HOBBES: O PARADOXO DA LIBERDADE



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Transcrição:

HOBBES: O PARADOXO DA LIBERDADE Gerson Vasconcelos Luz 1 Resumo: O artigo discute a questão da liberdade humana a partir da situação hipotética na qual Hobbes denomina estado de natureza. Se por um lado, os indivíduos têm direito a todas as coisas, por outro, essa liberdade torna-se inútil a cada homem. As comodidades da vida não podem ser obtidas e a vida humana é vivida de modo curto, brutal, sórdido e infeliz. A liberdade desmedida é desfavorável às relações interpessoais. A liberdade útil só é provável na sociedade. Mas, o homem é um animal apolítico e por natureza tende a amar a liberdade ilimitada e o domínio sobre seus iguais. Palavras-chave: Liberdade, direito natural, estado de natureza, paixões. Abstract: The article discusses the issue of human freedom from the hypothetical situation in which Hobbes called the state of nature. On one hand, individuals have a right to all things, on the other, that freedom becomes useless to each. The amenities of life cannot be obtained, and human life is lived short, brutal, nasty and unhappy. The unbridled freedom is unfavorable to interpersonal relationships. Freedom is only likely useful in society. But, man is an animal and apolitical by nature tend to love the freedom and unlimited dominion over his fellows. Keywords: freedom, natural right, state of nature, passions. 1 Mestre em Filosofia pela UNIOESTE. E-mail: vasconceluz@yahoo.com.br Página 106

Hobbes: o paradoxo da liberdade Thomas Hobbes (2003, p. 113), defende que a natureza concede a cada indivíduo um direito a todas as coisas. Diante disso, todo homem naturalmente tem liberdade ilimitada ou mais completa que tem em relação à vida no interior da república. Mas essa concepção de direito traz implicativos de ordem inversa, pois, problematiza nosso autor, [...] se devido a essa liberdade alguém pode fazer de tudo a seu arbítrio, deve, porém, pela mesma liberdade, sofrer de tudo, devido a igual arbítrio dos outros (HOBBES, 1992, p. 178). Assim, o comportamento humano esperado na inexistência de um poder soberano aos homens leva a negar a liberdade útil. Cada qual pode estar livre para fazer tudo, mas, na medida em que o outro também está, o resultado é insignificante. Ao supor que os homens querem não somente viver, mas viver confortavelmente e em segurança, pode-se suspeitar que esse desejo é anulado em quanto se vive em condições de simples natureza. Dado que o homem é composto de paixões sociais e antissociais, ter direito a todas as coisas equivale a admitir que a busca da satisfação pelos interesses pessoais se dará de modo conflituoso. Essa concepção não é deduzida a partir de alguma espécie de maldade intrínseca à natureza humana, mas das paixões; das ações egoístas dos indivíduos. Na epístola dedicatória de Hobbes ao Conde William de Devonshire, contida na segunda edição do De Cive, publicada em 1647, encontramos a seguinte argumentativa: [...] Se os bens forem comuns a todos, necessariamente haverão de brotar controvérsias sobre quem mais gozará de tais bens, e de tais controvérsias inevitavelmente se seguirá todo tipo de calamidades, as quais, pelo instinto natural, todo homem é ensinado a esquivar (HOBBES, 1992, p. 08). Da lógica de comportamento acima exposto, Hobbes deriva duas máximas muito utilizadas pelos homens: [...] Uma que provém de sua parte concupiscente, que deseja apropriar-se do uso daquelas coisas na quais todos os outros têm igual participação, outra, procedendo da parte racional, que ensina todo homem a fugir de uma dissolução antinatural, como sendo este o maior dano que possa ocorrer à natureza 2 (HOBBES, 1992, p. 8). 2 Rosenfield traz o seguinte comentário: [...] o primeiro postulado permite-nos apreender o homem a partir da sua tendência ao desregramento de tal maneira que o meu e o teu, nesta formulação, nada mais são do que formas de exercício do poder, da potência indiscriminada de cada um em relação a todas as coisas. O Página 107

