MACAU HISTÓRIA, CULTURA E LITERATURA. Sérgio Pereira Antunes. (Apostila 1)



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Transcrição:

MACAU HISTÓRIA, CULTURA E LITERATURA Sérgio Pereira Antunes (Apostila 1) 2010 1

INTRODUÇÃO Este trabalho tem a intenção de traçar linhas gerais sobre o universo cultural do pequeno território de Macau, por meio de uma panorâmica de sua história, cultura e literatura. No estudo desse universo, o presente trabalho abordará: a) a História de Macau, mostrando com esta é contada pelos portugueses e pelos chineses, por consequência dessas versões distintas da escrita de sua história, o trabalho pretende também discutir os problemas de sua historiografia e a viabilidade de contar sua História sob a perspectiva de uma História administrativa; b) a Cultura de Macau, debruçando-se sobre a justaposição e amalgama de duas culturas distintas no mesmo território; e c) a literatura, estudando suas especificidades, nas línguas portuguesa, chinesa e patuá, além de breve referência às escolas literárias e a alguns de seus escritores. O presente trabalho, Macau: História, Literatura e Cultura, foi criado como material de apoio ao curso de extensão universitária, na modalidade difusão, na área de Chinês, junto ao Departamento de Letras Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, no intuito de oferecer aos interessados a oportunidade de conhecer elementos 2

básicos da história, cultura e literatura de um lugar universalisado na China. Para atender seu objetivo, o trabalho cuida de uma visão basilar histórica, cultural e literária, sem maior aprofundamento. Por outro lado, essa visão generalizada tem o condão de dar aos interessados conhecimentos fundamentais, atraindo seu interesse para um estudo futuro mais aprofundado e viabilizando estudos comparados no âmbito das Letras em geral. Ante a abrangência do objetivo do referido curso de extensão, no presente trabalho, cada capítulo recomenda uma série de leituras complementares, visando ampliar a discussão e interpretação das questões aqui apresentadas. A bibliografia utilizada baseou-se nas obras disponíveis em língua portuguesa acerca da história, cultura e literatura e, em especial, nas obras produzidas em Macau desde a reunificação com a China além das obras produzidas pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Sobre Macau Macau é, hoje, uma Região Administrativa Especial da República Popular da China, como exemplo concreto do conceito um país, dois sistemas. O território teve diferentes status jurídicos em face da Comunidade de Nações, no correr de sua História. Hoje, pós um processo de reunificação como a China, conta com alto grau de 3

autonomia e atua de per si em diferentes relações internacionais com exceção dos assuntos relativos à defesa e relações exteriores que são controlados pelo governo central da República Popular da China. Extensão territorial, população, língua e moeda de Macau Macau, em especial nos últimos anos, tem mostrado várias peculiaridades. Dentre elas é de se registrar que: seu território vem crescendo. Desde 1863, Macau expandiu seu terreno através de aterros. Macau, na Reunificação1, era constituída pelo enclave histórico, a Ilha de Taipa2 (Dang Zai - 氹仔) e a Ilha de Coloane (Lu Huan - 路 環 ). Entretanto, os aterramentos feitos e o assoreamento do delta do Rio das Pérolas têm acrescido porções substanciais ao território. Destacam-se os aterros da Ilha Verde, que há tempos incorporaram-na ao enclave; os aterros do NAPE, que criou uma cidade completamente nova no enclave, e os aterros do COTAI, que une as das ilhas (Taipa e Coloane), além da construção do aeroporto que tem a pista construída em aterro sobre o mar. Por essa razão, as estatísticas de Macau mostram, com o passar dos anos, extensão territorial crescente: 11,6 km2, em 1912, 26,8 km2 em 2002; 27,5 km2 em 2004; e em 2008, 29,2 km2. Além do crescimento do território por aluvião ou aterramento, Macau ganhou mais 1,0926 km2 pela alocação do novo campus da Universidade de Macau na 1 Reunificação é o termo amplamente empregado, em português em Macau, para se referir à transferência da soberania à República Popular da China, em 20 de dezembro de 1999. Equivale, em inglês, ao termo Handover. 2 A Ilha de Taipa era, antes, constituída de três elevações: Taipa Grande, Taipa Pequena e Iat Lap Mai. 4

Ilha da Montanha (Hengqin - 横 琴 ) que hoje pertence à Província de Cantão (Guangdong), ficando separado da ilha de Coloane por um estreito canal de água do mar. Trata-se de território cedido à Macau, à semelhança do instituto de comodato, para uso gratuito pela referida Universidade. A respeito, de acordo com decisão do Comitê Permanente do 11º. Congresso Popular Nacional, o novo campus ficará sob a jurisdição da Região Administrativa Especial de Macau, aplicando-se ali, portanto, a legislação em vigor em Macau A população também é muito flutuante, em razão dos turistas e pessoas de passagem. Em 2009, a população residente era de 542.200 pessoas, resultando numa densidade demográfica de 18.569 km2. Há uma importante população flutuante constituída pelos turistas, que, em 2009, registraram 21.752.800,00 entradas. As línguas oficiais são o Chinês e o Português. O inglês é usado com freqüência. Fala-se ainda o Patuá ou Papiaçan ou ainda Patois, uma mistura das línguas com influência na região como o português, cantonês, inglês e espanhol. Trata-se da língua castiça dos macaenses e que tem em José dos Santos Ferreira3 o expoente de sua literatura, como será visto a frente. Nesta introdução merece ainda comentar que a moeda de Macau é a Pataca. Moeda comumente memorizada pelo mundo literário infanto-juvenil como a moeda Número 1 do Tio Patinhas. Entretanto, sua denominação não vem da criação de Walt Disney. É muito 3 José dos Santos Ferreira, poeta nascido em Macau em 1919 e falecido em Hong Kong em 1993, escreveu certa de vinte títulos, em prova e verso, nos gêneros de crônicas, peças de teatro, pequenas histórias, novelas e outros. Entre tantas obras, vale citar: Poema di Macau e Doci papiaçám di Macau. 5

