUROUX, 1992, p.47). Outra causa da gramatização estaria ligada à política de uma língua no que diz respeito à organização e regulação de uma língua literária e ao desenvolvimento de uma política de expansão linguística de uso interno ou externo. Podemos mencionar, ainda, a invenção da imprensa que permite a difusão de livros e exige, com isso, uma uniformização dos textos, as grandes descobertas, possibilitando o contato com línguas até então desconhecidas, como outras causas da gramatização, sem nos esquecermos de que a Europa passava por uma mudança sócio-econômica, com a chegada do capitalismo e, consequentemente, de uma elite, os burgueses, que não dominavam o latim como os nobres e o clero. (AUROUX,1992). Como vimos, essa gramatização massiva a partir do modelo greco-latino cria uma rede homogênea de comunicação capaz de afetar a sociedade de tal forma a ser considerada a segunda revolução técnico-linguística. A gramática e o dicionário são, pois, tecnologias intelectuais que homogeneízam o modo de conceber e normatizar a língua e que, com a tradução, possibilitam descrevê-la com as mesmas categorias. Sua técnica principal consiste em, a partir do modelo greco-latino, constituir uma metalinguagem capaz de ser transferida para qualquer outro vernáculo, formando, assim, uma rede. Assim, como as estradas, os canais, as estradas-de-ferro e os campos de pouso modificaram nossas paisagens e nossos modos de transporte, a gramatização modificou profundamente a ecologia da comunicação e o estado do patrimônio lingüístico da humanidade (AUROUX, 1992, p. 70). As gramáticas são produzidas a partir de uma estrutura fixa, denominada quadro latino, um sistema unificador que faz com que as gramáticas tenham a mesma forma básica, a mesma forma de sistematizar a língua, que desenvolvem uma tradição e criam o chamado modelo clássico. Uma gramática contém (pelo menos): a. uma categorização das unidades; b. exemplos; c. regras mais ou menos explícitas para construir enunciados (os exemplos escolhidos podem tomar seu lugar)(...) O conteúdo das gramáticas é relativamente estável: ortografia/fonética (parte opcional), partes do discurso ( cf. Apêndice 1), morfologia (acidentes das palavras, compostos, derivados), sintaxe (freqüentemente muito reduzida: conveniência e regime), figuras de construção(auroux, 1992, p.66-67). Bechara (2009), no Prefácio da primeira edição de sua Moderna Gramática Portuguesa de1961, mostra a presença dessa tradição ainda hoje.

14 Ao escrever esta Moderna Gramática Portuguesa, foi nosso intuito levar ao magistério brasileiro, num compêndio escolar escrito em estilo simples, o resultado dos progressos que os modernos estudos de linguagem alcançaram no estrangeiro e em nosso país. Não se rompe de vez com uma tradição secular: isto explica por que esta Moderna Gramática traz uma disposição da matéria mais ou menos conforme o modelo clásico. A nossa preocupação não residiu aí, mas na doutrina. Encontrarão os colegas de magistério, os alunos e quantos se interessam pelo ensino e aprendizado do idioma um tratamento novo para muitos assuntos importantes que não poderiam continuar a ser encarados pelos prismas por que a tradição apresentava. Apesar de as gramáticas seguirem esse modelo clássico greco-latino, é importante ressaltar que elas sofrem modificações ao longo da história, considerando a estrutura de determinada língua, o local, o tempo e as políticas de língua. Os conceitos, as regras, os exemplos têm historicidade. Claro no detalhe, a construção da rede supõe adaptações locais e um certo viezamento das descrições. O quadro teórico que se constitui assim corresponde grosso modo a uma descrição comum que convém mais ou menos à língua inicial e às outras. Neste sentido, pode-se falar em uma Gramática latina estendida (GLE). (AUROUX, 1992, p.44). Dias e Bezerra, em seu texto Gramática e dicionário (2006), trazem uma análise do pronome em gramáticas brasileiras de três épocas diferentes, e mostram como o saber gramatical sofreu mudanças ao longo do tempo sob perspectivas teóricas diferentes em relação à produção do conhecimento. Os resultados mostraram que nos autores do século XIX: Júlio Ribeiro (1881), João Ribeiro (1886) e Maximino Maciel (1894), as gramáticas trataram os pronomes a partir de um juízo de valor, de uma estilização do fato gramatical, isto é, perseguiam um determinado modelo de estética. Já em meados do século XX, com Rocha Lima (1957), Evanildo Bechara (1961) e Celso Cunha (1970/1985), as gramáticas se deslocam para a produção de um saber avaliativo para descrever a língua, indicando os usos legitimados pelos usos gerais e os legitimados pelos usos específicos da língua padrão. Mário Perini (1995) e Moura Neves (2000), dois linguistas, que não seguem a linha tradicional, e, sim, a estruturalista e a funcionalista, respectivamente, tratam o pronome como um saber sustentado por suas teorias. Vale a pena ressaltar ainda, em se tratando de refletir sobre a estrutura e funcionamento das gramáticas, que nem todo estudo sobre a língua é considerado uma gramática. Segundo Dias e Bezerra (2006), para que uma obra seja considerada uma gramática, é preciso que atenda a dois parâmetros: I)apresente uma visão integral da língua e II) apresente uma diretriz pedagógica.

