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Transcrição:

ustiça r ^ e a interpretação da^biblia RUSSELL P. SHEDD

A JUSTIÇA SOCIAL E A INTERPRETAÇÃO DA BfBLIA Russell P. Shedd, Ph. D.

A JUSTIÇA SOCIAL E A INTERPRETAÇÃO DA BÍBLIA Russell P. Shedd, Ph. D. SOCIEDADE RELIGIOSA EDIÇÕES VIDA NOVA Caixa Postal 21486, CEP 04698, São Paulo - SP

Copyright 1984 Russell P. Shedd Primeira Edição: 1984 Reimpressão: fevereiro de 1989 Reimpressão: setembro de 1993 ISBN 85-275-0021-3 Todos os direitos de publicação reservados por SOCIEDADE RELIGIOSA EDIÇÕES VIDA NOVA Caixa Postal 21486 04698-970 São Paulo-SP

PREFÁC IO Na segunda metade do século XX tem-se generalizado um forte alarido em favor da humanização da sociedade. A injustiça social destaca-se como o inimigo principal tanto dos homens como de Deus. Deve ser combatida ferozmente, com todas as armas que dispomos. Entre as mais poderosas, encontra-se a religião. Entre os combatentes na arena da justiça social, posicionam-se alguns evangélicos. No início deste século, perceberam a direção que tomava o evangelho social no seio do movimento liberal. A luta contra a secularização do evangelho foi dura e prolongada. Os cristãos conservadores retiraram-se do campo de batalha durante décadas. Agora, renova-se o interesse pela questão de justiça. Este ensaio apresenta uma breve análise das posições evangélicas, inclusive a abertura para uma preocupação com a justiça na sociedade. Todo cristão deve se conscientizar de que a Bíblia não nos permite acompanhar indiferentemente a miséria dos que são oprimidos por impiedosos dominadores avarentos. Mas, o que fazer? Qual seria a medida que Jesus ou Paulo tomariam diante disso? A direção escolhida pelos teólogos da libertação teria fundamento na Bíblia? Este estudo foi preparado para ser integrado a um livro que a comissão de teologia da World Evangelical Fellowship (WEF) idealizou sobre a hermenêutica. Reuniram-se os membros da comissão em novembro de 1982 na Universidade de Cambridge, Inglaterra, para debater intensamente os ensaios e sugerir como poderiam ser melhorados. Em

seguida, foram reescritos e editados pelo Prof. D.A. Carson. A publicação da coleção chamada Hermeneutics and the Church por The Paternoster Press, está prevista para junho de 1984. Agradeço profundamente o estímulo da WEF como também ao conselho dos integrantes da comissão. Desejo externar também a minha gratidão aos membros da comissão editorial de Edições Vida Nova pela publicação e divulgação deste estudo em português. Rüssel P. Shedd

IN T R O D U Ç Ã O Segundo Karl Barth a função da teologia evangélica é formular uma pergunta concernente à verdade, significando com isso que a tarefa do teólogo é inquirir se a igreja está compreendendo e comunicando (com sua palavra e sua vida) corretamente o evangelho. 1 É possível crer na Bíblia de capa a capa e, mesmo assim, deixar de descobrir a verdade fundamental nela contida. 2 Uma entrega ao Autor e Senhor da Bíblia, que produza transformação de vida, assim como uma submissão contínua ao Espírito Santo regenerador, o intérprete divino da Bíblia, são pré-condições essenciais quando os desafios da Escritura são ouvidos e atendidos. Não obstante, devemos precaver-nos do perigo da cultura obscurecer nosso reconhecimento da vontade de Deus em sua Palavra revelada. A justiça social apresenta exatamente este desafio. Os que se apegaram com maior tenacidade ao plano elevado da inspiração bíblica, com freqüência sufocaram as exigências divinas para que o seu povo exemplificasse a sua profunda preocupação com a justiça. Isto é verdade, embora a justiça seja,... uma das noções mais altamente respeitadas em nosso universo espiritual. Todos os homens, crentes religiosos e incrédulos, tradicionalistas e revolucionários, invocam a justiça e nenhum deles ousa contradizê-la. A busca da justiça inspira as exprobações dos profetas hebreus e as reflexões dos filósofos gregos. Ela é invocada para proteger a ordem estabelecida, assim como para justificar a sua derrubada... um valor universal. 3 A sensível negligência em preocupar-se com a justiça social por parte dos evangélicos, deve ser então largamente atribuída ao modo como eles 1