mais antiga. A Pataca era a moeda corrente do antigo Império Ultramarino Português e que chegou a ser também utilizada no Brasil durante o período colonial. 6

Mapa das Ilhas de Taipa e Coloane em 1999 7

Mapa das Ilhas de Taipa e Coloane em 2004 8

CAPÍTULO I HISTORIOGRAFIA DE MACAU Os interessados na História de Macau, no Brasil, terão a oportunidade de conhecê-la de maneira breve e bastante objetiva. Contudo, tal modo breve e objetivo da História de Macau não é fruto da concisão brasileira a respeito do tema. Na verdade, a objetividade e brevidade são devidas ao pouco que se pode encontrar no Brasil acerca do longínquo Macau. Entretanto, a História de Macau é, na Europa e no Oriente, assunto para controvérsias. Sua historiografia é díspar, por exemplo, ao se discutir a forma como se deu o estabelecimento dos portugueses no território. Parece-nos que tal disparidade é devida a inúmeros fatores. Ao menos três deles nos parecem relevantes. Primeiramente porque a historiografia é escrita a partir do ponto de vista de seu redator, que, por sua vez, pode estar vinculado a uma tendência dominante. Segundo, porque a mesma fonte pode ser interpretada diversamente por diferentes estudiosos, mesmo quando sem qualquer vinculação doutrinária ou dominante. 9

Terceiro, porque a História mais completa e precisa depende das mais diversas fontes, que no caso de Macau deve abarcar fontes portuguesas, chinesas e de outros envolvidos como território. Em razão desses fatores, dados a título de exemplificação, Macau pode ter hoje várias Histórias, ou melhor, versões de História. Sob uma visão sociológica ou antropológica, é possível admitir que Macau apresenta duas cidades sobrepostas: uma chinesa e outra cristã. É de se conceber também a inexistência de uma História única, mas sim a sobreposição de duas versões de História. De autores portugueses, é evidente a História contada a partir dos documentos produzidos em língua portuguesa como são exemplo: os relatos dos navegadores, dos capitães das Expedições ao Japão, dos governadores nomeados para atuarem em Macau; documentos administrativos etc. A versão da História escrita por autores portugueses não destoa, na sua generalidade, do que é contado por outros ocidentais. A exceção, entretanto, pode ser a de Andrew Ljungstedt (1759-1835) que, em 1832, publicou, em inglês, a primeira História de Macau. Sua obra era bastante controversa, mas que foi considerada o primeiro estudo histórico científico sobre Macau4. O citado historiador, agente comercial e cônsul sueco, residente em Macau desde 1813, onde faleceu, em 4 Conforme afirmação do editor da edição de 1992, em Hong Kong, da Vickings Publications. 10

1835, em sua obra An historical sketch of the portuguese settlements in China; and of the Roman Catholic Church and Mission in China, insistiu na tese de que os portugueses não teriam direito ao território de Macau a não ser pelo aforamento que pagavam ao Império Chinês. Os documentos em que, em grande parte, se baseou Ljungstedt teriam sido colecionados pelo Bispo eleito de Pequim, Dom Joaquim de Souza Saraiva (1765-1819)5, na intenção, de um dia, escrever a História de Macau. Tais documentos, no entanto, acabaram sendo entregues a Ljungstedt, para que a tarefa fosse levada a cabo.. Tendo os documentos perecidos6 e ante a inviabilidade de conhecer a interpretação de Dom Joaquim Saraiva acerca deles, inicia-se a controvérsia que tanto os portugueses como os macaenses tinham interesse em tê-la resolvida, mediante confirmação da legitimidade da soberania portuguesa sobre Macau. Embora suspeito o perecimento dos documentos, embora estranhável a troca de documentos importantes para a confecção de obra concorrente entre um católico (Bispo eleito de Pequim) e um protestante (Ljungstedt), no momento em que duas grandes igrejas cristãs se debatiam, e ainda em que pese os interesses comerciais de outras nações européias envolvidas no território à vista dos supostos privilégios portugueses perante os chineses, sua obra marcou indubitavelmente a historiografia de Macau. Em 1902, Carlos A. Montalto de Jesus (18631927) alcançou sua consagração como historiador e 5 Data de Nascimento, conforme LJUNGSTEDT, e de falecimento conforme BRAGA, 1987, p.8 Conforme afirmação de Fr. Manuel Teixeira, em 1 de janeiro de 1992, publicado no prefácio à edição de 1992 da obra de Ljungstedt. 6 11

