D. João V e a cobrança dos quintos do ouro em Minas Gerais



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D. João V e a cobrança dos quintos do ouro em Minas Gerais Maria Beatriz Nizza da Silva Universidade de São Paulo Os historiadores portugueses sempre referem de uma forma genérica e vaga a chegada do ouro do Brasil aos cofres de D. João V. Só acentuam que este ouro possibilitou ao monarca uma série de empreendimentos grandiosos e um mecenato artístico a que poucos reis de Portugal tiveram a oportunidade de se dedicar. Mas é preciso lembrar que a política colonial em relação ao Brasil neste reinado foi dominada por uma questão: como cobrar os quintos do ouro e das pedras preciosas, nomeadamente dos diamantes, da maneira mais eficaz, sem permitir os descaminhos que desfalcavam a Fazenda Real de grande parte da riqueza que lhe era devida? Esta questão foi objecto de inúmeros pareceres e discussões, ocupou constantemente o Conselho Ultramarino, até o rei se decidir a adoptar um sistema de cobrança que se propunha diminuir as fraudes e permitirlhe um rendimento de acordo com a riqueza tirada das áreas de mineração: primeiro as Minas Gerais, depois Cuiabá, Goiás, e minas novas de Arassuaí, no sertão da Baía. Desde o início da colonização do território brasileiro ficou estipulado nos forais concedidos aos donatários que o rei recolheria o quinto de todos os metais preciosos encontrados mas, como a descoberta do ouro tardou mais de um século a constituir uma fonte de rendimento, a Coroa nunca se preocupou com os mecanismos de recolha do seu quinto, nem as populações se incomodaram com sua cobrança. Aliás os colonos, ao contrário da Coroa, estavam pouco interessados na busca do ouro. Basta recordar que os paulistas, quando descobriram as primeiras pepitas em finais do século XVII, estavam efectivamente à procura de novos escravos índios para as suas lavouras em São Paulo. No início do reinado de D. João V, a região de Minas Gerais, sem governo além de um superintendente e um guarda-mor, não proporcionava grandes rendas à Coroa, pois os mineiros não eram fiscalizados e a arrecadação do quinto limitava-se aos portos do Rio de Janeiro, Santos e Parati, onde foram construídas Casas de Fundição. Uma primeira medida foi tomada com a compra da Capitania de S. Vicente, que ainda era de donatário, por provisão régia de 9 de Novembro de 1709. Depois, em decorrência da guerra entre paulistas e forasteiros na região de mineração, conhecida como guerra dos emboabas, o monarca decidiu criar a Capitania de São Paulo e Minas do Ouro, sendo seu primeiro governador António de Albuquerque Coelho de Carvalho, que tomou posse a 12 de Junho de 1710. Este foi incumbido de fazer a cobrança do quinto por bateia, mas não conseguiu impô-la por temer uma sublevação dos mineiros. Não deixou contudo Coelho de Carvalho de propor as medidas que considerava necessárias: que se estabelecesse uma Casa de Fundição nas Minas, que se desse ao ouro quintado um valor superior ao ouro em pó, e que se proibisse a saída deste para fora do perímetro de mineração. Embora o Conselho Ultramarino desse parecer favorável, estas medidas não foram implementadas. Seu sucessor no governo, D. Brás Baltazar da Silveira, procurou arrecadar as 30 arrobas anuais que seu antecessor tinha ajustado com as câmaras das vilas já criadas, mas D. João V, em carta de 12 de Novembro de 1714, reprovou este ajuste pela desigualdade que haveria de se fintar em mais quem devia pagar menos 1. De qualquer modo, a cobrança continuou nos moldes acordados, sem que o desacordo do rei tivesse qualquer efeito local, apesar de uma segunda carta régia desse mesmo ano de 1714 aventar já a ideia de se proceder a um cálculo do número de negros que trabalhavam nas minas a fim de se cobrar para a Coroa a quantia que se ajustasse por cada negro. 1 Manuel da Silveira CARDOSO, Alguns subsídios para a história da cobrança do quinto na Capitania de Minas Gerais até 1735 (separata do I Congresso da História da Expansão Portuguesa no Mundo), Lisboa, 1938, p.18.