compreendem a Bíblia.4 Crer nela não basta, se não for compreendida. O objetivo da interpretação bíblica cuidadosa, busca em primeiro lugar estabelecer o significado claro do texto, 5 o senso literalis. Os cristãos, porém, interpretam o sentido das Escrituras quanto às questões de fé de maneira muito diferente. Os problemas hermenêuticos surgidos ao interpretar a Bíblia como uma autoridade para a fé, não se evaporam quando ela é consultada com relação à prática m oral...? Tanto o significado do texto como a ênfase dada a certas passagens em detrimento de outras, nos foram transmitidas pelas nossas tradições evangélicas que, por sua vez, moldam nossas convicções com respeito ao que é certo ou errado na teologia e prática. Idealmente, a arte da interpretação, a hermenêutica, tenta reconstruir o contexto histórico-cultural dos materiais estudados, antes de proceder à sua aplicação. 7 Esta é a expectativa e o propósito de toda comunicação. A palavra de Deus não é nova (embora a nossa situação possa ser), mas continua sendo a mesma palavra original escrita pelos profetas e registrada pelos apóstolos. Ela precisa ser compreendida e aplicada com relevância à complexidade das situações do indivíduo e do mundo. Quando nosso discernimento cultural e tradicional é observado como sendo oposto às claras regras bíblicas, o problema hermenêutico se agrava.8 No passado, os evangélicos não estavam mais cegos aos deslizes teológicos e aos pecados sociais do mundo do que outros homens sensíveis e observadores em qualquer lugar. No final de contas, a contribuição dos evangélicos nas gerações anteriores, no sentido de diminuir a injustiça social mediante oposição conjunta ao trabalho de crianças, escravidão e totalitarismo, são do conhecimento comum. Os exemplos positivos de melhoria social, tais como orfanatos, hospitais, asilos, alívio da fome e numerosos males, materiais e sociais, não cessaram até hoje.9 Durante as duas últimas décadas, a voz quase silenciosa da preocupação dos evangélicos com a justiça10 elevou-se novamente em alguns setores, tanto ao norte quanto ao sul do Equador. A contribuição oportuna de Ronald Sider, insistindo junto aos cristãos abonados para que vivam com mais simplicidade, foi amplamente aceita pelo mundo de fala inglesa. René Padilla, Samuel Escobar, Orlando Costas e colegas menos conhecidos da Fraternidade de Teólogos Latino-Americanos procuraram deixar bem clara sua posição, argumentando que o evangelho truncado transmitido pelos missionários no Terceiro Mundo produziu igrejas indiferentes à preocupação fundamental do reino de Deus com a justiça. Todavia, a maior parte das igrejas evangélicas mais novas e em crescimento não se convenceram, se foram alguma vez desafia- 2 %

das a considerar os argumentos que favorecem o envolvimento em questões sócio-políticas ou econômicas num nível estrutural. A maioria das igrejas evangélicas do Brasil tem cuidadosamente evitado o envolvimento político direto. Também não tomaram uma posição conjunta a favor da oposição à ala direita do governo. Elas, porém, apresentam exemplos brilhantes do amor de Cristo aos desvalidos, aos famintos, aos doentes e necessitados. Três fatores predominantes explicam parcialmente este desinteresse. Primeiro, uma tradicional compreensão antecipada da Bíblia, criada pela amarga controvérsia entre fundamentalistas e modernistas que encorajou os evangélicos a reagirem contra o evangelho social e se apegaram tenazmente às promessas de salvação de uma vida perfeita além-túmulo.11 Segundo, o impacto negativo da aliança socialista com o ateísmo exemplificado no desafio marxista a todo tipo de religião e liberdade. Terceiro,,a convicção de que a tentativa de ganhar o mundo deve preceder qualquer esforço sério para melhorá-lo. De fato, o êxito na eliminação da injustiça social só pode ser alcançado mediante a conversão espiritual sobrenatural. Estas, entre outras razões, levaram os evangélicos a colocarem na lista negra a denúncia de opressão e injustiça social, assim como apagar de suas agendas tais questões. Mas as inúmeras viagens, os meios de comunicação de massa, a miséria dos favelados e as vítimas da seca, não podem deixar de impressionar nossa sensibilidade evangélica. Mais cedo ou mais tarde, todos nós temos de enfrentar a idéia de que talvez sejamos todos responsáveis até certo ponto pela evidente injustiça no mundo que nos rodeia. Apesar do ativismo e das vozes agudas da esquerda política, a justiça social parece ser hoje tanto uma miragem como o era há duzentos anos atrás, quando o humanismo radical fez sentir sua presença na revolução francesa.12 Mais tarde, Marx e Nietzsche desenvolveram e disseminaram os germes das ideologias comunista e fascista. As conflagrações subseqüentes das guerras e massacres do século vinte são suficientemente familiares. O impacto das teorias humanista e evolutiva deixou graves cicatrizes e uma perigosa divisão na opinião mundial, opondo-se ao socialismo e ao capitalismo. Os evangélicos hesitam em discutir as questões de injustiça social devido à sua convicção da soberania de Deus.13 Embora admitindo o envolvimento de Deus, mas relutantes em dogmatizar como o santo e onipotente Criador dirige os acontecimentos no mundo, os pontos de vista dos evangélicos continuam revestidos de mistério. Deus demonstra sua preocu- 3