15 Apresentar uma visão integral da língua significa que a obra deve reunir, mesmo que imaginariamente, todo o saber referente a uma dada língua, por meio do conteúdo relativamente estável, o que, discursivamente, entendemos como um efeito de completude, uma vez que é impossível uma gramática conter toda a língua. Em relação à diretriz pedagógica, isso implica em conceber a gramática como um instrumento utilizado no ensino de uma língua. Porém, com o desenvolvimento dos estudos da linguagem, houve um deslocamento no modo como se vê a gramática em relação ao processo de ensino-aprendizagem, deixando de ser um simples manual de consulta para se saber o certo e o errado, e tornando-se um instrumento de informação sobre uma língua. Ainda assim, as gramáticas modernas mantêm a diretriz pedagógica. De um lado, no que se refere às variações de uso de preposições, pronomes ou procedimentos de concordância, adota-se uma perspectiva informativa, isto é, o gramático apenas apresenta essas variações para o leitor. De outro, adota-se a perspectiva segundo a qual a gramática deve atuar no ensino oferecendo uma visão concisa dos estudos morfológicos e sintáticos produzidos na lingüística. Em ambos os casos, rejeita-se a perspectiva doutrinária no ensino de língua, afastando-se da idéia de gramática como manual de instruções sobre o uso da língua (DIAS; BEZERRA, 2006, p.16) (grifo nosso). A partir da década de 1980, principalmente, ganha a cena escolar uma dicotomia para justificar o fracasso escolar, entre um ensino tradicional, superado, do qual a gramática seria representante, em oposição a um ensino moderno, porque científico, objetivo, não preconceituoso, representado pela linguística. Trata-se, contudo, de uma oposição redutora e simplista que ignora toda a história de produção de conhecimento linguístico, do qual a gramática faz parte. Essa dicotomia nos faz, muitas vezes, menosprezar a gramática. Em nosso trabalho, contudo, tivemos oportunidade de repensar essa dicotomia, compreendendo melhor esse instrumento, que resulta secularmente de estudo sistematizado, sério, estruturado, uma verdadeira tecnologia intelectual que possibilitou grandes avanços na história da produção do conhecimento linguístico. A produção do saber metalinguístico inscreve-se em um jogo complexo entre o papel legislador do Estado, o papel regulador da instrução e a tradição gramatical (ORLANDI; GUIMARÃES, 2001, p.21). Esses autores chamam a nossa atenção para outros pontos desse processo de gramatização, mostrando que, além desse papel regulador da instrução seguindo uma tradição gramatical, a produção do saber

16 metalinguístico articula Ciência e Estado. No caso do Brasil, essa relação se evidencia, por exemplo, com a Nomeclatura Gramatical Brasileira (NGB), que, na década de 1950, irá estabelecer uma nomenclatura oficial para a produção de gramáticas brasileiras, alterando assim um modo de autoria até então construído. Se a gramatização das línguas europeias se deu principalmente na relação com o latim e foi um modo de a Europa conhecer e dominar o mundo, no Brasil, esse processo ocorreu no embate entre o português do colonizador, as línguas indígenas, as línguas africanas e as línguas dos imigrantes, e foi um modo de marcarmos nossa independência de Portugal, de construirmos nossa brasilidade. O processo de gramatização do português no Brasil significou mais que produzir instrumentos linguísticos; tratou-se de constituir um sujeito brasileiro, de afirmar a nossa identidade de povo autônomo. Destituindo a universalidade do português de Portugal pelo deslocamento de seu domínio da validade (seu território de definição), esse movimento que traz, para um outro território(solo, país) que não é Portugal, a relação entre unidade/diversidade, reinstala, no Brasil, o processo de legitimação da língua portuguesa referindo-a não a um suposto modelo imóvel externo a esse seu campo discursivo de validade. Se a colonização impõe uma língua, a historização da língua faz com que essa mesma colonização sofra um deslocamento visível no processo de gramatização. Como estamos expondo, o trabalho de gramatização, em um país colonizado, desloca o eixo relativo à universalização. A gramática, nessas condições, é instrumento de legitimação, dá foros de universalidade, significa o direito à unidade (imaginária) constitutiva de toda identidade. Correlatamente, falar em usos variados é defender outra língua. E, desse lado do Atlântico, uma vez conquistado o direito à unidade, de imediato se começa, de novo, a se reconhecerem as variedades: a de relação com as línguas indígenas, as línguas africanas etc.