Comunicações Mas esta primeira sugestão de capitação foi recusada pelos mineiros. O que se percebe nesta troca de correspondência entre a Coroa e as Minas é que o rei desconfiava que a finta das 30 arrobas não correspondia aquilo que ele deveria receber, e que por outro lado os mineiros evitavam qualquer tentativa de se fazer uma cobrança dos quintos mais adequada ao ouro extraído. Reconheciam os mineiros que o pagamento dos quintos se fundava na obrigação dos vassalos, mas não viam motivo para os obrigarem a outra forma de cobrança. E ameaçavam: se o intentassem, desamparariam os principiados. E a finta anual de 30 arrobas continuou. D. Pedro de Almeida, conde de Assumar, chegou como governador às Minas em finais de 1717, com o encargo de melhorar as receitas da Fazenda Real. Embora tivesse diminuído o número de arrobas para 25, conseguiu aumentar a quantidade de ouro arrecadado graças às mudanças nos registos, antes controlados pelas Câmaras e agora por funcionários régios 2. Mas D. João V continuava achando que a crescente produção mineira daria maior contribuição aos seus cofres e, pela lei de 11 de Fevereiro de 1719, determinou que não se aceitasse mais o ajuste das arrobas de ouro e que para a arrecadação dos seus quintos se erguessem Casas de Fundição nas Minas, nas quais seria reduzido a barras todo o ouro extraído, cobrando-se nelas o que se lhe devia. Não se poderia levar para fora daquela região o ouro em pó, que só seria utilizado no comércio local. Por bando do governador de Julho desse mesmo ano se mandou construir Casas de Fundição em Vila Rica, Sabará, São João d el-rei e vila do Príncipe, estabelecendo-se o prazo de um ano para a construção, durante o qual ficava ainda vigorando o sistema das fintas. Mas os mineiros se amotinaram contra as Casas de Fundição e o pagamento do quinto rigoroso, argumentando que o trabalho de extracção era grande e muito dispendiosa a aquisição de escravos. O governador, conde de Assumar, viu-se obrigado, em Outubro de 1720, a suspender a execução da ordem régia e as Casas de Fundição não foram abertas. Certamente em consequência desses motins decidiu D. João V criar uma capitania autónoma de Minas Gerais, desligando-a de São Paulo e enviando para governá-la, em 1721, D. Lourenço de Almeida. Este recebeu amplos poderes para organizar como achasse melhor a cobrança dos quintos, podendo mesmo voltar ao método da finta, com tanto que a soma apurada para a Fazenda Real fosse superior às antigas 30 arrobas 3. D. Lourenço negociou com as Câmaras uma finta maior, mas entretanto chegou a ordem régia de 28 de Maio de 1722 para que se estabelecesse uma Casa de Fundição e uma Casa da Moeda, o que só ocorreu em 1724. Nesse intervalo parecem ter aumentado as rendas reais, pois nas suas memórias o conde de Povolide escreveu em 1724: A frota do Rio de Janeiro se espera brevemente, dizem que trará muito ouro e os quintos de dois anos de Sua Majestade, que são 60 arrobas de ouro cada ano, o que significa que o governador tinha efectivamente conseguido aumentar a finta anual 4. Em carta de 17 de Janeiro de 1730, D. Lourenço de Almeida deu notícias de sua capitania: pelo que toca ao ouro, vão os homens todos tirando nas suas minas e mais serviços a mesma abundância de ouro que sempre costumavam tirar, sem que se experimente diminuição alguma, antes continuadamente se está descobrindo ouro em vários outeiros, porque neles é que tem mostrado a experiência que é a parte onde o há com maior abundância, e o que se tem achado nos rios e ribeiros é corrido dos altos no discurso dos séculos. Tinha-se portanto passado já da recolha mais fácil do ouro de aluvião para a exploração daquele que se encontrava escondido nos morros. Mas o governador ao mesmo tempo advertia que esta grande extracção de ouro não correspondia na verdade a um aumento dos quintos reais: não é bastante o haver e o tirar-se abundância de ouro para que ele entre na Casa da Fundição a quintar-se, como devia ser, porque é indizível o muito ouro que se extrai aos quintos pela Baía e Rio de Janeiro e Pernambuco, aonde constantemente se sabe que vai parar a maior parte do ouro em pó que se tira nestas Minas. Era impossível, dizia, com os poucos soldados que tinha, vigiar as estradas e os matos por onde o ouro era levado para fora da capitania, e os ouvidores não contribuíam para a punição 2 Carla ANASTASIA, «Entre Cila e Caribde: as desventuras tributárias dos vassalos de Sua Majestade», Varia Historia (Belo Horizonte) 21, 1999, p.240. 