«pação com o mal desumano e o sofrimento experimentado na história? Caso positivo, como?14 A realidade fragmentada e desesperada de nossa época confirma a afirmativa bíblica de que o mundo inteiro jaz no Maligno (I Jo 5.19)? É apropriado ler a Bíblia, observar os males sociais, e consolarnos com a evidência incontestável da depravação total? Apesar desta doutrina ter alcançado credibilidade de acordo com as manchetes atuais dos jornais e notícias na TV, somos culpados? A resposta evangélica a tais perguntas sugere que não se pode esperar um comportamento melhor do homem até que ele seja convertido, não em massa, mas individualmente. A única esperança da humanidade é o arrependimento, a regeneração e a restauração à sua responsabilidade bíblica diante de Deus e amor pelo próximo.15 Todavia, muitas vezes, as conseqüências da conversão não afetaram visivelmente a percepção ou prática da ética e da justiça por parte da igreja. Os cristãos compassivos reconhecem o mandamento bíblico de realizar boas obras 16, tais como aliviar os sofrimentos dos homens e protestar contra a proibição da liberdade religiosa ou a perseguição pelos regimes comunistas. Mas, dificilmente, estaria incluida a subversão ativa de governos predominantemente injustos como o regime de Idi Amin, deposto há poucos anos em Uganda. A revolução violenta é anátema para a maioria dos evangélicos,17 que endossam como questão de princípio a declaração de Paulo no sentido dos governos serem ordenados por Deus, a fím de castigar os que ofendem a justiça.18 Quando a corrupção e a opressão atingem níveis intoleráveis, os cristãos desde há muito sustentam que a paciência será recompensada pelo juízo de Deus sobre as nações e governantes culpados (do mesmo modo que os profetas do VT anunciaram a Israel). A desobediência do homem às justas exigências de Deus irá resultar na destruição cataclísmica das perversas estruturas existentes por ocasião da volta gloriosa do Rei, a quem pertence o direito absoluto de reinar sobre a terra em retidão. Os cristãos que buscam seguir a Bíblia dão prioridade à proclamação missionária do evangelho, em lugar de prover às necessidades dos desprivilegiados. Os recursos financeiros e humanos, por serem limitados, desanimaram o esforço conjunto de influenciar o destino de centenas de milhares de refugos humanos.19 Mais desprivilegiados do que os fisicamente famintos são os bilhões vivendo nas trevas intermináveis da alma, ignorantes do poder ilimitado do evangelho para incendiar a esperança e criar a 4

