Gatos: vilões ou vítimas?

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P r o j e t o s Te m á t i c o s d o I P e C Projeto Carnívoros Gatos: vilões ou vítimas? Por Giovanne A. Ferreira, Eduardo Nakano Oliveira e Gelson Genaro Foto: Leandro Cagiano Embora considerados animais domésticos, os gatos possuem grande flexibilidade comportamental, o que lhes permite adaptar-se de maneira extraordinária a diversos ambientes. A introdução desta espécie em ambientes naturais como consequência do abandono, ou a permissão de seu livre acesso a estas áreas, pode trazer forte impacto à fauna local, como já foi constatado em várias partes do mundo, além de submeter este animal a situações de estresse e sofrimento. No Brasil, pouco se sabe a respeito desta dinâmica. Acredita-se que o gato doméstico (Felis sylvestris catus) tenha se originado do gato selvagem africano (F. s. lybica) a partir de um processo de domesticação que começou há cerca de nove mil anos, o que pode ser considerado recente se comparado com outros animais domésticos como o cão (Canis lupus familiaris) e o cavalo (Equus caballus). Não existem evidências que comprovem que esta domesticação tenha sido propositalmente planejada pelo homem. Uma possibilidade amplamente considerada é que essa aproximação teve um caráter mutualístico, uma vez que esta relação se fundamentou na densidade de roedores presentes nos vilarejos da época, atraídos pelo processo de armazenamento de grãos e na sua capacidade em predar esses animais. Sendo assim, o gato se aproximou das áreas habitadas pelo homem, já que era favorecido pelas circunstâncias, bem como foi capaz de desenvolver sua capacidade de socialização para a conquista desta nova condição. Aos poucos o gato doméstico foi se propagando ao longo do globo, acompanhando todos os processos de conquistas humanas e colonização de novos ambientes. 22 Revista Expedição de Campo

Dados demonstram que, entre os últimos 50 a 100 anos, os gatos vêm se destacando cada vez mais como animais de companhia, superando os cães em países como Estados Unidos, Reino Unido e na maior parte da Europa Ocidental, devido a sua maior tolerância a restrição de espaço como em apartamentos e a períodos mais longos sem a companhia do seu dono. Pouco se sabe a respeito da chegada desta espécie ao Brasil, mas estudos indicam que estes animais, como também os da América do Norte, provavelmente chegaram junto aos colonizadores europeus, como animais de estimação ou auxiliares no combate a roedores presentes nos navios, fato que pode ser confirmado pelas baixas diferenças do ponto de vista genético, observado entre os atuais animais encontrados ao longo das Américas e os da Europa, o que indica que não sofreram mudanças significativas diante deste breve intervalo de tempo de isolamento. Classificação e flexibilidade ecológica e alimentar Os gatos se adaptaram com grande sucesso aos mais diversos ecossistemas e tornaram-se predadores dominantes em muitas ilhas, áreas de mata suburbanas, bem como em áreas urbanas. Isto porque estes felinos apresentam uma considerável flexibilidade comportamental e ecológica, podendo apresentar total dependência em relação ao homem através da nutrição. Há também a dependência parcial baseada no aproveitamento de restos encontrados em áreas urbanas, ou de presas que passaram a conviver com o homem. O gato é, portanto, um animal de companhia, mas também um animal que manteve em sua evolução, características de semi ou total independência em relação ao homem. Segundo o Biodiversity Group, Environment Australia, os gatos podem ser agrupados em três categorias, de acordo com o local e a maneira como vivem: 1-) Gatos Domésticos - gatos que se encontram sob atenção de um proprietário, ou uma família. Seus donos fornecem a maior parte de suas necessidades. 2-) Gatos Errantes - gatos encontrados perambulando em torno de cidades e/ou propriedades rurais. Podem depender de alguns recursos fornecidos por seres humanos, mas não são de propriedade dos mesmos. 