3 Manuel da Silveira CARDOSO, Alguns subsídios para a história cit., pp. 21-22. 4 Portugal, Lisboa e a Corte nos reinados de D. Pedro II e D. João V. Memórias históricas de Tristão da Cunha de Ataíde, 1º conde de Povolide, Lisboa, Chaves Ferreira Publicações, 1990, p.371. 2 Maria Beatriz Nizza da Silva

Actas do Congresso Internacional Espaço Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades dos culpados pois nas devassas anuais não houvera nenhuma pessoa inculpada por eles se não quererem malquistar com as populações. Era desviado mais ouro em pó para a Baía e Pernambuco do que para o Rio de Janeiro, não só devido à maior vigilância do governador desta capitania, Gomes Freire de Andrade, como porque são mais dilatados estes sertões, e muito mais fáceis de vadear por qualquer parte, sem que seja pelas estradas gerais. Todo este ouro não quintado ia parar à Costa da Mina e a troco dele trazem negros e muita outra fazenda da Europa sem pagarem os direitos reais devidos. Tornava-se portanto necessário que D. João V tomasse providências para impedir este descaminho do ouro, mas o governador D. Lourenço de Almeida não sugeria nenhum nesta carta para Lisboa 5. Numa outra carta mostrava-se ainda mais pessimista pois havia meses que não entrava ouro a quintar na Casa de Fundição e por essa razão ele, numa reunião com as autoridades locais, decidira baixar 8% no quinto, medida esta que fora aplaudida pelas populações e que estava em vigor enquanto o rei não mandasse o contrário 6. Houve uma tentativa em 1730 de resolver a cobrança dos quintos mediante contrato, como aliás acontecia com os demais impostos, mas esta medida não teve efeito por não convir fazer-se a dita arrematação com as condições que ofereciam os lançadores 7. Por essa razão, em finais de 1730, nas palavras do procurador da Fazenda num parecer do Conselho Ultramarino, o negócio mais grave e importante que se discutia naquele Conselho era o de dar forma mais profícua à cobrança dos reais quintos, tanto a respeito do ouro como dos diamantes recémdescobertos, mas aqui deixaremos de lado as questões referentes ao distrito diamantino do Serro do Frio, para nos ocuparmos apenas do problema do ouro que era devido à Coroa. Continuaram a chegar a Lisboa informações seguras do descaminho do ouro em pó e da existência de casas da moeda e barras de ouro falsas. As barras fundidas nas falsas fundições eram entregues nas Casas da Moeda do Rio de Janeiro, Baía e Lisboa sem que antes tivessem seus proprietários pago o devido ao rei. Desviavam o ouro dos registos levando-o por picadas no mato. Era enviado para Buenos Aires onde o trocavam por patacas castelhanas. Pela via dos Açores passava a nações estrangeiras. Ouro clandestino era escondido em caixas de açúcar e no próprio navio, a ponto do governador do Rio de Janeiro escrever ao rei em Julho de 1730: Se Vossa Majestade pagasse os navios e a carga para descobrir o ouro, desfazendo os navios e abrindo a carga, lucraria a sua Real Fazenda 500%. Ao chegarem as embarcações à barra de Lisboa, desembarcavam o ouro para barcos de pesca que, sob o pretexto de pescarem, andavam no mar 8. Segundo Alexandre de Gusmão, secretário particular de D. João V, tornara-se urgente para a Coroa buscar meio para que o direito real não estivesse fundado em uma coisa tão fácil de esconder e extraviar como ouro. Apresentou então, em 1733, o seu projecto de capitação, aplicável a