verdadeira fraternidade (Rm 1:16). A dicotomia foi então resolvida pela maioria dos evangélicos, favorecendo as palavras que salvam em detrimento das boas obras. A fim de apoiar melhor esta posição, as responsabilidades consideradas antes como sendo da igreja foram passadas aos órgãos governamentais encarregados de promover o bem-estar social e aliviar o sofrimento. Várias questões se apresentaram à hermenêutica, suscitadas pela oposição entre esquerda e dieita. Enquanto os evangélicos denunciam os pecados que corroem os valores culturais tradicionais cometidos primariamente pelos indivíduos, 20 a esquerda se concentra nos males da sociedade como um todo. A justiça social levanta a questão da honestidade de uma dada classe ou grupo, um governo ou nação,21 chamando às barras do tribunal as estruturas do poder político e as transações internacionais, desafiando as expressões econômicas e raciais do mal. A Bíblia nos orienta em questões de um relacionamento comercial justo com o chamado terceiro mundo? É pecaminoso para um governo permitir o desemprego acima de um nível mínimo ou impedir o livre acesso a oportunidades iguais aos cuidados médicos e à educação? Os cristãos devem opor-se vocal e ativamente à qualquer discriminação racial apoiada legalmente? Eles têm ordens de Deus para pressionar seu governo a romper relações com qualquer outro que prenda e torture as minorias políticas (e cristãs) dentro de suas fronteiras? Esta lista poderia prolongar-se quase que interminavelmente. Ainda mais básico para questão hermenêutica do que os pecados coletivos versus individuais é o envolvimento da igreja do mundo. Em vista dos cristãos terem sido resgatados deste mundo perverso (G11.4), deverão eles portanto abster-se de fazer guerra e tornar-se não-combatentes no estágio social da vida?22 Agora que a transgressão de Adão transmitida a todas as gerações sucessivas foi apagada de nosso registro (Rm 5.12-19), graciosamente quitada pelo Último Adão, deverão os evangélicos limitar sua hostilidade à oposição ao Diabo e suas forças (cf. Ef 6.10-18)? A mensagem do Dr. C.I. Scofield à conferência profética em Filadélfia em 1918 demonstra a atitude bíblica em relação às questões sociais? Oro para que Deus oriente todos os seus procedimentos, especialmente na apresentação de uma advertência destemida, no sentido de que estamos no terrível final dos tempos dos gentios sem qualquer 5

esperança para a humanidade exceto na volta pessoal do Senhor em Glória,23 Por mais consoladora que possa ser essa posição, ela talvez não expresse toda a vontade de Deus, se a Bíblia for compreendida corretamente. Razões para o Envolvimento Cristão nas Questões de Justiça Social A razão bíblica para a eliminação da desigualdade social encontra-se na origem e destino potencial do homem, assim como no amor universal de Deus pelo mundo (Jo 3.16; Mt 5.4348). As raízes da civilização ocidental acham-se profundamente arraigadas na revelação bíblica de que o homem descende de um único casal (pai e mãe) e foi criado à imagem de Deus.24 A participação comum de toda a humanidade na imago dei significa que todos os homens são herdeiros dos direitos inalienáveis da dignidade e significado intencional. Concordar com Lincoln sobre o axioma de que todos os homens foram criados iguais, mas negar a participação na imago significa que, em análise final, não há razão para uma responsabilidade comum entre os homens. Em vista do humanismo socialista ter alcançado poder, embora negando a criação do homem à imagem divina, a dignidade e igualdade humanas transformaram-se em simples slogans, muito úteis com fins de propaganda. George Orwell satirizou as conseqüências do socialismo, rejeitando o fundamento da igualdade em seu livro Animal Farm.25 Djilas e, mais recentemente, A. Solzhenitzen, descreveram as consequências históricas da sociedade ideal carente de uma base na criação divina.26 A relevância de longo alcance da verdade sobre as origens humanas é resumida no mandamento bíblico de amar ao próximo como a si mesmo (Lv 19.18; Mt 22.39). Todavia, o fracasso dos homens em viverem como irmãos, embora a criação os tenha feito para isso, é devido ao egoísmo inerente que o pecado tomou universal. A substituição de estruturas injustas por outras mais equitativas só pode, em análise final, ser coroada 6