(orlandi, 2002, p.128). As primeiras gramáticas brasileiras surgiram no século XIX. [...] configurando um corpo de especialistas e se formando uma disciplina relativa aos estudos da linguagem no Brasil (ORLANDI, 2002, p.132). Foram elas: a gramática de Júlio Ribeiro (Gramática Filosófica), a de João Ribeiro (Gramática Histórica) e a de Maximino Maciel (Gramática Geral). Nesse período, foi se constituindo o conhecimento linguístico do Brasil, pois as ideias vindas de fora não eram apenas repetidas, mas passavam por um processo de ressignificação; e assim os gramáticos dessa época foram formando a nossa própria tradição intelectual e científica. Contudo, como explica Orlandi (2002): Com a NGB (1959) este estado de coisas muda sensivelmente, quando é uma comissão que, a partir de um decreto, estabelece a homogeneidade de uma terminologia que des-autoriza as variadas posições (gramática geral,

17 gramática histórica, gramática analítica, gramática descritiva etc) dos gramáticos que traziam para si a responsabilidade de um saber sobre a língua. Com a NGB o Estado brasileiro toma em mãos a administração da relação institucional do brasileiro com a língua nacional, via gramática, pela uniformização da terminologia (p.160). A NGB desloca a posição da autoria do gramático, causando uma transferência do conhecimento do gramático para o linguista, como podemos observar nas palavras de Orlandi (2002, p. 160): Depois desse deslocamento, a autoria do saber sobre a língua deixa de ser uma posição do gramático e será patrocinada pelo lingüista para dizer como uma língua é (português no Brasil/português europeu). A autoria da gramática passa a necessitar da caução do lingüista, já que este tem o conhecimento científico da língua. Há uma transferência do gramático para o lingüista. As gramáticas são, como vimos, instrumentos complexos, históricos, que trabalham as línguas de forma determinada, sob condições de produção, que envolvem o contexto sócio-histórico, ideológico, político em que as imagens e as representações de língua, de conhecimento, de correção, de sujeito se constituem. Como esse saber sobre a língua chega à escola? Até que ponto essa historicidade do conhecimento não vai ser apagada? 1.2 O LIVRO DIDÁTICO O conhecimento nas diversas áreas, inclusive o conhecimento gramatical agora em questão, chega à escola por meio de um processo de didatização, mediante estratégias sociais e educacionais, assim como explica Magda Soares (1996): Assim, na escola, o saber para ser ensinado, aprendido, avaliado, sofre um processo de seleção, segmentação, organização em seqüências progressivas, é em síntese, didatizado, escolarizado. Currículos, programas, materiais didáticos representam estratégias sociais e educacionais para a concretização e operacionalização desse saber escolarizado. Nesse sentido, o livro didático instituiu-se, historicamente, bem antes que o estabelecimento de programas e currículos mínimos, como instrumento para assegurar a aquisição dos saberes escolares, isto é, daqueles saberes e competências julgados indispensáveis à inserção das novas gerações na sociedade, aqueles saberes que a ninguém é permitido ignorar (p.55). Como se dá esse processo de seleção, segmentação, organização no LD, de que fala Soares, em se tratando de gramática? Que saberes, em se tratando de conhecimentos gramaticais, são indispensáveis, não se pode ignorar? Que imagem de língua, de sujeito escolarizado eles produzem?