todas as terras de mineração e portanto também a Mato Grosso, Goiás e minas novas de Arassuaí no sertão da Baía. Pretendia com ele aumentar os réditos da Fazenda Real, acabar com os contrabandistas e melhorar a situação dos mineiros, que eram afinal os que menos lucravam com o ouro que extraíam. A novidade, e também a complexidade, do projecto de Alexandre de Gusmão, consistia na existência, além da capitação por meio da matrícula de escravos, de um tributo denominado maneio, assente em um censo daquela parte da população que se dedicava a actividades que exigiam menor número de escravos. Esse imposto seria cobrado à proporção da indústria e maneio de cada um e Gusmão justificava a sua criação: até agora tudo foi a carregar sobre o ouro, e não houve cuidado em carregar por igual as ganâncias do comércio e de outras agências. Ou seja, este aspecto mais polémico do novo sistema consistia em tributar toda a população e não apenas os mineiros. Nesse censo, além dos comerciantes e de outros que exercessem actividades lucrativas, seriam incluídos os letrados, os médicos, os cirurgiões, os boticários, e outras pessoas de semelhantes profissões. Ficariam desobrigados desse imposto de 5% apenas o governador, os intendentes da Fazenda Real, os ouvidores e juizes de fora, os oficiais encarregados da matrícula dos escravos e do censo do maneio, as mulheres brancas sob pátrio poder, os eclesiásticos e os oficiais de justiça e militares, desde que não se entregassem a 5 AHU (Arquivo Histórico Ultramarino), Minas Gerais, Caixa 16, doc. 16. 6 AHU, Minas Gerais, Caixa 17, doc.59. 7 Idem. 8 Manuel da Silveira CARDOSO, Alguns subsídios para a história cit., notas 120 e 121. D. João V e a cobrança dos quintos do ouro em Minas Gerais 3

Comunicações actividades comerciais. Os negros e mulatos forros de ambos os sexos também ficariam sujeitos a este imposto, porque a não ser assim ficariam de pior condição os brancos que os negros e mulatos. Este tributo do maneio, ou manejo como também era designado, destinava-se segundo Gusmão a igualar com os que tiram o seu lucro dos escravos este outro género de pessoas que ganha com a indústria sem necessitar deles. Mais correcto teria sido escrever sem necessitar tanto deles, pois a diferença entre uns e outros residia apenas no número de escravos que possuíam 9. O projecto do secretário particular de D. João V foi amplamente discutido no Conselho Ultramarino, por antigos governadores de Minas, sendo ouvidos também os teólogos por ordem do rei. Os jesuítas do colégio de Santo Antão foram consultados pelo próprio Alexandre de Gusmão, que relatou em carta o resultado dessa conversa. Sobre o sistema de capitação não houvera grandes dúvidas; sobre a outra parte do mesmo sistema referente ao maneio fora maior a controvérsia 10. No texto apresentado em Março de 1734 os jesuítas João de Seixas e José de Araújo levantavam algumas questões referentes à matrícula dos escravos, defendendo que pelas escravas se devia pagar menos e que pelos escravos velhos e achacados nada. Foi só o padre José de Araújo que discutiu o tributo do maneio. Sendo este tributo novo, exigiria causas que não se verificavam na época, e o jesuíta resolveu propor um outro meio que, sendo semelhante ao maneio, se pudesse pôr em prática sem escrúpulo, ou seja, sem dúvidas teológicas sobre a nova tributação. Além dos jesuítas foram ouvidos também sobre o projecto os padres da Congregação do Oratório e outros teólogos e juristas, tendo Alexandre de Gusmão respondido às dúvidas suscitadas por seu plano de tributação num documento publicado por Jaime Cortesão, mas que não vamos aqui examinar 11. Fizeram-se cálculos sobre o acréscimo das rendas reais que ocorreria com o sistema de capitação e maneio e, embora os totais variassem, todos estavam de acordo com o benefício que dele resultaria para a Fazenda Real. D. João V resolveu, ao mesmo tempo que se discutia o projecto de Gusmão, enviar um emissário às Minas. A 30 