de fracasso, a não ser que uma transformação bem mais profunda seja operada nos homens que as estabelecem e controlam o seu poder. Por esta razão, os evangélicos devem sempre contender que a primeira responsabilidade da igreja é a proclamação do evangelho e depender da modificação espiritual subseqüente operada pelo Espírito Santo, a fim de criar uma comunidade em que o não-convertido possa ver um modelo do reino de Deus.» Os interesses da justiça social devem, portanto, ser sempre mantidos numa relação subordinada ao evangelismo, que é o meio utilizado por Deus para restaurar a imagem divina através da habitação interior de Cristo (Cl 3.10). Podemos afirmar com propriedade que o alvo da humanidade é a perfeição comunitária 27 daqueles que se tornaram um Corpo mediante a ação incorporadora do Espírito Santo (I Co 12.13). O Deus que deu aos pecadores o seu dom mais precioso, o Filho, não pode aprovar a indiferença à miséria em que um número incontável de pessoas arrasta sua torturada existência, aguardando sem esperança que o Reino lhes seja oferecido. Por esta razão, Jesus Cristo ordena a seus seguidores que vão ao mundo inteiro e façam discípulos de todas as nações, ensinando-os a obedecerem a todos os mandamentos que lhes deu (Mt 29.19ss). Enquanto os liberais socialistas classificam as desigualdades sociais como criminosas, um insulto ao homem e a Deus,28 os evangélicos de modo incongruente parecem aceitar com grande tranqüilidade o fato de grande parte desse mesmo mundo não ter ouvido ainda a mensagem da salvação. Por outro lado, onde o evangelho foi proclamado e aceito, nova alegria e esperança substituíram o desespero predominante.29 Os traços da imagem de Deus começaram a surgir (cf. Rm 8.28s com 2 Co 3.2,18). O Significado da Justiça Social na Bíblia Para muitos humanistas seculares, a justiça social talvez não signifique muito mais do que a substituição do capitalismo pelo socialismo estatal, facilitando assim a distribuição equitativa da produção e garantindo uma divisão imparcial das riquezas do mundo a todos os homens 7

segundo as suas necessidades. Outros acrescentariam a esta base a dimensão da paz internacional de modo a eliminar todas as ameaças aos indivíduos; acima de tudo, a destruição nuclear. Outros ainda, reconhecem prudentemente que o fracasso em prover significado para a vida humana erra o alvo. Por que buscar a paz, prosperidade e segurança se o enfado e o tédio impelem os homens a pensar no suicídio? Na Bíblia, a justiça social tem sua raison d etre na relação entre o homem e Deus e na revelação transmitida ao homem registrada nas Escrituras. Deus é quem garante os fracos, protegendo-os contra o insaciável desejo de poder dos fortes. As estruturas ordenadas por Deus para Israel através de Moisés, tinham como um de seus principais objetivos esta imparcialidade de Deus refletida nas instituições que governavam a vida do seu povo da aliança. Deus é o proprietário absoluto e original das terras (SI 24.1; cf. 50.12 e Dt 10.14), portanto, o título de propriedade para qualquer parte dela não concede direitos totais de posse aos proprietários humanos. Desde que os hebreus pertenciam a uma sociedade agrária, a restauração das terras alienadas aos primeiros donos era uma cláusula importante na legislação divina. Também a terra não se venderá em perpetuidade, porque a terra é minha... (Lv 25.23). A tendência humana natural de adquirir mais e mais terra, criando um monopólio, não deveria ser permitida. Em lugar dos fracos e pobres serem forçados à escravidão em épocas de dificuldade, seja de fome ou de tragédia pessoal (como no caso de Noemi, Rt 1.1; 4.1-11), eles podiam começar de novo. Do mesmo modo, os escravos israelitas (reduzidos à servidão em tempos de crise e incapacidade de pagar uma dívida) deviam ser libertados em intervalos de sete anos pré-estabelecidos (Dt 5.12).30 As mulheres também tinham seus direitos protegidos pela lei. Os que cometiam assassinato não-premeditado podiam encontrar proteção permanente contra o vingador do sangue, mudando-se. para uma das cidades de refúgio providas em lugares convenientes na terra. As leis de Israel foram indiscutivelmente instituídas por Deus a fim de criar e manter uma sociedade justa para todos os seus cidadãos, sem consideração de classe ou posição. A nação refletiria assim a própria paixão de Deus pela justiça e a sua imparcialidade. Deus ordenou aos ricos que não negligenciassem ou desprezassem os pobres (Dt 15.7ss). De fato, um dos propósitos do descanso sabático da terra era o de prover 8 %