O enunciado e as máximas reforçam a ideia de que a liberdade a tudo, a todas as coisas, tem como efeito reverso o direito a nada (HOBBES, 2010, p. 69-70). Diante disso, nota-se que os indivíduos carregam em si uma espécie de sentimento de frustração de expectativas, pois cada qual se vê diante de um paradoxo: tem-se direito a tudo e ao mesmo tempo, liberdade a nada que seja significativo em relação à obtenção do útil para si. Ressaltemos, a conservação e a defesa de si é uma necessidade primordial. Ao que parece, dessa necessidade justifica-se o fato de os indivíduos se lançarem em disputas para aumentar o próprio poder. O poder, na linguagem hobbesiana, significa meios para a satisfação de interesses do agente. Nesse sentido, Bernardes (2002, p. 32) argumenta, [...] o poder é a somatória dos objetos que cada homem representa como necessários para o incremento das condições que assegurem o movimento vital [...]. Hobbes tipifica a autoconservação como uma necessidade. Necessário é aquilo (ou o que) não pode ser ou se dar de outro modo. Assim, de acordo com as leis que fundamentam e rege a matéria, um corpo em movimento tende a manter-se em tal condição cinética a menos que seja obstaculizado (pela mesma razão um objeto em repouso permanece em repouso, salvo se alguma força lhe imprimir movimento). Para atender a essa necessidade involuntária, um corpo vivo, como é o caso humano, em suas partes internas, esboça reações características que lhe permitem posicionar de modo a fugir do que lhe é prejudicial e aproximar-se do que lhe é favorável. Noutras palavras, todo homem age em acordo com o seu direito natural autodefesa. Trata-se de um agir fundamentado no direito natural, que significa: Liberdade que cada homem possui de usar o seu próprio poder, da maneira que quiser, para a preservação da sua própria natureza, ou seja, da sua vida; e consequentemente de fazer tudo aquilo que o seu próprio julgamento e razão lhe indiquem como meios mais adequados a esse fim (HOBBES, 2003, p. 112). No final do capítulo XIII do Leviatã, Hobbes propõe que o homem, entre outros interesses, é movido pelo desejo de vida confortável. Ao que parece, trata-se de uma paixão humana que nos permite inferir que a existência biológica requer que o homem procure sempre se afastar do que lhe é desconfortável, miserável, danoso e aproximar-se lhe representa algo próspero, benéfico. Isso nos leva a perceber que, embora se ame a liberdade e a possibilidade de domínio próprio das condições naturais, os homens têm certa aversão ao segundo, postula como este desregramento termina por organizar-se na medida que ele se racionaliza, isto é, cada homem calcula o modo de usufruir e de apropriar-se do meu em função do que o outro coloca como seu, resistindo ou cedendo, pelos mais variados motivos, às pretensões enunciadas (In: HOBBES, De Cive, 1993, Introdução, p. 25). Página 108

próprio estado de natureza. Na sua explicação em torno do conceito de liberdade natural, Hobbes deixa claro que o que está em questão não é somente a defesa da liberdade de movimento vital, mas também a obtenção de recursos que melhoram a possibilidade da conservação de si. Kayser (2007, p. 23) observa que a existência não se resume à mera manutenção biológica, pois todo indivíduo busca obter um conjunto de condições que apontam para uma vida confortável. Malherbe (2002, p. 55) argumenta na mesma direção: [...] todo ser vivo, seja por necessidade mecânica, seja por necessidade de existência, esforça-se no sentido daquilo que é próprio a lhe conservar a vida e a torná-la vivível, se não confortável. A existência biológica e a vida confortável são compatíveis, muito embora se possa viver de modo desconfortável, como se vive em condições naturais. Ao que parece, a conservação da vida é simultaneamente dever e direito. Entretanto, as expressões direito e dever (ou liberdade e obrigação) são incompatíveis quando se referem a uma mesma questão ou situação (HOBBES, 2003, p. 112). Quando, porém, se trata da própria vida, essa regra é aparentemente pensada de outro modo. Deve-se considerar que, na perspectiva de Hobbes, todo corpo vivo quer manter-se em seu estado cinético. Isso nos leva a supor que, em relação ao movimento vital, Hobbes admite a vida como dever. Já a vida como um direito decorre da necessidade de autoconservação. Em torno disso, MacAdam (1980, p. 143) traz o seguinte comentário: [...] ter um direito é não ter um dever e, de modo correspondente, ter um dever é não ter um direito. Contudo, o direito natural à vida parece constituir exceção à regra geral de Hobbes, já que é tanto direito como dever. Ao nos reportarmos ao conceito de direito de natureza, constata-se que este equivale à liberdade de fazer o que bem se entende quando a questão é proteger e preservar a própria vida. Conforme comenta Tuck (2001, p. 38), [...] o direito de natureza é o direito de usar o próprio juízo sobre a conservação e não o mero direito à conservação. A própria vida do agente é simultaneamente dever e direito. Na medida em que um indivíduo decide sobre suas ações, age como juiz de si e como agente livre. É juiz de si porque não poderia deixar de agir e é agente livre porque a escolha resulta de sua própria deliberação. Essa ideia é melhor compreendida se observarmos que, segundo Hobbes, o homem é um corpo constituído de força vital e movimentos animais, e que essa máquina orgânica deve agir em conformidade com uma lei básica da natureza. Essa lei ou princípio fundamental inerente à reta razão [...] proíbe a um homem fazer tudo o que possa destruir a sua vida ou privá-lo dos meios necessários para a preservar, ou omitir aquilo que pense melhor contribuir Página 109