18 Uma vez que não há mera transposição dos conhecimentos gramaticais para um LD, uma vez que são selecionados, segmentados, organizados, podemos dizer que produzem um tipo de saber metalinguístico específico sobre a língua, provendoa de realidade, estabelecendo uma relação específica do sujeito com a língua, via uma instituição legitimada pela sociedade. O saber gramatical adquire uma forma escolar que funciona como verdadeira técnica intelectual para o trabalho com a língua, dando uma nova dimensão ao conhecimento linguístico. Resta-nos compreender como isso se dá. Tanto o livro didático quanto a gramática, da perspectiva histórico-discursiva, são construídos e circulam em determinadas condições de produção, produzindo, assim, os seus efeitos de sentido e de sujeito. Em nosso trabalho, queremos explicitar essas condições. Quem seriam os interlocutores em se tratando de LD? Como podemos pensar a situação em que o LD que selecionamos para analisar se constitui? Choppin, pesquisador francês, de outra perspectiva teórica, em seu artigo História dos livros e das edições didáticas: sobre o estado da arte (2004), chama nossa atenção, inicialmente para a dificuldade de se definir o objeto livro didático devido à diversidade de objetos utilizados para fins didáticos e à instabilidade dos usos lexicais. Na maioria das línguas, o livro didático é designado de inúmeras maneiras, e nem sempre é possível explicitar as características específicas que podem estar relacionadas a cada uma das denominações, tanto mais que palavras quase sempre sobrevivem àquilo que elas designaram por um determinado tempo. Inversamente, a utilização de uma mesma palavra não se refere sempre a um mesmo objeto, e a perspectiva diacrônica (que se desenvolve concomitantemente à evolução do léxico) aumenta ainda mais essas ambigüidades. Alguns pesquisadores se esforçam em esclarecer essas questões e estabelecer tipologias, mas constata-se que a maior parte deles se omite em definir, mesmo que sucintamente, seu objeto de estudo. (p.549). Nós, como pesquisadores iniciantes, não iremos arriscar trabalhar nessa definição, que tem se mostrado tão difícil para estudiosos experientes. Neste TCC, tomamos como livro didático aquele que é comprado e distribuído nas escolas públicas do país como tal, como parte de políticas públicas de educação. O livro didático, como observou Chris Stray, em 1993, citado por Choppin (2004), [...] é um produto cultural complexo. [...] que se situa no cruzamento da cultura, da pedagogia, da produção editorial e da sociedade. Esse autor mostra-nos

19 também que o LD tem exercido múltiplas funções, considerando o ambiente sociocultural, época e métodos, entre outros fatores. Suas principais funções, segundo ele, podem ser resumidas em quatro: I Referencial: seguir o programa curricular e transmitir os saberes julgados indispensáveis a nova geração; II- instrumental: por colocar em prática métodos de aprendizagem por meio de exercícios, de forma geral de sua estrutura; III- ideológica e cultural: exercer o papel político de aculturar gerações; e IV- documental: fornecer textos a fim de desenvolver a capacidade crítica do aluno. De nossa perspectiva teórica, preferimos falar em funcionamento e não em função, pois trabalhamos com a língua funcionando em relação à história e a ideologia produzindo sentidos. Assim nos interessam as condições de produção em relação à memória, que engloba a ideologia, o inconsciente, o esquecimento e a falha, o equívoco a que a língua está sempre sujeita, bem como o saber sobre ela produzido. Uma ida a dicionários pode nos ajudar a começar a explicitar essas condições de produção do LD. Segundo o Novo Dicionário Aurélio de Língua Portuguesa (2009), o livro didático é [...] destinado ao ensino e cujo texto deve obedecer aos programas escolares; livro texto (p. 1222, grifo nosso). Conforme o Dicionário Houaiss (2001), é [...] aquele adotado em estabelecimentos de ensino, cujo texto se enquadra nas exigências