3-) Gatos Ferais - gatos que vivem e se reproduzem em estado selvagem, sobrevivem por meio da caça ou da procura por restos de alimentos, de forma que as suas necessidades não são satisfeitas intencionalmente por pessoas. Na realidade, esta classificação é muito flexível, pois os indivíduos podem circular livremente de uma categoria para outra. Contudo, é importante destacar que a principal causa para o crescimento das duas últimas categorias ocorre de forma irresponsável, pelo abandono desses animais, tanto adultos quanto filhotes, quando estes se tornam indesejáveis. E as principais razões para este tipo de abandono, tanto em ambientes naturais quanto urbanos, são ninhadas não planejadas, alterações na vida do proprietário, ou ainda, questões voltadas à má interpretação do comportamento deste animal, especificamente pela falta de conhecimento de sua biologia, sendo que esta mesma problemática atinge uma ampla série de espécies. Impactos que os gatos podem causar em ambientes naturais: Transmissão de doenças A presença de animais domésticos e ferais é um fator importante na emergência de doenças da vida silvestre. Estes ao entrarem em contato, mesmo de maneira indireta (contato com fezes e urina, por exemplo), tanto com animais silvestres quanto com outras espécies domésticas, podem agir como vetores na troca de patógenos com populações antes isoladas. Como resultado, estes animais representam uma ameaça não apenas para a vida selvagem, mas também para outros animais domésticos e também para a população humana. Vários estudos indicam que os gatos podem ser potenciais transmissores de doenças contagiosas para diversas espécies de mamíferos: como toxoplasmose, sarcosporidiose, raiva, leucemia felina, imunodeficiência viral felina, entre outras. Predação Os gatos ferais, os errantes e mesmo os domésticos apresentam um comportamento oportunista de predação, considerados caçadores generalistas, com uma gama de itens alimentares bastante diversificada. Por esta razão, podem apresentar um forte impacto na predação de aves, pequenos mamíferos, répteis, anfíbios e insetos. Podem até mesmo ser apontados como a principal causa do declínio de determinadas espécies em diversas áreas no mundo. Em ambientes de ilhas, estudos demonstram que a presença deste predador acaba influenciando negativamente a sobrevivência de algumas espécies, tais como aves marinhas que utilizam estes ambientes para nidificação. Em 1894, por exemplo, um único gato de estimação de um faroleiro residente na Ilha de Stephens, na Nova Zelândia, foi responsabilizado pela extinção de uma espécie de passeriforme não voador conhecida como cambaxirra ou cotovia (Xenicus lyalli), endêmica da ilha. Este felino, que Revista Expedição de Campo 23

Sobreposição alimentar Outra perspectiva com relação aos possíveis impactos causados pela presença de gatos em ambientes naturais, é que estes podem também sobrepor o uso de recursos com alguns predadores com nichos ecológicos similares, não só mamíferos carnívoros, como também com determinadas espécies de aves e répteis. Todavia, em alguns ambientes, principalmente os urbanos e rurais, a espécie pode, ainda assim, paradoxalmente, ser considerada benéfica ao consumir ratos (Rattus spp.) e camundongos (Mus spp.) que, em geral, também foram introduzidos pelo homem, provavelmente inadvertidamente, ou coelhos europeus (Oryctolagus cuniculus), que foram introduzidos muitas vezes deliberadamente, como ocorreu na Austrália. E, tanto ratos, camundongos ou coelhos podem servir como potenciais vetores de doenças, bem como competirem por recursos com outras espécies nativas, causando sérios prejuízos. Logo, a análise dessa situação é muito complexa, pois num momento o gato pode causar enormes danos à fauna local, ao passo que noutro pode ser uma espécie auxiliar no combate a outros invasores, minimizando seus efeitos deletérios. Fotos: Giovanne A. Ferreira Gatos são exímios caçadores (foto da esquerda - A) e quando abandonados podem utilizar recursos oriundos de atividades humanas, como explorar os