como macaense 7, quando publicou a primeira edição de Macau Histórico, originariamente escrita em inglês, rebatendo a tese de Ljungstedt, até então, predominante. Em sua obra, Montalto apresentou estudos que, sobre documentos coevos, foram decisivos para provar que desde 1557, a colônia portuguesa de Macau adquirira, de facto, cedida pela China, uma soberania plena e, sob o ponto de vista do direito internacional, legítima, cujo território constituía, contra ventos e marés, a única testa de ponte não só de Portugal, mas também de todo o mundo ocidental e cristão na fechada China, até à Guerra do Ópio 8 A segunda edição da obra de Montalto, em 1926, não representou qualquer glória. Ao contrário, foi considerada uma edição maldita. Quando posta a venda em Macau, seus exemplares foram apreendidos e aqueles já vendidos foram confiscados para serem destruídos na fogueira9. Vale lembrar que se tratava do fim da primeira República Portuguesa, período em que grupos republicanos conservadores foram perseguidos para implantação de um Estado Novo. A obra de Ljungstedt também foi contraditada por Jack M. Braga. Ao publicar A Voz do Passado: redescoberta de A Colecção de Vários Factos Acontecidos nesta mui nobre cidade de Macao, Braga asseverou: O livro de Ljungstedt contém várias distorções vergonhosas de factos históricos, pelos quais o nome de Portugal se vê ferido como jamais foi (BRAGA, 1987, p.8). Braga estava convencido que um dos 7 Conforme Carlos Augusto Gonçalves Estorninho, em prefácio à edição portuguesa de Montalto de Jesus em 1990. 8 Idem. 9 Idem. 12

documentos, sobre o qual baseou seu trabalho, era obra de D. Joaquim de Souza Saraiva, bispo eleito de Pequim (BRAGA, 1987, P.7) e, portanto, um dos documentos em que Ljungstedt teria se baseado para escrever sua obra. Na historiografia sobre Macau, escrita por ocidentais, é de se observar que vários trabalhos parecem se basear nessa coleção de vários fatos já que cronologicamente se repete de maneira bastante basilar nas obras de Eudore de Colomban Resumo da História de Macau, Cesar Guillen-Nuñez, Macau e Geoffrey C. Gunn Ao encontro de Macau: uma cidade-estado portuguesa na periferia da China. Registre-se, entretanto, que as obras dos dois últimos autores se entrelaçam, provavelmente, em razão das fontes e da bibliografia comum a partir de Colomban. Este, por sua vez, talvez tenha se valido da referida coleção e com certeza Geoffrey C. Gunn, em abril de 2010. trabalhou sobre a obra de Ljungstedt e Montalto de Jesus. A respeito, Colomban oferece, em sua obra, leitura de trechos desses autores e de vários outros documentos. Cabe registrar que a obra de Colomban, editada em 1927, é resultado de um concurso público, de 1923, para adoção de livro-texto para os cursos de História nas escolas públicas de Macau.. Ao se falar da historiografia escritas por ocidentais é oportuno lembrar que as obras de Ljungstedt, Montalto, Guillen-Nuñez e Gunn foram escritas em inglês. Destaque-se, também, que os dois primeiros autores acima referidos tiveram suas obras versadas para o chinês. 13

Hoje, nas diversas bibliotecas de Macau, pode-se levantar inúmeras obras a compor uma historiografia macaense. Algumas dessas bibliotecas têm divisões especiais para a temática, como ocorre, entre outras, na Biblioteca Central de Macau, na Biblioteca Internacional da Universidade de Macau e no Instituto Ricci. Entre outras tantas obras10, ainda, merecem menção: Macau: Um Município com História, de Luís Gonzaga Gomes (1907-1976), figura incontornável no âmbito da história e cultura de Macau 11; História de Macau, de Gonçalo Mesquitela; Panorama da História Institucional e Jurídica de Macau de Antonio Manuel Hespanha (1945); diversos trabalhos12 de Padre Manuel Teixeira (1912); Arquivos do Entendimento: uma visão cultural da história de Macau, de Antonio Aresta em conjunto com Celina Veiga de Oliveira; e History of Macau: a student s manual de Rosmarie Wank-Nolasco Lamas. Estas duas últimas obras, pela forma como estão redigidas, parecem ter sido preparadas para a entrada em vigor de Macau como Região Administrativa Especial da República Popular da China. Obviamente, em razão da dificuldade com a língua, a historiografia de origem chinesa, é de árduo levantamento. Para tanto, nos baseamos, em grande parte, nas notas bibliográficas de Cathryn Hope Clayton, em sua tese de doutorado: If we are not different, we will cease to exist : culture and identity in transition era Macau. Dos livros, em chinês, ali arrolados, destacamos: História 10 Nosso propósito aqui não é desmerecer outros excelentes escritores e trabalhos de inestimável valor para a História de Macau. Entretanto, aqui é necessário ser breve e por isso deixamos de relacionar incontáveis trabalhos de importância e envergadura. 11 Conforme Antonio Aresta e Celina de Oliveira se referem ao autor na edição de 1997. 12 Entre outros: Bela Vista Hotel, Camões esteve em Macau, O Comércio de Escravos em Macau, Os Macaenses, Miguel de Arriaga, Pagodes de Macau e Toponímia de Macau. 14