do programa escolar; livro texto (p. 1190, grifo nosso). Segundo os dicionários, pois, o LD deve obedecer a padrões e se enquadrar em exigências estabelecidas por outrem (Estado? Ciência?), afastando-se da noção de discurso transparente, e apontando para outros interlocutores envolvidos no processo que não apenas o autor e os leitores-alunos e professores. Podemos reafirmar tal análise com as palavras de Choppin (2004): Escrever a história dos livros escolares- ou simplesmente analisar o conteúdo de uma obra- sem levar em conta as regras que o poder político, ou religioso, impõe aos diversos agentes do sistema educativo, quer seja no domínio político, econômico, linguístico, editorial, pedagógico ou financeiro, não faz qualquer sentido(p.251). A presença do político está presente em diferentes momentos e de diferentes formas; se pensarmos no LD como um todo, observamos que, desde a sua concepção, ao participar do Programa Nacional do Livro Didático, por exemplo, ele obedece a parâmetros exigidos por outrem e cumpridos tanto pelos professores quanto pelos alunos, a fim de se atingir uma homogeneização e um controle da

20 língua e de sentidos (controle ideológico) no âmbito escolar. Como explica Choppin (2004): Uma vez que são destinados a espíritos jovens, ainda maleáveis e pouco críticos e podem ser reproduzidos e distribuídos em grande número sobre todo um território, os livros didáticos constituíram-se e continuam a se constituir como poderosos instrumentos de unificação, até mesmo de uniformização nacional, linguística, cultural e ideológica. Isso porque, em grande parte dos países, eles são objeto de regulamentação que difere sensivelmente daquela a que são submetidas as demais produções impressas; regulamentação que é geralmente mais estrita, quer ela se exerça no início (elaboração, concepção, produção, procedimentos prévios de aprovação) ou ao final do processo (modos de financiamento, de difusão, procedimentos de escolha, formas de utilização) (p. 561). Um dos vestígios dessa uniformização, da presença do político como gestão das diferenças, das desigualdades, podemos encontrar também internamente, na própria forma de organizar o LD, por meio de uma estrutura cristalizada, que busca formar mentalidades, sem despertar o espírito crítico dos alunos. Assim como constatou Grigoletto (1999), ao analisar a estrutura das seções de leitura dos LD de Língua Portuguesa dos cursos fundamental e médio: A economia do livro didático como um dos discursos de verdade se dá na operação com construções fixas. A repetição de uma mesma estrutura a cada unidade e a atribuição de uma determinada ordem e sequência ao ato de leitura são apresentadas como naturais, e, na maior parte dos casos, interpelam o aluno em sujeito que deve ser guiado, a cada passo, por um único caminho (p. 75). E é por meio dessa estrutura cristalizada, por meio do saber, poder, dever dizer, que a ideologia faz sentido, que os próprios fatos reclamam sentido, como diz Orlandi (2007). E é dessa forma que o LD se postula, produzindo um efeito de completude, de conter todo o necessário para o aluno dominar, controlar a linguagem, a língua. Assim como afirma Grigoletto(1999), trabalhando com a noção de verdade de Foucault: Certamente, uma das formas de disseminação do poder decorrente da produção, circulação e funcionamento dos discursos na esfera escolar está no LD que funciona como um dos discursos de verdade. Um discurso de verdade é aquele que ilusoriamente se estabelece como um lugar de completude dos sentidos. A análise de Discurso (ao menos a linha denominada Escola francesa, cf. Pêcheux, 1975, por exemplo) postula que a incompletude é constitutiva da linguagem (p.67 grifo nosso). Ainda nesse sentido, trazemos as palavras de Orlandi(2007): A condição da linguagem é a incompletude. Nem sujeitos nem sentidos estão completos, já feitos, constituídos definitivamente. Constituem-se e funcionam sob o modo do entremeio, da relação, da falta, do movimento.