restos de alimentação.. todas as noites trazia uma cambaxirra abatida para seu dono, dizimou toda a população existente na ilha em apenas um ano. Outros exemplos encontrados na literatura podem ser citados, tal como na Ilha Macquarine, Austrália, onde gatos ferais foram indicados como os principais responsáveis pela extinção de uma subespécie do periquito-da-nova-zelândia (Cyanoramphus novaezelandiae erythrotis), assim como do Geocapromus thoracatus, uma espécie de roedor que foi exterminada de várias ilhas caribenhas por volta de 1955. Impactos na Mata Atlântica Apesar da presença de animais domésticos em ambientes naturais ser de amplo conhecimento, mesmo em áreas protegidas, poucas atitudes são tomadas e consequentemente, seus efeitos sobre a vida selvagem não são mensurados como deveriam. A falta de conhecimento mesmo entre pesquisadores sobre o impacto causado e, por conseguinte, a pouca divulgação do problema, talvez seja um dos principais motivos da pouca importância dada ao assunto. Estudos relacionados à presença de gatos em ambientes naturais brasileiros são ainda escassos. Mediante a riqueza da biodiversidade e o alto grau de degradação sofrido ao longo do processo de colonização e ocupação da Mata Atlântica, o problema é agravado ainda mais pelo fato desse bioma estar na região mais populosa do nosso país, restando apenas pequenos fragmentos remanescentes, onde a presença do homem e de seus animais domésticos, mesmo em áreas de conservações, nem sempre é controlada. Em um estudo voltado para a ecologia e conservação de mamíferos carnívoros, finalizado em 2006 pelo biólogo Eduardo Nakano-Oliveira, foi detectada a presença de cães e gatos (domésticos e ferais) em áreas naturais de Mata Atlântica de três ilhas do litoral Sul do Estado de São Paulo: Ilha de Cananeia, Ilha Comprida e Ilha do Cardoso. O gato doméstico foi encontrado em todas as áreas amostradas, apresentando maior frequência na Ilha Comprida. Neste local, todas as fezes de gatos analisadas continham vestígios de presas silvestres, evidenciando, então, uma 24 Revista Expedição de Campo

Foto: Leandro Cagiano O gato pode se adaptar de maneira excepcional às mais diversas regiões do planeta e tornar-se um importante predador do sistema em questão, causando impacto considerável nos locais onde é abandonado, chegando a competir com as espécies nativas. considerável presença destes animais explorando recursos da região. Constatou-se ainda a sobreposição dos nichos alimentares entre gatos domésticos e outros felinos encontrados nas ilhas, o que sugere a possibilidade da ocorrência de algum impacto sobre as espécies nativas. Atualmente, está sendo desenvolvido um amplo estudo por meio de radio telemetria (ver box 2), especificamente visando avaliar o deslocamento destes animais nesta área da Mata Atlântica, assim como a análise da dieta desta espécie, por meio de amostras de fezes coletadas na região, cujo objetivo é conhecer os possíveis impactos deste felino nesta região do Brasil, a fim de se estabelecer medidas mitigatórias para solucionar o problema. Os resultados obtidos em um ano de estudo indicam que mesmo os animais domésticos, tendo uma alimentação fornecida por seus proprietários, em situações onde seu acesso a áreas externas é permitido, alguns animais podem passar horas e até mesmo dias fora de casa, chegando a percorrer mais de um quilômetro em uma só noite. Diante da riqueza de estímulos e ainda, motivados por seu comportamento de caça, podem exercer esta atividade sobre diferentes espécies, desde insetos a pequenos vertebrados, chegam a abater até mesmo animais proporcionalmente grandes, em comparação ao seu tamanho, como por exemplo, o gambá-de-orelha-preta (Didelphis aurita)*, uma espécie de marsupial brasileiro, como foi observado durante as análises da dieta destes felinos na Ilha Comprida litoral, Sul do Estado de São Paulo. Em resumo, é importante destacar que todo esse efeito prejudicial advém, na realidade, da falta de percepção das pessoas que levam estes indivíduos para áreas que muitas vezes eles não alcançariam isoladamente, ou alcançariam, contudo, com efeitos mais modestos. A real * Didelphis aurita: Foto na página 29 Revista Expedição de Campo 25