alimento para os destituídos (Ex 23.11). A legislação divina não permitiria a discriminação racial. Os estrangeiros, as viúvas e os órfãos deveriam ser bem tratados (Dt 10.18ss; 24.17). Os julgamentos nos tribunais deveriam ocorrer imparcialmente, não levando em conta o status social do acusado (Ex 23.1,6,7; Lv 19.15s) e evitando o suborno das autoridades (Ex 23.8). Por ser injusta, a opressão econômica foi declarada contrária à lei de Deus (Dt 24.17). A usura e os empréstimos deviam beneficiar os necessitados e não ao agiota capitalista (Ex 22.25ss). Os inocentes não deviam sofrer pelos crimes dos culpados (Dt 24.16).31 Uma vez que Deus odeia a opressão, ele quebrou as algemas da servidão de Israel (cf. Ex 23.10; Dt 15.15). Por ser o doador da prosperidade e distribuidor da riqueza, Deus exige que sua generosidade seja reconhecida com gratidão e louvor (Dt 8.11-20), acompanhada de um compromisso com a justiça. Deus é Deus de justiça e misericórdia, portanto exigiu o cancelamento das dívidas e empréstimos em tempos determinados (Dt 15.1-6), e mostra, então, o modelo desejado para ser seguido pela nação em que é reconhecido. Mas a sua justiça promete enviar ira e pesados castigos sobre os líderes que não respeitarem suas leis misericordiosas e justas.32 Em sua preocupação com os desprivilegiados, ele ordenou que os dízimos de cada terceiro ano fossem utilizados no sustento dos levitas que não possuíam terras, dos estrangeiros e das viúvas e órfãos (Dt 26.12-15). A legislação social e as regras de culto são justapostas no Pentateuco para sublinhar o princípio de que Deus não só ordena aos homens manterem uma relação vertical adequada com Ele, mas também atribuirem a necessária importância ao seu relacionamento com a criação e especialmente com o homem, o seu próximo. O dever para com Deus e a responsabilidade para com o ser humano acham-se inextricavelmente ligados, por seu interrelacionamento fundamental. Jetro avaliou muito bem a importância de um governo em que os líderes são capazes, temem a Deus, odeiam o lucro desonesto e amam a verdade (Ex 18.21). As instituições e leis divinas reveladas não garantem, porém, a execução da vontade de Deus por parte dos homens no governo. A história de Israel revela os freqüentes fracassos por parte dos líderes em aplicar as normas divinas. A época dos juizes foram anos de governo fraco, em que cada um fazia o que era reto aos seus próprios olhos, apesar deles exercerem uma autoridade nominalmente teocrática. A 9

pressão das nações vizinhas não foi rejeitada com vigor, e Israel veio a adotar as religiões naturalistas com o fito de proteger-se contra as incursões dos exércitos saqueadores desses mesmos vizinhos. Nem os sacerdotes nem os juizes tiveram habilidade suficiente para estabelecer um governo em que as justas leis de Deus fossem obedecidas, e colhidas as bênçãos conseqüentes.33 Os séculos de governo inepto que se seguiram, motivaram Israel a buscar uma autoridade central mais forte, através da monarquia. Os anciãos transmitiram a vontade da maioria a Samuel que, por sua vez, pediu a Deus que estabelecesse um rei a fim de manter um nível mais alto de justiça social (I Sm 8.4s, 20). A resposta de Deus (1 Sm 8.11-18) mostra claramente que as grandes esperanças colocadas pela nação em um rei humano jamais seriam concretizadas, pois a injustiça recrudesceria (1 Sm 8.11-18). Os séculos subseqüentes confirmaram que esta previsão estava correta. Embora Deus renunciasse ao seu papel nominal de soberano teocrático sobre Israel, em deferência ao desejo da nação de igualar-se aos vizinhos, ele não abdicou de sua responsabilidade pela conduta moral do rei. Saul foi logo deposto por Deus, devido à sua falha em obedecer ordens. Davi, apesar de achar favor diante de Deus, foi severamente repreendido pelo profeta Natã ao praticar um ato de injustiça real bastante reprovável (2 Sm 11,12. Nenhum monarca contemporâneo do Oriente Próximo teria imaginado que restrições morais desse tipo se aplicariam ao rei).34 Os pesados impostos, o trabalho forçado e a idolatria de Salomão dividiram o reino em dois sob seu filho Roboão (1 Rs 11.13; 12.4), que continuou a governar com mão de ferro o povo, seguindo a política paterna (1 Rs 12.1-15). A nação prosperou ou decaiu de acordo com uma sombria sucessão de reis que ocasionalmente obedeciam as leis justas dadas por Deus ao povo. Com o correr do tempo, a desobediência cada vez maior do povo forçou Deus a decretar o exílio de Israel e Judá para a Assíria e Babilônia, perdendo o direito de governar-se como estados independentes. Apesar da mensagem reiterada dos profetas que denunciavam a opressão injusta e anunciavam as conseqüências ameaçadoras dessa falha com o castigo divino, a nação raramente honrou a Deus mediante o arrependimento humilde necessário para evitar o seu juízo. Nem mesmo o reavivamento liderado por Josias na época de Jeremias, que levou grandes multidões de adoradores ao templo, produziu 10 %