para a preservar (HOBBES, 2003, p. 112). Hobbes descreve cerca de vinte leis naturais ou teoremas da razão. Conforme descreve Bobbio (1995, p. 111), [...] as leis de natureza não são absolutas, mas relativas a um fim, a obrigação que delas deriva não é incondicional, mas condicionada pela obrigação de um fim. Não se trata de incondicionados da razão, mas, sim, de regras de prudência. Sendo regras de prudência e não leis em sentido próprio, agir de modo contrário aos princípios é condizente com a realidade de quem vive em estado de natureza. Se, em dado momento, o mais prudente para a conservação de um agente for aniquilar o outro, ele deve praticar a ação. Se, por um lado, as leis naturais exigem que não se faça ao outro aquilo que não se quer que seja feito contra si (HOBBES, 2003, p. 135), por outro, o direito à vida do agente é compatível com o dever de manter-se vivo. A própria vida é um valor primário para o indivíduo (BOBBIO, 1995, p. 112). É importante atentarmos para a seguinte questão: as leis de natureza não existem fora da razão humana no sentido de que haveria uma tábua de valores inscrita fora da razão humana que obrigariam o agente. A razão, que contém em si as regras naturais, não possui um significado ontológico, mas, sim, metodológico (BOBBIO, 1995, p. 105). A razão é a faculdade do cálculo e os cálculos são operados a partir da necessidade que o corpo sente em relação aos seus desideratos básicos em torno da conservação e da defesa de si. Voltemos um pouco à atenção para a concepção de liberdade natural. Nesse sentido, Jaucourt nos ajuda a refletir sobre a questão. Leiamos a parte introdutória de um de seus verbetes contidos na Enciclopédia dos Iluministas: A liberdade natural é o direito que a natureza dá a todos os homens de dispor de suas pessoas e de seus bens da maneira que julgarem mais conveniente para a sua felicidade, sob a restrição que façam dentro dos limites da lei natural e que não abusem dela em prejuízo dos outros homens. As leis naturais são, então, a regra e a medida desta liberdade, pois, embora os homens, no estado primitivo 3 de natureza, sejam independentes em relação aos outros, estão todos sob a dependência das leis naturais, segundo as quais devem dirigir suas ações (JAUCOURT, 2006, p. 203). Observemos que, na visão do enciclopedista, o objetivo central do uso da liberdade natural é a procura da felicidade. Não se trata, no que tange a acepção hobbesiana da 3 Hobbes não pensa o estado de natureza como uma condição primitiva em sentido antropológico. O verbete contratualismo, do Dicionário de Política, de Norberto Bobbio, traz a seguinte explicação: [...] é difícil dizer em que consiste, para os contratualistas, esse estado de natureza, em virtude do escasso interesse por eles mostrado (excetuando Rousseau) quanto ao conhecimento das reais condições do homem em suas origens; tal situação é apresentada quase apenas como hipótese lógica negativa sobre como seria o homem fora do contexto social e político, para poder assentar as premissas do fundamento racional do poder (BOBBIO, 1995, p. 273). Página 110

