RELATÓRIO Nº 146/11 PETIÇÃO ADMISSIBILIDADE HILDEBRANDO SILVA DE FREITAS BRASIL 31 de outubro de 2011

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RELATÓRIO Nº 146/11 PETIÇÃO 405-07 ADMISSIBILIDADE HILDEBRANDO SILVA DE FREITAS BRASIL 31 de outubro de 2011 I. RESUMO 1. Em 3 de abril de 2007, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (doravante Comissão Interamericana ou CIDH ) recebeu uma petição submetida pela Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH) e o Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) ( peticionários ) na qual alegam que a República Federativa do Brasil ( Estado ou Brasil ) é internacionalmente responsável pela arbitrária detenção, tortura e violação da integridade pessoal de Hildebrando Silva de Freitas ( suposta vítima ), em Belém, Estado do Pará. 2. Segundo os peticionários, a suposta vítima foi arbitrariamente detida por policiais em 15 de novembro de 1997, quando estes tentavam fechar o seu bar. Os peticionários indicam que a suposta vítima foi acusada de desacato, segundo o Código Penal Brasileiro, porque questionou as ações da polícia, e não foi imediatamente informado das acusações que lhe eram imputadas. Os peticionários também alegam que, desde o momento de sua detenção inicial e durante sua prisão numa delegacia, a suposta vítima esteve sujeita a violência nas mãos dos agentes da polícia estadual, o que configura tortura e violação da integridade pessoal. Os peticionários acrescentam que, apesar das queixas apresentadas pela suposta vítima às autoridades competentes, não foi instaurado um inquérito oficial independente e, até hoje, o Estado não puniu as violações alegadas. Os peticionários concluem que os fatos alegados constituem violação dos artigos 1.1, 5, 7, 8 e 25 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos ( Convenção Americana ), bem como violação da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura (artigos 1, 2, 3, 4, 6 e 8). 3. Por sua vez, o Estado alega que a petição é inadmissível porque os recursos internos não foram esgotados, conforme estipula o artigo 46.1.a da Convenção Americana, já que a suposta vítima não impetrou uma ação civil de reparação de danos. Além disso, o Brasil argumenta que, já que os peticionários não apresentam fatos que caracterizem uma violação da Convenção Americana, a petição tampouco é admissível, em conformidade com o artigo 47.b desse tratado. Nesse sentido, o Estado observa que não há evidências críveis de que a suposta vítima tenha sofrido tortura ou violação de sua integridade pessoal nas mãos dos policiais. 4. Após examinar as posições das partes à luz dos requisitos de admissibilidade estabelecidos nos artigos 46 e 47 da Convenção Americana, e sem prejulgar o mérito da questão, a CIDH declara a presente petição admissível com respeito à alegada violação dos artigos 5, 7, 8, 13 e 25 da Convenção Americana, em conjunto com os artigos 1.1 e 2 do mesmo instrumento e os artigos 1, 6 e 8 da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura. Finalmente, a CIDH decide publicar o presente relatório e incluí-lo em seu Relatório Anual à Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos. O membro da Comissão Paulo Sérgio Pinheiro, de nacionalidade brasileira, não participou das deliberações nem da decisão do presente relatório, em conformidade com o disposto no artigo 17.2.a do Regulamento da CIDH.