de Macau e a Expulsão de Piratas, de Daí Yixuan, em 1957; Macau: 400 anos, de Fei Chengkang, de 1988; História de Macau, de Huang Hongzhao, de 1987; Macau como ponte de disseminação da cultura chinesa no ocidente do Século XVI ao XIX, de Huang Qichen; Sobre o significado histórico do Colégio de São Paulo em Macau, de Liu Xianbing, de 1994; Material histórico sobre Macau nas Notas breves em viagem de inspeção ao Cantão e Fujian de Du Zhen, em 1996, e Material histórico sobre Macau no Memorial do Cantão de Tian Shengjin, de 1997, ambos de Tang Kaijian; e Macau na História e Cultura Chinesa, de 1995, de Zhang Wenqin. Em chinês, logramos ainda encontrar: História de Macau, de R.P.Henri Bernard, que discorre sobre Matteo Ricci; a obra de Lin Zi Huang em que tratou das relações entre Macau e China durante os Séculos XVI e XVIII; e a Enciclopédia de Macau, interessante repositório de verbetes temáticos escritos por diversos autores estrangeiros, macaenses e chineses. A respeito das fontes primárias chinesas há preocupação de que documentos importantes tenham sido destruídos nos diversos infortúnios que assolaram a China, como as Guerras do Ópio, os Ataques Anglo-franceses, a Revolução Republicana e a Cultural. Vários trabalhos estão ocorrendo no sentido de apresentar fontes básicas para a nova escrita da História de Macau. As traduções das Chapas Sínicas são exemplo de fundamental importância. Neste ponto, é de se destacar a coleção Correspondência Oficial Trocada entre As Autoridades de Cantão e Os Procuradores do Senado 15

Fundo das Chapas Sínicas em Português e as inclusas observações de Jin Guo Ping e Wu Zhiliang; Colecção de Fontes Documentais para a História das Relações entre Portugal e China e outras iniciativas da Fundação Macau, Instituto Cultural de Macau e dos órgãos públicos da Administração de Macau, com colaboração do Governo Português, em especial, seus arquivos da Torre do Tombo. A dificuldade com a língua marca a historiografia de Macau. Por óbvio, essa dificuldade não é exclusividade de Macau. Por exemplo, os leitores da História Armênia enfrentam dificuldades com os nomes próprios armênios que ao serem grafados, em letras latinas, troca-se as surdas pelas sonoras em razão da distinção entre o armênio oriental e o ocidental. Os leitores e estudiosos da História da China e de Macau enfrentam problemas semelhantes, mas também mais complexos. Observamos que diversas são as grafias dadas, por exemplo, aos imperadores chineses: para Ljungstedt, o quarto imperador da Dinastia Qing (1736-1795) seria Keen-lung, seu editor em 1992, esclarece que, em pinyin, seria Qianlong. Já Aresta grafa-o como Kiam Long. Outro exemplo é o caso dos títulos dos oficiais na Província do Cantão: Ljungstedt ao se referir ao Vice-Rei do Cantão (autoridade máxima abaixo do Imperador) utilizou Tsung-tuh, seu editor em 1992, em pinyin, esclarece tratar-se de Hai-kwan Keen-tuh, conhecido entre os europeus como Happo; Jin Guo Ping e Wu Zhiliang, por sua vez, esclarecem que a autoridade máxima era o Tongzhi, conhecido pelos portugueses como Mandarim da Casa Branca (Mandarim de Xiangshan na Dinastia Qing) 16

que tinha sob seu mando o Zuotang (ou ainda Tso-Tang13) autoridade chinesa distrital e Hapo, autoridade fiscal chinesa local. Note que Hapo foi grafado por Nuñes como Happo e por Colomban como Ho-Pu. Esse mesmo termo se confunde com o Hai-Kwan Keen-tuh, referido pelo editor de Ljungstedt em 1992. Logo, pela mera e simples grafia a compreensão da História, em especial administrativa, de Macau resulta seriamente comprometida. Correlação de Grafias Dinastia período Ljungstedt Editor 1992 M I N G 1522-1566 Kea-tsing Jiajing Aresta Chia Ching 1567-1573 1573-1619 Lung Ching Wan leih Wan Li Wanli 1620-1621 1621-1628 Tai Chang Teen-ky Tian Chi Tianqi 1628-1644 1644-1661 Hespanha Chung Cheng Shunzhi 1662-1722 Shun-che Kang-he 1723-1735 Yang-ching Q 1736-1795 Keen-Lung Yong Yung zheng Cheng Qianlong Kiam Long I N G 1796-1820 Kea-King Chia-ching 1821-1850 Taou-Kwang Tao-Kuang Kangxi Shun-chih Kangxi Kang-hsi Yung-cheng Chiang lung 1851-1861 Hsien-feng 1862-1874 Tung-chih 1875-1908 Kwang-Hsii 1909-1911 Huan-tung. Está aberta a oportunidade para falantes das línguas ocidentais, que possam também ler documentos 13 Para Aresta, o Tso-Tang era alternativamente também tratado como Mandarim de Mong-Há. 17

chineses e outras fontes coesas, elaborarem uma historiografia definitiva à Macau. Oportunidade, que parece estar reservada, em grande parte aos macaenses da gema, por suas qualidades. 18