de Outubro de 1733 o rei entregou a Martinho de Mendonça de Pina e de Proença um regimento para a sua missão no Brasil. A primeira diligência a ser feita era averiguar o número de escravos existentes em Minas Gerais, tanto pela opinião das pessoas mais práticas e verdadeiras como pelos róis do donativo, ou seja, o donativo de 125 arrobas de ouro a ser pago em 6 anos (1728-1733) destinado a contribuir para as despesas dos casamentos dos príncipes D. José e D. Maria Bárbara. Deveria também procurar conhecer as actividades desses escravos, se eram mineiros ou roceiros e, no primeiro caso, em que locais e por que período de tempo costumavam minerar. Ao governador de Minas Gerais deveria comunicar os diferentes arbítrios e pareceres que tem havido sobre a arrecadação dos quintos e sobre os meios de conservar a reputação dos diamantes, e com ele iria conversar sobre a escolha do meio mais adequado a facilitar a cobrança com a menor vexação possível dos povos. Por seu turno o governador deveria convocar os procuradores das vilas cabeças de comarca, e das outras que era costume ouvir, a fim de ouvir sua opinião sobre a questão. Não deixava, contudo, D. João V de dar a sua opinião sobre o assunto: De todos os arbítrios que têm ocorrido, parece o mais conveniente o de uma capitação geral de todos os escravos e uma contribuição proporcional aos lucros que se fazem nas Minas sem dependência de escravos, ficando os demais direitos antigos em seu vigor. Por esta última frase se vê que D. João V não aceitara a ideia de Alexandre de Gusmão de abolir os direitos antigos (dízimos, cobrança nos registos, etc.) uma vez imposta a tributação do maneio, tornando assim mais pesado o novo tributo. Quanto ao preço da capitação dos escravos, seria regulado de maneira a produzir quantia equivalente aos quintos. Recomendava ainda o rei a Martinho de Mendonça que não se concedesse perdão geral aos fraudadores, mas que se abrisse um espaço para o pagamento dos direitos fraudados e mesmo que se perdoasse parte da dívida à Coroa. A série de recomendações régias ao emissário às terras mineiras incluía ainda outras inquirições: saber se seria conveniente nas Minas reservar alguns locais minerais de ouro ou de diamantes; obter informação exacta dos lugares onde havia 9 Jaime CORTESÃO, Obras várias de Alexandre de Gusmão, Rio de Janeiro, Instituto Rio Branco, 1950, pp.57-104. 10 Alexandre de GUSMÃO, Cartas, introdução e actualização de texto por Andrée Rocha, Lisboa, Imprensa Nacional / Casa da Moeda, (1981), p.74. 11 Jaime CORTESÃO, Obras várias cit., pp. 425-428 e 432-433. 4 Maria Beatriz Nizza da Silva

Actas do Congresso Internacional Espaço Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades indícios de se poderem descobrir novas minas e se, com alguma máquina ou artifício, se poderiam facilitar essas lavras; saber em que paragens se descobriam cristais, calcedónias, ágatas e outras pedras de estimação e se convinha reservá-las em proveito da Coroa 12. O governador era então o conde das Galveias e este, conforme a ordem régia, reuniu os procuradores das Câmaras para os ouvir sobre o assunto. Os representantes dos povos mostraram-se contrários ao sistema novo, que consideravam muito violento, e ofereceram-se para assegurar anualmente o rendimento de 100 arrobas de ouro pelos quintos, livres de despesas, e pagos pela Casa de Fundição de Vila Rica, já existente, e pelas outras que se iriam criar, de preferência uma em Sabará e outra no rio das Mortes. Estas começaram a laborar a 22 de Março de 1734 e os quintos que nelas se pagaram até 22 de Março de 1735 renderam líquidas 137 arrobas de ouro 13. Na conformidade deste consenso, o conde das Galveias mandou publicar o bando de 7 de Abril de 1734 que regulamentava aquela cobrança dos quintos, mas quando o conde deixou o governo de Minas Gerais para assumir o vice-reinado na Baía, Martinho de Mendonça de Pina e de Proença combinou com Gomes Freire de Andrade, que iria suceder