21 Essa incompletude atesta a abertura do simbólico, pois a falta é também o lugar do possível(p.52). Os interlocutores também são parte das condições de produção de um discurso e precisam ser explicitados, analisados. O autor do LD, como parte desse processo de didatização dos conhecimentos linguísticos não é transparente, de acordo com a perspectiva discursiva, um indivíduo empírico, mas uma posição de fala, um sujeito afetado pela língua, história e ideologia e que sofre determinações conforme o lugar que ocupa. Nesse sentido, mais uma vez, Choppin (2004) nos traz elementos para a reflexão. Conclui-se que a imagem da sociedade apresentada pelos livros didáticos corresponde a uma reconstrução que obedece a motivações diversas, segundo época e local, e possui como característica comum apresentar a sociedade mais do modo como aqueles que, em seu sentido amplo, conceberam o livro didático gostariam de que ela fosse, do que ela realmente é. Os autores de livros didáticos não são simples espectadores de seu tempo: eles reivindicam um outro status, o de agente. O livro didático não é um simples espelho: ele modifica a realidade para educar as novas gerações, fornecendo uma imagem deformada, esquematizada, modelada (p. 557). Em se tratando do Brasil, não poderíamos deixar de tratar das condições de produção desse instrumento em termos econômicos e sociais, que tem um peso muito importante pelo volume de recursos públicos que mobiliza. Soares (1996) afirma que, a partir dos anos 60, o setor de edições didáticas veio crescendo, chegando nos anos 80 a ocupar o principal segmento do mercado editorial, dividido em média entre 5 editoras; crescimento que deve ser explicado devido à implantação da política de financiamento de livro didático. Uma pesquisa feita por Ricardo Pereira Soares, técnico do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada IPEA, em seu texto para discussão denominado Compras governamentais para o programa nacional do livro didático: uma discussão sobre a eficiência do governo (2007), analisa o comportamento do governo nesse processo, por ocupar a posição de maior comprador de livros didáticos do país, como podemos observar: Com relação ao setor editorial brasileiro, constatou-se que o total de livros didáticos (ensino fundamental e ensino médio) correspondeu a 58% dos livros produzidos em 2004(CBL/SNEL, 2005, p. 7 e 9). Deste total, 64% foram comprados pelo governo federal, principalmente por meio do PNLD (EARP, 2005, p. 107). Isto significa que o governo comprou cerca de 36% de toda a produção editorial brasileira(p.12).

22 No Brasil, o Programa iniciou-se em 1929 e foi sofrendo modificações no decorrer do tempo, atingindo até 2004 o Ensino Fundamental, quando surge o Programa Nacional do Livro Didático para o Ensino Médio - PNLEM, programa responsável pela distribuição de LD para as escolas do Ensino Médio do país interesse deste TCC -, aumentando esse poder de compra do governo. Analisando dados disponibilizados pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação FNDE, constatamos que no ano de 2010, somente o PNLEM, movimentou R$117.306.315,14, distribuídos entre 12 editoras. Porém, observando de forma mais detalhada esses dados, pode-se ver, como dito por Soares (1996) em relação a somente 5 editoras dominarem o mercado nos anos 80, que atualmente essa realidade não está diferente, pois o peso maior está dividido entre uma minoria: Moderna, FTD, Ática, Saraiva e Scipione. Soares (2007), outrossim, explica que essa concentração entre poucas editoras se dá devido ao grande investimento em divulgação, no qual as que possuem maior poder aquisitivo investem pesado nos divulgadores responsáveis por distribuir gratuitamente os livros para os professores (que serão responsáveis pela escolha), dentre outras estratégias, o que se torna inviável para as pequenas empresas, devido à falta de recursos. Vejamos dados apresentados: Esse esforço de divulgação parece bem-sucedido. Tanto o é que figura inexpressiva a venda de editoras menores que, apesar de participarem do PNLD, não contam com a equipe de divulgadores nos moldes das grandes editoras, assim como, muito provavelmente, tampouco contam com recursos para divulgarem gratuitamente seus livros para um número elevado de escolas. De fato, Cassiano (2005) constatou que, em 2002, para a cidade de São Paulo, as editoras com práticas de divulgação bastante incisivas, com prioridade à doação de livros às escolas, como as editoras Saraiva/Atual, FTD, Ática/Scipione, IBEP/Nacional, Moderna e Brasil, venderam 96,7% dos livros didáticos. Enquanto isso, as