CAPÍTULO II HISTÓRIA DE MACAU: PERSPECTIVAS CHINESA E PORTUGUESA A História de Macau, como vimos em sua historiografia, é controversa em determinados aspectos, em especial pelo ponto de vista ou pela perspectiva em que é contada. Por essa razão, parece-nos que é oportuno apresentar a perspectiva chinesa e a portuguesa da História de Macau. HISTÓRIA DE MACAU PERSPECTIVA CHINESA14 Desde sempre, Macau foi parte integrante da China. Já nos primórdios da unificação dos reinos chineses, pelo Imperador Qin Shishuan, Macau figurava no mapa da China, sob jurisdição de Jun15 de Nanhai, distrito de Panyu, e daí passando para a jurisdição de Jun de Dongguan, a partir da Era Jin, até o estabelecimento da Era Sui, quando Macau regressou à tutela do distrito de Panyu. Com a fundação da Dinastia Tang, Macau retornou para o distrito de Dongguan. O ano 22 da Dinastia Song 14 A perspectiva aqui trazida é a história publicada pelo Governo de Macau no Livro do ano 2008. Ajustamos, entretanto, alguns termos e estruturas frasais para o modo de escrita adotada no Brasil. 15 Zona administrativa da antiguidade, de categoria inferior a distrito. 19

do Sul, 1152, reinado de Shao Xing, marcaria a desanexação de Guangdong dos distritos de Nanhai, Punyu, Xinhui e Dongguan, e suas ilhas ao largo da costa chinesa, que passaram a formar o distrito de Xiangshan, nele integrando Macau. A denominação em chinês do nome de Macau conheceu várias versões Haojing (Espelho da Ostra), Jinghai (Mar do Espelho) Haojiang, Haijing, Jinghu (O Lago do Espelho, Haojingao e Majiao. Sendo Haojing a nomenclatura mais antiga encontrada em registro escrito. A referência mais antiga da atual denominação, Aomen, foi encontrada em 1564, (Ano 43 do imperador Jiajing, da Dinastia Ming), no relatório que Pang Shangpeng submeteu ao imperador e segundo o qual... a Sul de Guangdong, se localiza o distrito de Xiangshan, encostado ao mar, desde Yongmai a Haojingao, a distância é de um dia de viagem. Em Haojunggao há duas colinas dispostas gente a frente, como duas torres, denominadas por Nantai (Torre do Sul) e Beitai (Torre do Norte), ou seja Aomen, ladeado de mar, onde povos estrangeiros aportaram para fazer comércio.... No Aomen Jilue (Crônicas de Macau), editado durante o reinado de Qianlong (1736), pode se ler a designação Haojingao, remontando à história Ming, que lhe dá o nome de Aomen, a Sul despontam quatro colinas, banhadas por águas do mar, em longitude e latitude, cruzando-se, sendo por isso chamada a Porta de Cruz ou Aomen. O mais remoto registro do nome de Macau pode ser encontrado numa carta do escritor português Fernão Mendes Pinto, datada de 20 de Novembro de 1555. 20

A partir do Século XV, Portugal começou a expandir o comércio até ao Oriente, estabelecendo contatos e fixando-se em territórios de África e Ásia. Em 1553, invocando pretexto de secar mercadorias alagadas, os portugueses, obtiveram autorização das autoridades chinesas locais para permanecerem temporariamente na península de Macau e fazerem comércio, mediante o pagamento de um foro ao Governo chinês, prática que teve início por alturas de 1573. Desde a ocupação pelos portugueses, até 300 anos antes da Guerra do Ópio, a soberania de Macau pertenceu às dinastias Ming e Qing, cujos governos administravam o território segundo a lei, cobravam impostos, estabeleciam serviços governamentais e tribunas, tropas e alfândega, gerindo, enfim, Macau dentro dos princípios que definem a soberania, nas questões de solos, tropas, justiça e aduaneiras. No exercício desta soberania, os Governos das dinastias Ming e Qing adotaram a política de controlar os estrangeiros por meio dos estrangeiros, permitindo que os portugueses administrassem os seus próprios assuntos e gerissem as suas causas autonomamente, para que pudessem ser mantidos o esquema econômico e a ordem social dos bairros onde residiam. Em 1583, os portugueses de Macau estabeleceram um senado encarregado de tratar os assuntos de foro interno dos portugueses. As instituições e organismos dos portugueses de Macau não possuíam, assim, no plano político e dentro do contexto de soberania, a natureza de órgãos institucionais, tratando-se tão somente de uma gestão por delegação de poderes pelos governos dos Ming e Qing. 21