expressão, de uma felicidade no sentido de não querer mais nada depois de se alcançar um dado objetivo; e sim na busca por mais e mais poder. Ora, a concentração de poderes nas mãos do indivíduo melhora as condições de defesa e de conservação de si. Cumprir ou não as regras inerentes à reta razão depende da ocasião e do interesse do indivíduo. Assim, o mais racional é pressupor que cada qual observe a lei quando isso lhe for útil e que desobedeça quando isso se representar a alternativa mais apropriada. O Estado resulta de um duplo conflito das paixões humanas. Do ponto de vista externo, a tensão se dá entre indivíduos na busca de poderes e de garantias pessoais. Em relação ao interno, esse conflito é percebido entre as paixões sociais e as tendências antissociais. Seja no que tange ao externo ou ao interno, a situação paradoxal na qual se tem liberdade a todas as coisas e ao mesmo tempo a nada, parece gerar no espírito humano uma espécie de interesse pela vida em sociedade civil. Ora, a condição de liberdade desmedida é desfavorável tanto em relação ao direito natural à vida quanto no que diz respeito ao desejo de comodidade. Como bem observa Kayser (2007, p. 54), [...] a verdadeira liberdade é ter o pleno direito à vida e entender-se por vida não apenas sobreviver, mas ter uma vida confortável. A vida confortável e segurança quanto à conservação de si só encontram condições de possibilidade de efetivação se o direito a tudo for abandonado. Quanto a isso há, porém, um problema relevante a ser considerado: os homens são seres de paixões fortes e que, por exemplo, ao contrário de outros animais como as formigas e as abelhas, não aceitam a sociedade com naturalidade. Diante da ideia hobbesiana, que sugere que a vida humana é solitária, miserável, sórdida, brutal e curta (HOBBES, 2003, p. 109), vemos no estado de natureza uma condição de liberdade desfavorável à marcha do desejo de confortabilidade. Se a vida é o maior bem do homem, há que se afastar das condições avessas à conservação desse bem de valor supremo. Os indivíduos deve procurar viver em condições nas quais haja segurança e proteção. Segundo Hobbes (2010, p. 70), quem deseja viver no estado de natureza no qual todos têm direito a todas as coisas está contradizendo a si mesmo. Página 111

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BERNARDES, Julio. Hobbes & a Liberdade. Rio de Janeiro: Zahar, 2002. BOBBIO, Norberto et alii. Dicionário de Política. Tradução de Carmem Varrialle et alii. 8. ed. Brasília: Editora UnB, 1995. p. 272-283. BOBBIO, Norberto. Thomas Hobbes. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1991. JAUCOURT, Chevalier de. Liberdade natural. In: DIDEROT, Denis; D ALEMBERT, Jean Le Rond. Verbetes Políticos da Enciclopédia. Tradução de Maria das Graças de Souza. São Paulo: Discurso Editorial/Editora UNESP, 2006. HOBBES, Thomas. De Cive. Tradução de Ingeborg Soler. Petrópolis: Vozes, 1993.. Do Cidadão. Tradução de Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 1992.. Leviatã. Tradução de João Paulo Monteiro; Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Martins Fontes, 2003.. Os Elementos da Lei Natural e Política. Tradução de Bruno Simões. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. KAYSER, Marcos. O Paradoxo do Desejo: Hobbes e a Mecânica do Desejo nas Representações de Poder. São Leopoldo: Nova Harmonia, 2007. MACADAM, James. Rousseau e Hobbes. In: FITZGERALD, Ross (Org.). Pensadores Políticos Comparados. Tradução de Antonio Patriota. Brasília: Editora UnB, 1983. p. 131-151. MALHERBE, Michel. Liberdade e necessidade na filosofia de Hobbes. Tradução de Maria Isabel Limongi. In: Cadernos de História e Filosofia da Ciência, Unicamp, v. 12, série 3, n. 1-2, p. 45-64, jan./dez. 2002. MARTINICH, Aloysius. A Hobbes Dictionary. Massachussetts: Blackwell Publishers, 1995. TUCK, Richard. Hobbes. Tradução de Adail Ubirajara e Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Loyola, 2001. Página 112