naquele governo, o modo de implantar a capitação. O regimento da capitação continha em sua primeira versão, de 2 de Julho de 1735, apenas 28 parágrafos, aumentados depois para 41 14. Ele apresentava algumas diferenças em relação ao projecto de 1733 elaborado por Alexandre de Gusmão, sobretudo no que se referia ao maneio, do qual o secretário de D. João V isentava muito poucas pessoas. No regimento não é mencionado o pagamento por parte médicos e cirurgiões, por exemplo. Para a execução do sistema da capitação dos escravos e censo para maneio, D. João V criou, a 28 de Janeiro de 1736, cinco Intendências da Fazenda Real em Minas Gerais (Vila Rica, Ribeirão, Rio das Mortes, Sabará e Serro do Frio), quatro em São Paulo (Goiás, Cuiabá, Paranaguá e Parapanema) e uma na Baía (Mina do Arassuaí e Fanados), e nomeou os respectivos intendentes 15. A implantação da capitação dos escravos e do tributo do maneio encontrou fortes resistências locais, pois quase todos os habitantes das Minas Gerais tinham agora pagamentos a fazer, e não apenas aqueles que mineravam. A aplicação do novo sistema de cobrança foi sobretudo posta em causa pelos moradores dos sertões, onde não existiam terras minerais e apenas fazendas de gado. Eles se amotinaram em 1736, recusando-se a pagar a taxa 16. As reclamações chegavam a Lisboa e em Dezembro de 1747 já se discutia no Conselho Ultramarino uma proposta com 17 cláusulas para a arrecadação do quinto por contrato, por 8 anos, no valor de 16 milhões de cruzados. Embora concordando que a capitação devia ser abandonada, o autor do parecer sobre aquela proposta defendeu que o melhor meio de se fazer a cobrança do que era devido ao rei ainda era aquele estabelecido pelo governador de Minas Gerais, conde das Galveias, em Março de 1734, o qual consista em segurarem aqueles povos à Fazenda de Sua Majestade 100 arrobas de ouro em cada um ano, livres de todos os gastos, e além delas tudo o mais que os quintos produzissem 17. O longo parecer redigido em Lisboa, em 1749, pelo desembargador Tomé Gomes Moreira fez a defesa da cobrança dos quintos nas Casas de Fundição. Criticou o sistema de capitação, denunciando o modo como fora violentamente implantado por Martinho de Mendonça e pelo governador Gomes Freire de Andrade e mostrando como era injusto, pois uns pagavam menos do que deviam e outros mais, além de que muitos não o deviam pagar por já contribuírem com os dízimos e outras tributações. Apontou as contradições do regimento da capitação, o qual, sendo tudo contra os ditames da razão e contra os preceitos da justiça, se devia atribuir a uma insanável loucura. Justificava a liberdade com que falava com o facto de o regimento até então não ter sido aprovado por D. João V, embora tivesse sido aplicado nas áreas de mineração. E 12 Códice Costa Matoso, Belo Horizonte, Fundação João Pinheiro, 1999, vol.1, pp. 296-299. 13 Idem, p. 499. 14 Ver este último em Jaime CORTESÃO, Obras várias cit., pp.128-137 15 Idem, pp. 141-145. 16 Ver Carla ANASTASIA, «Potentados e bandidos: os motins do sertão do São Francisco», Revista do Departamento de História (Belo Horizonte) 9: 74-85, 1989. 17 Códice Costa Matoso, pp. 432-460. D. João V e a cobrança dos quintos do ouro em Minas Gerais 5

Comunicações denunciava: Os clamores dos efeitos que tem produzido não chegam à real presença de Sua Majestade 18. Argumentava ainda o desembargador que o novo sistema nem sequer era mais rentável, ao contrário do que se tinha afirmado. O rendimento da capitação fora inferior, no primeiro ano da sua aplicação, ao que tinha sido o quinto recolhido nas Casas de Fundição entre Março de 1734 e Março de 1735: 125 arrobas de ouro para as 137 do sistema anterior. E este rendimento não era líquido, pois dele se tinha de tirar o pagamento dos funcionários das Intendências e outras despesas pagas pela Provedoria da Fazenda Real de Minas Gerais. Além disso a capitação era paga em ouro em pó, e o quinto nas Casas de Fundição só