Finda a Guerra do Ópio, os governos da China e da Grã-Bretanha assinaram o Tratado de Nanjing, com o Governo Qing a conceder a parcela de Hong Kong aos britânicos, acontecimento que os portugueses aproveitaram para fazer valer algumas reivindicações, como a isenção do pagamento de foros e para ocupar gradualmente Macau, obrigando em 1887 o Governo Qing a assinar o Tratado Amigável de Comércio SinoPortuguês, através do qual os portugueses adquiriram o direito de gerir definitivamente Macau. Em 1928, o Ministério dos Negócios Estrangeiros da China declarou formalmente junto da parte portuguesa a nulidade do tratado. Após a sua fundação em 1949, a República Popular da China declarou o não reconhecimento de todos os tratados firmados em condições de falta de equidade, tendo, em 8 de março de 1972, enviado uma carta a Comissão de Descolonização da ONU, manifestando a sua posição e relação aos territórios de Hong Kong e Macau. Em 8 de fevereiro de 1979, com o restabelecimento das relações diplomáticas, China e Portugal, acordaram quanto à questão de Macau um território chinês sob administração portuguesa, uma questão legada pela História que, em altura oportuna, seria objeto de solução através de negociações amistosas. A questão de Macau surgiu na ordem do dia das negociações, depois de solucionado o problema relativo a Hong Kong em 1984, com o início das reuniões SinoPortuguesas sobre a questão de Macau, em Pequim, em junho de 1986, e que se estenderam por um total de quatro 22

rondas. Em março de 1987, as duas partes chegaram a um consenso quanto aos termos dos acordos e memorandos, dando-se assim as conversações por concluídas, com êxito, a 23 do mesmo mês. No dia 26 de março de 1987, a China e Portugal firmaram em Pequim, no Palácio do Povo, a Declaração Conjunta Sino-Portuguesa. Pela parte chinesa interveio o vice-ministro dos Negócios Estrangeiros, Zhou Nan, e pela portuguesa o embaixador Rui Medina, ambos chefes das delegações dos respectivos países. A 13 de abril de 1987, a China e Portugal assinaram formalmente a Declaração Conjunta SinoPortuguesa, pela mão dos respectivos primeiros-ministros Zao Ziyang e Cavaco Silva, em cerimônia solene realizada no mesmo Palácio, com a presença de Deng Xiaoping. O documento, que estabelece a retomada do exercício da soberania sobre Macau pela República Popular da China, foi ratificado pelos parlamentos dos dois países, respectivamente em junho e dezembro do mesmo ano. Em 15 de janeiro de 1988, a Declaração entrou em vigor, iniciando-se o Período de Transição que antecedeu a transferência dos poderes políticos. Um ano depois, em 13 de abril de 1988, na primeira reunião da VII Assembleia Popular Nacional foi deliberada a criação da Comissão de Elaboração da Lei Básica de Macau onde se consagravam as orientações políticas e a legislação a aplicar na futura Região Administrativa Especial de Macau....... Após quatro anos de trabalhos, passando por um processo alargado de consultas públicas, debates realizados de forma democrática, alterações e aperfeiçoamentos, a Comissão 23

aprovou, no mês de janeiro de 1993, projeto da Lei Básica, concluindo-se também os trabalhos de seleção dos desenhos da bandeira e emblema da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM). A lei básica da RAEM da República Popular da China foi aprovada em sessão da Assembleia Popular Nacional realizada em 31 de março de 1993. No mesmo dia se promulgou a referida lei para vigorar a partir de 20 de dezembro de 1999. O Período de Transição de 15 de janeiro de 1988 a 20 de dezembro de 1999 serviu essencialmente para assegurar a manutenção da estabilidade social, o fomento do progresso econômico e criar condições para a transferência sem sobressaltos. Em 29 de abril de 1998, a comissão permanente da Assembleia Popular Nacional aprovou a composição da Comissão Preparatória do Estabelecimento da RAEM, tendo como principal missão a criação da comissão de seleção do primeiro governo da RAEM, composta por 200 membros, de entre cidadãos residentes permanentes em Macau. Em 15 de maio de 1999, a comissão elegeu, sob votação secreta, Edmund Ho Hau Wah, para o cargo de Chefe do Executivo da RAEM, que tomou posse em 20 de dezembro 1999. 24

HISTÓRIA DE MACAU PERSPECTIVA PORTUGUESA Com a chegada do navegador Jorge Álvares e outros companheiros de viagem, que juntos lograram realizar trocas comerciais muito vantajosas, em 1515, na Ilha de Sanchuão, temse o primeiro registro do estabelecimento dos portugueses na China (COLOMBAN, 1980). À época, no Império Celestial, reinava a Dinastia Ming (1368Jorge Álvares Monumento erigido em 1953 na 1644) que dominava a área Avenida da Praia Grande semelhante a da China atual, as ilhas adjacentes e vassalava a Indochina. Os portugueses passaram a aportar em várias ilhas e pontos do litoral chinês. É de se destacar a presença de portugueses nas ilhas do delta do Rio das Pérolas (Sanchuao, Lapa, D. João, Montanha, Coloane, Taipa, Lampacao) e nas costas das Províncias de Fujian e Zhejiang. O comércio entre Europa e os chineses era feito na ilha de Lampacao. De 1517 a 1521, Tomé Pires chefiou a primeira embaixada à Pequim. Não obstante o Edito Imperial de 1522, proibindo o comércio com portugueses, os negócios prosseguiam em Lampacau e Sanchoão. Acerca do estabelecimento português em Macau, embora acomodação já ocorria desde 1522, há registro de que em 1535 os chineses deram permissão para que os portugueses se fixassem temporariamente para secar suas mercadorias. Em 1557, com o fechamento de Lampacao ao comércio pelos chineses, as autoridades de Cantão permitiram a fixação 25