P r o j e t o s Te m á t i c o s d o I P e C Foto e gráfico: Giovanne A. Ferreira Proporções dos diferentes tipos de itens encontrados nas amostras fecais dos gatos domésticos monitorados em um fragmento de Mata Atlântica localizado na Ilha Comprida, Litoral Sul do Estado de São Paulo. (Estudo realizado por Giovanne A. Ferreira) Acima fotografia de um crânio de um gambá-de-orelha-preta (Didelphis aurita) encontrado no quintal de uma propriedade com gatos domésticos. Veja na fotografia da página 29 um espécime vivo. Esta espécie pode chegar a medidas corporais entre 35 a 45 cm e a pesar de 670 a 1.800g. responsabilidade do desenvolvimento deste problema é nossa e não dos animais introduzidos. Obviamente esta espécie, o gato doméstico (mas poderíamos citar muitos outros animais: ratos, cães, cavalos, porcos, caprinos, anfíbios, peixes, etc.), apresenta características que o permitem desfrutar de um papel bem sucedido e por isso, precisamos nos conscientizar de nossa responsabilidade discutindo esse problema, com as populações locais, autoridades governamentais, sanitárias e demais setores de nossa sociedade para minimizar o grave impacto numa região já amplamente prejudicada pelos mais diversos impactos causados pelos humanos. Outras espécies introduzidas em diferentes partes do mundo: A introdução de organismos exóticos, especialmente em ilhas, ou em populações isoladas, são geralmente causas de impactos drásticos nas espécies nativas. Os ecossistemas naturais têm sofrido com todos os tipos de transtornos causados por espécies exóticas, incluindo além dos gatos, cães, cavalos, muitos outros vertebrados, além de invertebrados, bem como plantas. Um exemplo clássico deste tipo de condição é o registrado na Austrália (talvez o maior exemplo dessa triste situação), onde raposas e coelhos foram introduzidos visando à caça esportiva e acabaram fugindo ao controle, gerando graves problemas ambientais. O próprio dingo (cachorro selvagem australiano Canis lupus dingo) é também fruto da introdução, pelo homem, neste ambiente. Este cão, ao se tornar feral, adaptou-se de tal forma ao novo ambiente que chegou a alcançar níveis de asselvajamento tão grandes que passou a compor a fauna local. A competição direta do dingo com o lobo-da- Tasmânia (Thylacinus cynocephalus) e indireta, com o diabo-da-tasmânia (Sarcophilus harrissii) é considerada uma das causas de extinção destas espécies no continente australiano. Destacando-se que populações de diabo-da-tasmânia ainda persistem onde o dingo está ausente. Há relatos de competição entre canídeos domésticos e silvestres em Israel, na Itália e na Índia, sugerindo que podem causar a extinção de populações remanescentes de lobos. Nos Estados Unidos, a população silvestre de furão-de-pésnegros (Mustela nigrepes) foi quase extinta devido à cinomose canina. E, por fim, há registros clínicos de lobos-guarás (Chrysocyon brachyurus) em cativeiro, vindo a óbito devido à parvovirose canina, o que demostra a suscetibilidade desta espécie ao vírus. SUGESTÕES PARA LEITURA: FERREIRA, G. A. Dieta e área de vida do gato doméstico Felis silvestris catus (Linnaeus 1758) (Carnívora, Felidae) em ambiente natural de Mata Atlântica na Ilha Comprida, Estado de São Paulo. 2011. Dissertação (Mestrado) Curso de Pós-graduação em Comportamento e Biologia Animal, Universidade Federal de Juiz de Fora Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora. 2011. GENARO, G. & COLLUCCI, E. Posse responsável de animais de estimação in Ciência Hoje, v. 44, nº 260, p.68-69, 2009. NAKANO-OLIVEIRA, E. Ecologia e conservação de mamíferos carnívoros de Mata Atlântica na região do Complexo Estuarino Lagunar de Cananeia, Estado de 26 Revista Expedição de Campo São Paulo. 2006. Tese (Doutorado) Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP, Campinas. 2006 (http://libdigi.unicamp.br).