2 II. TRÂMITE PERANTE A CIDH 5. A petição foi recebida pela CIDH em 3 de abril de 2007, e seus anexos em 16 de abril de 2007. A CIDH enviou as partes pertinentes da petição ao Estado em 27 de março de 2008. Em 15 de julho de 2008 o Estado submeteu sua resposta à presente petição e, em 22 de julho de 2008, a CIDH recebeu os anexos da mesma. Em 2 de setembro de 2008 os peticionários submeteram uma comunicação com observações adicionais, que foi devidamente transmitida ao Estado. III. POSIÇÃO DAS PARTES A. Posição dos peticionários 6. Os peticionários alegam, como questão contextual, que a tortura é uma prática sistemática e generalizada no Brasil, associada principalmente às forças policiais. Isso ocorre, segundo eles, apesar do Estado ter ratificado no final dos anos 1980 os principais instrumentos internacionais que banem a tortura e de ter adotado legislação interna sobre a tortura em 1997 (Lei 9.455/97). Nesse sentido, os peticionários também observam que as investigações policiais de queixas de tortura perpetrada pela polícia carecem da devida diligência e independência e se baseiam em provas forenses precariamente coletadas, fazendo com que esses atos permaneçam na impunidade. Os peticionários afirmam que essas conclusões são demonstradas por estudos oficiais e de peritos sobre o tema, como o Relatório do Relator Especial das Nações Unidas sobre Tortura relativo à sua missão ao Brasil em 2000, e o 1º Relatório Nacional sobre o cumprimento da Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (Ministério da Justiça, 2000). Além disso, na época dos eventos alegados, os peticionários observam que a Ouvidoria de Polícia do Pará, criada em 1996, também coletou dados que corroboram essas conclusões. 7. Os peticionários afirmam que a suposta vítima era proprietário do bar Casa de Samba Cadência, no bairro do Telégrafo, em Belém, Pará. Em 15 de novembro de 1997, segundo os peticionários, policiais civis e militares chegaram para fechar o bar por falta de licença apropriada para funcionamento. Os peticionários alegam que a suposta vítima tentou argumentar com a polícia e foi preso por desacato. 8. Os peticionários indicam que, desde o momento de sua prisão inicial, a suposta vítima foi fisicamente agredida com pancadas na nuca. Depois, segundo os peticionários, na delegacia de Telégrafo foi levado a uma cela onde foi agredido por vários policiais que o atingiram nas costelas, olho esquerdo, tórax e cintura. Na delegacia, os peticionários alegam que os policiais também encorajaram outros presos a ameaçar estuprar a suposta vítima, para aterrorizá-lo e intimidá-lo. Os peticionários afirmam que a suposta vítima não foi prontamente informada das acusações contra ele, e foi mantido confinado numa cela até a manhã seguinte, quando finalmente foi notificado das acusações contra ele e libertado mediante fiança. 9. Após ter sido libertado, os peticionários indicam que a suposta vítima dirigiu-se ao Instituto Médico Legal para um exame de corpo de delito, o qual corroborou que ele havia sofrido violência física quando se encontrava sob a custódia do Estado. Cinco meses depois, em 14 de abril de 1998, segundo os peticionários, a suposta vítima passou por um exame físico complementar, o qual indicou que a violência física sofrida em novembro de 1997 podia ter causado dados internos permanentes. Contudo, os peticionários enfatizam que esses exames forenses foram superficiais e feitos sem as análises apropriadas e detalhadas, em conformidade com as normas internacionais para a investigação de alegações de tortura. 10. Segundo a petição, a suposta vítima denunciou os fatos imediatamente após sua libertação, em 16 de novembro de 1997, tanto à Corregedoria quanto à Ouvidoria de Polícia. Os peticionários afirmam que, com base nisso, uma investigação administrativa foi iniciada pela Corregedoria, mas foi arquivada em 23 de janeiro de 1998, por ter concluído que a polícia agiu no estrito cumprimento do dever. Os peticionários enfatizam que, durante essa investigação administrativa, a