era cobrado depois de fundido e apurado o ouro, o que significava que as arrobas da capitação sofriam ainda uma quebra no momento da fundição. Portanto D. João V estava perdendo, e não ganhando, com a mudança de sistema no recolhimento de suas rendas provenientes do ouro 19. Logo no início do reinado de D. José os povos das Minas encaminharam uma representação ao novo rei sobre o deplorável estado em que a capitação tinha posto aquela capitania. Lembravam que eram fiéis vassalos do rei: com grande trabalho e risco de vidas e fazendas conservámos e estendemos os domínios desta colónia, reduzindo-a a fiel e verdadeira obediência, que no princípio não praticavam os paulistas, primeiros descobridores dela, os quais, suposto que também vassalos de V. Majde., não queriam que outros a povoassem, nem que nela dominassem as justiças de V. Majde.. Referiam ainda que, por ocasião da invasão dos franceses no Rio de Janeiro, tinham ido à custa de suas fazendas desalojá-los, estando aliás sempre prontos para o serviço do rei e para pagar o real direito do quinto na forma que é devido e posto pela lei do Reino 20. Esta representação, contudo, já é posterior à nova lei das Casas de Fundição, de 3 de Dezembro de 1750, que substituiu o complexo e revolucionário sistema da capitação e maneio, imaginado por Alexandre de Gusmão e aplicado com mão de ferro nas áreas de mineração. O projecto fora revolucionário na medida em que propunha uma revolução tributária: a substituição dos quintos e mais direitos pagos nas Casas de Fundição, os dízimos e outras imposições sobre as lavouras, os direitos pagos nos registos e nas passagens dos caminhos, e as imposições que constituíam os chamados donativos (a que a Coroa sempre recorria quando precisava de dinheiro para a guerra ou para os casamentos reais), por dois únicos tributos: a capitação paga na matrícula dos escravos e o maneio. Alexandre de Gusmão, ao apresentar seu projecto, apontara suas vantagens: uma maior liberdade de comércio, pois deixava livre a cada um o negociar com o ouro na espécie que lhe parecesse mais conveniente (em pó, em barra, em folhetas), e uma maior entrada de géneros em Minas Gerais sem pagarem mais direitos do que aqueles que estavam estabelecidos nos portos marítimos. Mas o seu projecto foi só parcialmente aplicado, pois não se verificou a abolição dos impostos que ele preconizada. Continuaram os dízimos, os direitos de passagem, etc. Mais tarde, em 1750, justificava a sua opção dizendo que eram três as classes daqueles que tiravam, ou amealhavam, ouro nas Minas: a primeira era a dos mineiros, que o extraíam da terra; a segunda, a dos roceiros e também daqueles que exerciam os vários ofícios; e a terceira, a dos comboieiros, que traziam os escravos, as cavalgaduras e o gado para vender, e a dos mercadores, que introduziam as mercadorias necessárias aquelas outras duas classes. Ora, enquanto nas Minas se pagara ao rei pelo quinto, não eram os mineiros os que faziam o extravio do ouro, mas principalmente os comboieiros e mercadores, porque à sua mão ia parar a maior parte dele. E também os eclesiásticos, que não eram revistados nos registos, mesmo levando sobre si consideráveis quantias. Portanto seu sistema, incidindo sobre praticamente todos os moradores de Minas Gerais, e não apenas sobre os mineiros, que afinal eram os que menos lucravam com a produção do ouro dado o grande investimento que tinham de fazer em escravos, restabelecia a justiça na tributação 21. Mas como seu projecto foi truncado na aplicação (e compreende-se que seria difícil pôr em prática a abolição de todos os outros impostos, na sua maioria recolhidos por meio de contratos de arrematação), poucos viram essa justiça tributária, sendo maiores os clamores contra do que os aplausos. 18 Idem, pp.464-504. 19 Idem, pp.500-501. 20 AHU, Minas Gerais, Caixa 28, doc.74. 21 Manuel da Silveira CARDOSO, Alguns subsídios para a história cit., nota 129. 6 Maria Beatriz Nizza da Silva