editoras com práticas menos agressivas de divulgação, como Nova Geração, Módulo, UFG, Dimensão e Lê, mesmo com os seus livros referenciados no Guia do Livro Didático e alguns bem avaliados, obtiveram juntas apenas 3,3% do total das vendas (CASSIANO, 2005, p. 307 apud SOARES, 2007, p.30). Soares explica que essa prática de visitar escolas e fazer divulgações, de certa forma fazer a cabeça do professor, foi proibida, o que indicou que, para 2006, aumentaram as vendas de livros das editoras pequenas, como a Sarandi, e diminuíram as das grandes, como Ática e Scipione (VALOR ECONÔMICO, 2006 apud Soares, 2007,p.30). Porém, constatamos que essa prática de enviar os livros gratuitamente para os professores, de uma forma ou de outra, ainda continua, pois

23 um dos exemplares do livro que vamos analisar possui um selo no qual diz que ele é um livro destinado à análise do professor. Enfim, devido ao grande número de exemplares vendidos e do peso econômico, é óbvio constatar que é interesse dos autores e editores que o seu livro seja escolhido. Então, temos fortemente a intervenção do Estado articulado à Ciência, uma vez que todo o processo de orientações e diretrizes do PNLEM, bem como de avaliação, é feito por professores e pesquisadores da comunidade acadêmica. O processo inicia-se a partir da publicação do edital, do qual constam os parâmetros propostos por especialistas. Depois, é feito uma triagem pelo Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo (IPT), que envia os escolhidos para a Secretaria de Educação Básica (SEB/MEC), onde especialistas analisam mais uma vez as obras e escrevem resenhas, que compõem os Guias que são disponibilizados nas escolas para a escolha do livro que mais se ajuste ao seu projeto político pedagógico. É notório o jogo de interesses envolvidos nas condições de produção desse instrumento até que ele chegue à sala de aula. Os sentidos que aí irão se produzir trazem as marcas das relações de poder presentes em todo o processo discursivo, desfazendo aquela concepção de instrumento neutro, transparente, cujo objetivo é simplesmente carregar a função de transmitir os conteúdos julgados indispensáveis.

24 CAPÍTULO 2 CONSTRUINDO UM DISPOSITIVO ANALÍTICO A Análise de Discurso (AD) é uma teoria e uma metodologia de leitura e de interpretação de textos, de arquivos, que procura compreender como um objeto simbólico, um objeto significante produz sentidos: no nosso caso, o livro didático de língua portuguesa de Ensino Médio. Não procuramos o sentido verdadeiro, correto, adequado, mas em saber como, por meio da materialidade da língua, chegamos aos processos discursivos, aos efeitos de sentidos entre os interlocutores. Queremos saber como se estabelecem relações entre a língua, o sujeito e a história. Para entender essas relações, temos uma teoria com seu objeto e conceitos, e para se chegar à materialidade desse objeto, precisamos construir um dispositivo de análise. Embora o dispositivo teórico encampe o dispositivo analítico, o inclua, quando nos referimos ao dispositivo analítico, estamos pensando no dispositivo teórico individualizado pelo analista em uma análise específica. Daí dizermos que o dispositivo teórico é o mesmo, mas os dispositivos analíticos, não. O que define a forma do dispositivo analítico é a questão posta pelo analista, a natureza do material que analisa e a finalidade da análise (ORLANDI, 2007, p. 27). Nesse processo de construção de nosso dispositivo, gostaríamos de retomar algumas questões do dispositivo teórico que nos deram sustentação para as definições necessárias. A AD foi fundada em 1960, na França. As suas filiações teóricas são a Linguística, o Materialisno Histórico e a Psicanálise, que ela une sem se deixar absorver por elas. Assim o foco está na língua em seu funcionamento, em sua materialidade, da qual faz parte um sujeito interpelado pela história. Assim, para a Análise de Discurso: a. A língua tem sua ordem própria, mas só é relativamente autônoma (distinguindo-se da Lingüística, ela reintroduz a noção de sujeito e de situação na análise da linguagem); b. A história tem seu real afetado pelo simbólico (os fatos reclamam sentidos); c. O sujeito de linguagem é descentrado, pois é afetado pelo real da língua e também pelo real da história, não tendo o controle sobre o modo como elas o afetam. Isso redunda em dizer que o sujeito discursivo funciona pelo inconsciente e para ideologia (ORLANDI, 2007, p. 19-20). A partir dessas afirmações, desfaz-se a noção de linguagem, sentido e sujeito transparentes, pois a ideologia, a história e a língua produzem efeitos de sentidos, e