3 Ouvidora identificou várias irregularidades, inclusive interferência indevida dos policiais que supostamente participaram da prisão e do espancamento da suposta vítima. 11. Quanto à investigação e processo criminal abertos para investigar as alegações contra a polícia, os peticionários enfatizam que o Ministério Público solicitou a abertura de inquérito sobre os atos aqui alegados um mês depois, em 17 de dezembro de 1997; e que o inquérito policial só foi aberto seis meses depois, em 1º de junho de 1998. Segundo os peticionários, esse inquérito foi concluído pela polícia em 18 de setembro de 1998 e a recomendação feita pela autoridade policial foi de que o caso fosse arquivado, alegadamente devido à falta de provas acerca dos que perpetraram a violência sofrida pela suposta vítima. Os peticionários indicam que os dois promotores que subsequentemente receberam os autos da investigação policial discordaram quanto à ocorrência de tortura, mas o caso foi finalmente arquivado pela autoridade judicial competente em 20 de setembro de 1999. A justificação para arquivar o caso, segundo os peticionários, foi que a suposta vítima havia auto-infligido as lesões ao resistir à prisão. 12. Em 2 de junho de 2000, um dos peticionários, a Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos, apresentou novas provas às autoridades em nome da suposta vítima declarações de três novas testemunhas e obteve a reabertura da investigação mediante decisão judicial emitida em 14 de junho de 2000. Segundo os peticionários, nessa mesma data, o Ministério Público apresentou a respectiva denúncia acusando seis policiais de tortura contra a suposta vítima. Os peticionários indicam que a autoridade judicial aceitou formalmente a denúncia em 19 de junho de 2000, mas, após uma série de agravos de instrumento interpostos pelos acusados, a denúncia foi rejeitada por uma decisão judicial proferida em 25 de agosto de 2003. Os peticionários observam que, já que o Ministério Público não recorreu dessa decisão, a suposta vítima apresentou recurso em sentido estrito em 10 de novembro de 2003. Contudo, esse recurso foi rejeitado em 21 de fevereiro de 2006 com base em que diante da ausência de recurso impetrado pelo Ministério Público a suposta vítima e seus representantes, atuando como assistentes de acusação, não tinham capacidade legal para apresentar tal recurso autônomamente segundo o direito processual brasileiro. Os peticionários indicam que o julgamento dessa matéria fez coisa julgada em 17 de outubro de 2006. Portanto, alegam que a presente petição preenche os requisitos de admissibilidade, já que os recursos internos foram buscados e esgotados, e a petição foi protocolada dentro dos seis meses após a decisão final. 13. Com base nessas considerações, os peticionários alegam que o Estado é responsável pela violação dos artigos 1.1, 5, 7, 8 e 25 da Convenção Americana, e dos artigos 1, 2, 3, 4, 6 e 8 da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura. B. Posição do Estado 14. O Estado assevera que a petição é inadmissível porque os recursos internos não foram esgotados, conforme estipulado no artigo 46.1.a da Convenção Americana. Nesse sentido, o Estado afirma que a suposta vítima não impetrou uma ação civil de reparação de danos. 15. Além disso, o Estado mantém que, em conformidade com o artigo 47.b, a petição não expõe fatos que caracterizem uma violação dos direitos garantidos pela Convenção Americana. Segundo o Estado, após uma reclamação de barulho contra a boate da suposta vítima, os policiais notificaram a suposta vítima de que teria que fechar seu estabelecimento durante a noite, e também verificaram que não possuía a licença apropriada para funcionamento. O Estado alega que a suposta vítima dirigiu-se aos policiais de maneira desrespeitosa e se recusou a fechar a boate, o que levou à sua prisão por desacato. Ademais, o Brasil argumenta que a suposta vítima resistiu à prisão e até agrediu fisicamente um dos policiais, sendo acusado de desacato, desobediência e resistência à prisão. O Estado enfatiza que as investigações das alegações de tortura da suposta vítima não chegaram a nenhuma conclusão e os ferimentos nele observados eram compatíveis com resistência à prisão e/ou foram auto-infligidos. Consequentemente, a denúncia apresentada pelo Ministério Público foi rejeitada e essa decisão fez coisa julgada em 17 de outubro de 2006, o que indica, segundo o Estado, que não teria ocorrido tortura.