Encenação no Museu de Macau da chegada dos primeiros contatos entre portugueses e chineses dos comerciantes num enclave (istmo) deserto, conhecida pelo nome de Amagao (LJUNGSTEDT, 1992, p. 9). Amagao, em verdade, é o nome do templo ainda existente no istmo e dedicado a A-ma. A denominação de Macau, entre várias especulações16, origina-se do Templo de Ama, ou seja, A-ma-gau, que foi transcrita pelos primeiros colonos portugueses no Século XVI como Macau. Desde o início da presença portuguesa, Macau era administrada como uma plutocracia, isto é, governada e administrada por juntas dos comerciantes mais abastados (GUILLEN-NUNES, 1984, p.9). Macau, integrando o Império Português como um território do Vice-reino de Goa, passou a ser administrada pelo Capitão-mor da expedição ao Japão. A expedição do Japão, por sua vez, durava aproximadamente um ano e a presença da autoridade suprema, o Capitão Mor, em Macau, resumia-se aos longos períodos das monções. Desta forma, Macau pode 16 Benilde Caniato traz outras interpretações com precisão linguística. Para ela a evolução Amagau > Amacau > Macau não parece natural uma vez que as oclusivas sonoras não passam a surdas. Entretanto, pela expressão embocadura de A-ma, ou seja, A-ma hau, com o h aspirado podendo om facilidade passar a k aspirado, construindo-se, então, o termo A-ma-k- au > Amacau > Macau. (CANIATO, 2004, pp 115-116). 26

elencar um grande número de governadores. Durante 1562-1564, houve também um capitão permanente para Macau: Diogo Pereira. Durante a submissão da coroa portuguesa à espanhola, ou seja, durante os reinados dos Felipes, Macau desenvolveu um corpo administrativo bastante democrático, semelhante às cidades-estados européias. Em 1585, surgiu o Senado (Câmara), para o qual a municipalidade elegia dois juízes, três conselheiros e um procurador (GUILLEN-NUNES, 1984, p. 13). Em 10 de abril de 1586, Macau e Évora foram agraciadas com os mesmos privilégios. Fato que revela a alta consideração atribuída a Macau. Em 1623, foi apontado Francisco Mascarenhas como o Capitão-mor permanente para Macau. Por muitos séculos assim funcionou até que no Século XIX, o movimento constitucionalista europeu pôs fim à soberania dos reis absolutistas e criou a supremacia da soberania dos Estados. Nesse Século, a China estava debilitada e os países europeus impunham-se perante o Império chinês. Em 1887, a China reconheceu, por tratado, a soberania portuguesa sobre o território de Macau. Por todo o Século XX, Macau beneficiou-se da neutralidade de Portugal. Por isso passou incólume pelas grandes Guerras e todas as revoluções que grassaram o continente chinês. Com a criação da Organização das Nações Unidas (ONU) e o desenvolvimento de seus trabalhos, Macau foi arrolado na lista de territórios candidatos a 27

autodeterminação, na forma da Resolução 1542 (XV). Tal fato permite deduzir que a comunidade internacional pretendia conferir a Macau o status de um Estado soberano. Contudo, tanto Macau como Hong Kong17 foram, ao final, desqualificados e deixaram de figurar na lista (CASTRO, 2003, p. 31). Não obstante, Macau permaneceu na condição de colônia portuguesa até a Revolução dos Cravos, em 1974. Com a Revolução dos Cravos, em 1974, foi decretado o fim da política colonialista portuguesa. Abriuse, então, a discussão acerca do estatuto dos territórios ultramarinhos portugueses. A Lei Constitucional portuguesa nº. 1/74, de 27 de julho de 1974, consagrou o direito à autodeterminação e à independência desses territórios até então tratados como colônias (PEREIRA, 2001, p. 68). Historicamente, seguiu-se a independência de cada uma das colônias portuguesas na África: Angola, São Tomé e Príncipe, Moçambique e Guiné-Bissau. Com o reconhecimento destes novos Estados pela comunidade internacional, estes passaram a constituir pessoas jurídicas de Direito Público internacional, sem maiores discussões. Os territórios portugueses na Índia (Goa, Damão, Diu, enclaves de Dadrá e Nagar-Aveli), outrora conhecidos como Estado Português da Índia, não se tornaram novos Estados, pois já eram internacionalmente reconhecidos como parte integrante do Estado Indiano. Com efeito, a própria República Portuguesa reconheceu a soberania da Índia sobre esses territórios por meio de tratado de 31 de dezembro de 1974 (CASTRO, 2003, p.31). Os territórios 17 Hong Kong, território chinês que fora ocupado pelo Reino Unido desde 1842. 28

