Entrevistado por Maria Augusta Silva MARÇO 2002

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RAUL SOLNADO Entrevistado por Maria Augusta Silva MARÇO 2002 Estreou-se profissionalmente em 1952. Um ator que do riso faz a arte da inteligência. Por dentro da sua pele estão palcos como o do Teatro Villaret. Recorda mestres da interpretação: António Silva, Vasco Santana, Alves da Cunha, João Villaret, Laura Alves. E humoristas de referência: Millôr Fernandes e Gila. Encontro na Casa do Artista, «espaço de fraternidade», onde não é permitido envelhecer. Solnado, homem da convivência, que gosta de conhecer gente nova de todas as idades; que, em conversas soltas, agora por todo o País, procura que as pessoas o conheçam melhor e, sobretudo, tenta conhecer-se melhor a si próprio.

Ao fim de 50 anos de carreira está mais próximo d'o Homem do Malmequer ou do Fidalgo Aprendiz? De ambos, com a mesma intensidade. Sendo o Fidalgo Aprendiz de um clássico que denuncia as pobrezas de espírito de um novoriquismo, o Malmequer é o português que há 300 anos não acerta na sua história. Ainda coexistem na vida portuguesa? Infelizmente, sim. Também sou um deles... O elogio do riso pode, de certo modo, interpretar-se como o mais fiel elogio da lucidez? Rir é um exercício de inteligência, com um lado curioso: uma plateia é capaz de se levantar para aplaudir a interpretação de um drama; no entanto, ninguém se põe de pé para bater palmas ao riso. As pessoas riem-se com emoção, mas a emoção fica sempre sentada. Nunca teve uma plateia que se levantasse para o aplaudir? Já aconteceu, talvez não apenas pelo riso. O riso não pode assumir uma interpretação dramática? Muitas vezes sim, mas não é sentimental, é cerebral. Sente-se um ator mais cerebral do que emotivo? Metade, metade. Alguém disse que eu era um cómico terno, creio que foi o César de Oliveira. Será por via da ternura que não tem idade para o público? Quando me perguntam como crio o riso, digo: não sei. E não sei mesmo, não faço a menor ideia, nem isso me preocupa, porque, no dia em que mexer nesse mecanismo, tenho medo de o perturbar.

Deixem-me estar como estou nesta doce inconsciência e ignorância em relação a esse aspeto. Nunca o riso se tornou numa armadilha para si? Existem dois aspetos: um, é o de fazer rir só pela música do riso; o outro, como forma de protesto. Quando canto Malmequer, sou um protestante, quando falo de guerra, sou um protestante. Usou alguma vez o riso como arma ideológica? Ideológica, não. Mas como ideal, sim, com um sentido de justiça e civilidade, sem dúvida. Quando pensamos em audiências de programas televisivos ao nível de um Zip-Zip ou da Cornélia, somos levados a perguntar: não será mais possível conquistar públicos por meio da qualidade? Que se passa hoje? Não faço a mínima ideia. Faz-me confusão ver um público que já escolheu qualidade optar agora pela facilidade. Os públicos vão mudando... Mas os públicos deveriam estar mais apurados, porque o nível da educação, em Portugal, melhorou. Isto é paradoxal. Talvez valesse a pena fazer-se um estudo sociológico aprofundado. A televisão procura-o? Como autor, não, como intérprete entro em algumas coisas. Mas, com toda a franqueza, a televisão não me faz falta. E o palco? O palco faz-me muita falta. É chão firme.

Como viu desaparecer palcos que faziam parte da personalidade de Lisboa? Com indignação. Alguém responsável já devia ter dito, por exemplo, que o Parque Mayer nunca desaparecerá, porque é um património comum, uma pérola do mundo do espetáculo no meio da cidade, independentemente das beneficiações necessárias. E porque não há ninguém a representar no Cineteatro Monumental? É um cineteatro... Diz-se que o público já não vai ao Parque Mayer, fica em casa agarrado à televisão... Não é verdade. Ainda há dias fui ver uma revista e a sala estava esgotada. Teatro, cinema, televisão, revista são alguns dos seus registos artísticos. É fácil ser um artista multifacetado? É tudo inquietação. Que inquietação? O desejo de fazer outras coisas e de me experimentar, o que acho saudável, mesmo correndo riscos enormes. Correr riscos, porém, é das coisas mais saborosas da vida, especialmente quando se vence a barreira. Em palco, sente-se sempre em risco? Disse uma vez que se não fosse ator gostava de ser aviador, pois nunca se sabe quando o avião cai. No mundo do espetáculo também é assim. A dor não será tão física, mas o fracasso é de uma grande violência. Houve fracassos que lhe tivessem doído muito?

Sim. Sempre entendi, contudo, que um fracasso deve servir para se ter a raiva benigna que leva a pegar no amontoado dos destroços e procurar construir um êxito. Em que medida o riso é o mistério insondável das lágrimas? Uma das razões por que os humoristas são tristes é por verem, primeiro que ninguém, os defeitos e as injustiças. Como vê as guerras fora da cena artística, depois de ter conhecido um dos seus maiores êxitos com a sua irónica «ida à guerra»? Se as guerras não fossem dramáticas, seriam tão ridículas que só suscitariam o riso. O ser humano deve ter defeitos, de contrário era uma chatice, com tantos santos! Mas seria bom que Deus rapasse o egoísmo dos homens. Haveria um mundo diferente. Crente? Sou. Há, hoje, seis biliões de pessoas, portanto, seis biliões de deuses. MARIA AUGUSTA SILVA