4 16. Com base nessas duas considerações, o Estado solicita que a CIDH declare inadmissível a presente petição em virtude dos requisitos de admissibilidade contidos nos artigos 46.1.a e 47.b da Convenção Americana. IV. ANÁLISE DE COMPETÊNCIA E ADMISSIBILIDADE A. Competência 17. De acordo com o artigo 44 da Convenção Americana e o artigo 23 do Regulamento da CIDH, os peticionários têm locus standi para submeter uma petição à Comissão Interamericana. A petição identifica como suposta vítima Hildebrando Silva de Freitas, um indivíduo em relação ao qual o Estado concordou em respeitar e assegurar os direitos consagrados na Convenção Americana. Quanto ao Estado, a República Federativa do Brasil ratificou a Convenção Americana em 25 de setembro de 1992 e a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura em 20 de julho de 1989; assim, a Comissão Interamericana tem competência ratione personae para examinar a petição. Segundo o artigo 23 de seu Regulamento, a Comissão Interamericana tem competência ratione materiae para examinar a presente petição, já que se refere a supostas violações de direitos humanos reconhecidos na Convenção Americana e na Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura. 18. Quanto à jurisdição ratione temporis, a CIDH indica que os fatos alegados ocorreram em 15 de novembro de 1997, após o Brasil ter ratificado a Convenção Americana e a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura. Finalmente, a Comissão Americana tem competência ratione loci para examinar a petição, visto que esta alega violações de direitos protegidos pela Convenção Americana e pela Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura que teriam ocorrido no território de um Estado Parte. B. Esgotamento dos recursos internos 19. Segundo o artigo 46.1.a da Convenção Americana, para que uma petição seja admitida pela Comissão Interamericana, os recursos oferecidos pela jurisdição interna devem ter sido esgotados de acordo com princípios do direito internacional geralmente reconhecidos. A CIDH reitera que em casos que envolvem denúncia de tortura, que é um crime de ação pública processável de ofício no Brasil, o recurso adequado é normalmente uma investigação penal e julgamento. 1 É fato indiscutível neste caso que a denúncia e investigação criminal levaram à apresentação de denúncia penal pelo Ministério Público, a qual foi rejeitada pela autoridade judicial, e esta decisão fez coisa julgada em 17 de outubro de 2006. 20. Além disso, a CIDH observa que o argumento de não esgotamento dos recursos internos apresentado pelo Estado refere-se exclusivamente à ação civil de reparação de danos, que na opinião da Comissão Interamericana não é um recurso adequado ou efetivo no tocante a alegações de tortura, já que não pode assegurar a instauração de processo penal e a punição dos responsáveis. Com base nessas considerações, a Comissão Interamericana conclui que se esgotaram os recursos internos, cumprindo-se assim o requisito estabelecido no artigo 46.1.a da Convenção Americana. C. Prazo de apresentação da petição 21. O artigo 46.1.b da Convenção Americana requer que as petições sejam protocoladas dentro de um período de seis meses após a notificação da decisão final. A CIDH assinala que esta petição foi apresentada em 3 de abril de 2007, menos de seis meses após a decisão final de 17 de outubro de 2006; portanto, cumpre o requisito estipulado no artigo 46.1.b da Convenção Americana. 1 Ver, inter alia, CIDH. Relatório Nº 6/10, Petição 262-05, Admissibilidade, José do Egito Romão Diniz, Brasil, 10 de março de 2010, parágrafo 24; e Relatório Nº 41/10, Petição 999-06, Admissibilidade, Adão Pereira de Souza e Clotilde de Souza Rocha, Brasil, 17 de março de 2010, parágrafo 22.

5 D. Duplicação de procedimentos e res judicata internacional 22. Não surge dos autos que a questão objeto da presente petição esteja pendente de outro procedimento internacional, nem que reproduza uma petição já examinada por este ou outro órgão internacional. Assim, cumpriram-se os requisitos estabelecidos nos artigos 46.1.c e 47.d da Convenção Americana. E. Caracterização dos fatos alegados 23. Para fins de admissibilidade, a Comissão Interamericana deve determinar se os fatos descritos na petição tendem a estabelecer uma violação dos direitos consagrados na Convenção Americana ou outro instrumento aplicável, ou se a petição deve ser rejeitada por ser manifestamente infundada ou obviamente improcedente, segundo os requisitos dos artigos 47.b e 47.c da Convenção Americana. Nesta etapa processual, a CIDH deve realizar uma avaliação prima facie, não com o objetivo de estabelecer uma alegada violação dos instrumentos interamericanos de direitos humanos aplicáveis, mas para examinar se a petição denuncia fatos que poderiam envolver violação de direitos neles garantidos. Esse exame não implica pré-julgamento ou antecipação de decisão sobre o mérito da questão. 