portugueses do extremo oriente, isto é: Macau e TimorLeste, seriam, entretanto, objeto de outros questionamentos. Para Timor-Leste, não houve tempo para qualquer iniciativa de constituição de um país independente: a Indonésia simplesmente invadiu o território e impôs o regime ditado por Jacarta. Apenas hoje, após primoroso trabalho da Administração Transitória das Nações Unidas no Timor Leste UNTAET (United Nations Transitional Administration in East Timor), apesar da tragédia social provocada pelos milicianos, é que se pode dizer que Timor-Leste constitua uma das mais novas nações a operar como um agente próprio e soberano no Direito Internacional Público. Com referência a Macau, o governo português editou, em 17 de fevereiro de 1976, o Estatuto Orgânico de Macau (Lei nº. 1/76, alterada pelas Leis 53/79 e 13/90). Este e a Constituição portuguesa de 1976 reconheceram que Macau era território da China sob administração portuguesa. Em 13 de abril de 1987, pela Declaração Conjunta do Governo da República Portuguesa e do Governo da República Popular da China sobre a Questão de Macau, restou confirmado que a República Popular da China exerceria a soberania sobre Macau, a partir de 20 de dezembro de 1999. Em 31 de março de 1993, com base no artigo 31 da Constituição chinesa, no contexto do princípio um país, dois sistemas, a Lei Básica para a Região Administrativa Especial de Macau foi promulgada, através do Decreto do Presidente da República Popular da China 29

nº. 3. Fixavam-se em definitivo a data do retorno de Macau à administração da China, bem como as disposições fundamentais para sua administração autônoma. Conseqüentemente, desde 20 de dezembro de 1999, Macau deixou de ser administrada por Portugal, passando a integrar uma das divisões políticas da República Popular da China. Na mesma data, a Lei Básica entrou em vigência no território, passando a regê-lo. Atualmente, de acordo com o art. 31 da Constituição chinesa18, Macau é uma região administrativa especial, assim como Hong Kong, e compõe, com as vinte e três províncias, os quatro municípios diretamente dependentes do Governo Central19, e as cinco regiões autônomas20, a República Popular da China. No âmbito chinês, por ser uma das subdivisões administrativas, Macau é uma pessoa jurídica de Direito Público interno da República Popular da China. Edmundo Ho foi eleito para o cargo de Chefe do Executivo da Região Administrativa Especial de Macau e foi reconduzido ao final de seu primeiro mandato. Na terceira legislatura após a reunificação, Sr. Fernando Chui Sai On passou a exercer o cargo de Chefe Artigo 31.º O Estado pode criar regiões administrativas especiais sempre que necessário. Os regimes a instituir nas regiões administrativas especiais deverão ser definidos por lei a decretar pelo Congresso Nacional Popular à luz das condições específicas existentes. 18 19 20 Pequim, Xangai, Tianjin e Chongqing. Região autônomas da Mongólia Interior, de Linxia, de Guangxi, de Xinjiang e do Tibete. 30

do Executivo, na mesma linha administrativa de Edmundo Ho. LINHA DO TEMPO Séc XIII Séc. XIV 1507 1511 1513 1516 1520 1540 1555 1557 1570 1585 1590 1644 1770 1832 1839 1842 1844 1846 1849 1856 1887 1898 1910 1911 1922 1931 Sinais de habitação em MongHa (norte de Macau) Construção do Templo de A-ma Portugueses se estabelecem na Índia Portugueses se estabelecem em Malaca Jorge Álvares em Lantau Rafael Perestelo atinge Cantão Hostilidades Portugueses chegam ao Japão Fernão Mendes Pinto se refere à Amaquan Fixação permanente em Macau, com autorização de Cantão Construção das Portas do Cerco Criação do Senado, em Macau Fundação do Colégio São Paulo Fim da Dinastia Ming, início da Qing Evidências de administração em simbiose Portugal e China Publicação de obra de Lujsgestedt Início da I Guerra do Ópio Tratado de Naquim (Britânicos se estabelecem em Hong Kong) Macau passou à província independente de Goa Governo de Ferreira do Amaral Assassinato de Ferreira do Amaral Início da II Guerra do Ópio (Ingleses e franceses invadem Pequim) Tratado de Amizade entre Portugal e China Revolução dos Boxers Instalação da República Portuguesa Instalação da República da China Fundação do Partido Comunista Chinês Invasão Japonesa 31

1949 1971 1974 1976 1979 1987 1999 Fundação da República Popular da China República Popular da China substitui a República da China no Conselho de Segurança da ONU Revolução dos Cravos (Descolonização) Constituição portuguesa. Fim da Revolução Cultural Restauração das Relações Sino-portuguesas Declaração Conjunta China-Portugal Reunificação/Handover (instalação da Região Administrativa Especial de Macau) LEITURA RECOMENDADA: CANIATO, Benilde Justo. Macau, história e cultura. In Garmes, Helder (org.) Oriente, engenho e arte: imprensa e literatura em língua portuguesa em Goa, Macau e Timor Leste. São Paulo: Alameda, 2004. 32