24. Nem a Convenção Americana nem o Regulamento da CIDH requerem que o peticionário identifique os direitos específicos supostamente violados pelo Estado na petição submetida à Comissão, embora os peticionários possam fazê-lo. Cabe à Comissão, com base na jurisprudência do sistema, determinar em seu relatório de admissibilidade as disposições dos instrumentos interamericanos que se aplicam e que podem ter sido violadas se os fatos alegados forem comprovados por elementos suficientes. 25. Neste caso, a Comissão Interamericana observa que, se forem comprovadas, as alegações dos peticionários sobre a responsabilidade direta de agentes policiais do Estado por torturar e agredir fisicamente a suposta vítima poderiam caracterizar violações do artigo 5 da Convenção Americana, bem como violações da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura. Com respeito a esta última, a CIDH está ciente de que os artigos 2, 3 e 4 desse instrumento são disposições conceituais que não se referem a direitos substantivos garantidos a supostas vítimas de violações desse instrumento. 2 Em vista do exposto anteriormente, a Comissão Interamericana decide que as alegações dos peticionários acerca de atos intencionalmente praticados por funcionários públicos atuando nesse caráter que podem vir a constituir tortura tendem a estabelecer uma violação dos direitos garantidos pelos artigos 1, 6 e 8 da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura. Além disso, se as alegações de falta de independência e devida diligência nas investigações criminais forem comprovadas, poderiam caracterizar violações dos artigos 8 e 25 da Convenção Americana. 26. Quanto à asserção de que a suposta vítima foi presa em conformidade com o artigo 331 do Código Penal Brasileiro ( desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela ) porque questionou as ações e prerrogativas dos policiais que estavam tentando fechar seu estabelecimento, a Comissão Interamericana observa ter concluído anteriormente que as leis de desacato são incompatíveis com a Convenção Americana porque se prestam a abusos e dão aos funcionários públicos um nível maior de proteção do que o oferecido aos cidadãos comuns. 3 27. Neste caso, portanto, com respeito à existência do dispositivo penal mencionado, sua alegada amplitude e aplicação concreta à suposta vítima com a consequente acusação de desacato, a CIDH decide que poderiam caracterizar violação dos artigos 7 e 13 da Convenção Americana. Ambas as 2 Ver CIDH. Relatório Nº 6/10, petição 262-05, Admissibilidade, José do Egito Romão Diniz, Brasil, 10 de março de 2010, parágrafo 31. 3 Ver, inter alia, CIDH. Relatório sobre a compatibilidade entre as leis de desacato e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, 17 de fevereiro de 1995, parágrafos 197-212.

6 disposições são admissíveis em conjunto com a obrigação geral de adotar medidas para tornar efetivos esses direitos, segundo o aartigo 2 da Convenção Americana. 28. Em conclusão, a CIDH decide que a petição não é manifestamente infundada ou obviamente improcedente e, portanto, declara que os peticionários cumpriram prima facie os requisitos estipulados no artigo 47.b da Convenção Americana quanto a possíveis violações dos artigos 1, 6 e 8 da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, bem como dos artigos 5, 7, 8, 13 e 25 da Convenção Americana, em conjunto com os artigos 1.1 e 2 do mesmo instrumento internacional. V. CONCLUSÕES 29. A Comissão Interamericana conclui que é competente para examinar o mérito deste caso e que a petição é admissível segundo os artigos 46 e 47 da Convenção Americana. Com base nos argumentos de fato e de direito expostos, e sem prejulgar o mérito da questão, A COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS DECIDE: 1. Declarar admissível a presente petição no que se refere aos direitos protegidos nos artigos 5, 7, 8, 13 e 25 da Convenção Americana, em relação aos artigos 1.1 e 2 do mesmo instrumento; 2. Declarar admissível a presente petição no que se refere a possíveis violações dos direitos protegidos nos artigos 1, 6 e 8 da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura; 3. Notificar esta decisão às partes e continuar a análise do mérito da questão; e 4. Publicar este relatório e incluí-lo em seu Relatório Anual à Assembléia Geral da OEA. Dado e assinado na cidade de Washington, D.C., aos 31 dias do mês de outubro de 2011. (Assinado): Dinah Shelton, Presidenta; José de Jesús Orozco Henríquez, Primeiro Vice-Presidente; Rodrigo Escobar Gil, Segundo Vice-Presidente; Felipe González, Luz Patricia Mejía Guerrero e María Silvia Guillén, Membros da Comissão.