qualquer mudança profunda ou o retorno aos caminhos antigos (Jr 6.16-16.21). John Brigth observa: Desse modo, os homem sempre reformaram, removendo as imoralidades mais grosseiras e participando mais ativamente no trabalho da igreja. Os pecados sociais que constituem o mal da sociedade continuam (Jr 5.23-29), e o clero acomodou-se a eles para satisfação de todos.35 Não só a idolatria e a falsa religião, mas também a opressão (o culto prestado ao poder e bem-estar da própria pessoa às expensas dos fracos) foram as causas do exílio da nação (Jr 34.3-17). A história da exploração dos fracos por parte de Israel exigiu denúncia, mas também a promessa de um rei vindouro que modificará a natureza do homem, de sorte que ele venha a manifestar atitudes e atos característicos do arrependimento,36 O VT apresenta tanto a demanda de justiça social como a história do fracasso humano na prática da retidão. Deus rejeita totalmente qualquer divisão entre religião e justiça (sendo ambas cingidas pela lei divina estabelecida na natureza do próprio Deus). Não são só os indivíduos, mas também as instituições sociais injustas, controladas por impiedosos retentores do poder, são o foco da ira divina. Tais instituições abrangem a sociedade como um todo numa trama de perversidade social, trazudida em termos de impostos opressivos, aluguéis altos, logro dos fregueses mediante o uso de pesos falsos, escravidão dos pobres (cf Is 10.14; Am 4.14; 5.10-15; 6.4-7; 8.4-6; 9.8; SI 94.20-23).37 Rooy demonstrou de maneira convincente que a retidão e a justiça não são níveis diferentes de santidade que as pessoas podem decidir alcançar à sua própria discrição, mas sinónimos.38 Quando os homens escarnecem da justiça, Deus não aceitará a sua adoração, por mais custosa e sacrificial que seja, uma vez que a injustiça e a idolatria se equivalem a seus olhos (Am 5.25s.). Os profetas, várias vezes, chamaram o povo ao arrependimento nacional. Um retorno a Deus, por parte do rei e sacerdote, negociante e proprietário de terras, reinstilaria o desejo nacional de viver justamente, conduzir os negócios do estado com retidão e exercer controle sobre outros sem desigualdades. 11

Sendo Israel no Antigo Testamento um estado político e também o Povo de Deus, o Senhor comissionou profetas como seus porta-vozes para desafiar os controladores de poder do estado. Reis e autoridades políticas nacionais reagiram preconceituosamente a esta interferência na sua esfera de influência. Sabe-se perfeitamente como homens tais como Jeremias e Isaías foram tratados às mãos de monarcas como Zedequias e Manassés. Profetas que atacaram a maldade da estrutura foram, dificilmente, diferenciados de subversivos e revolucionários. Sem dúvida, por causa da similaridade entre a maldade condenada nos dias dos profetas e a iniqüidade sócio-política do nosso tempo, é que seus escritos são atualmente tão populares na batalha verbal contra as estruturas nocivas. Entretanto, o que devemos questionar é o contexto. Tanto os profetas como as estruturas de poder faziam parte integral da naçãoeleita.39 Israel como o povo escolhido de Deus, sob a antiga aliança, foi chamado a fim de ser luz para as nações. A identificação de Deus com seu povo tornou essencial o desafio à maldade do sistema.40 A progressiva teologia católico-romana não tem distinguido suficientemente a Igreja, por um lado, como um povo peregrino, e por outro lado, como um estado.41 Se a Igreja é um estado, então as autoridades eclesiásticas devem equiparar-se às autoridades seculares. A nação cristã não pode fugir da implicação de que as autoridades sócio-políticas devem estar subservientes ao poder eclesiástico. Mas o Novo Testamento não apresenta tal quadro, absolutamente. O povo da nova aliança exerce corretamente sanções espirituais, o estado secular tem autorização divina para decretar e impor leis pela espada (Rm 13.1-7). Admitimos que a contribuição mais significativa que a hermenêutica pode oferecer não é a relação correta entre a teologia sistemática e a histórica, mas entre a teologia e a prática, i.e., entre o evangelho e a ação.42 Foi justamente uma relação necessária entre suas palavras e a prática que Jesus endossou no Sermão do Monte (Mt 7.15-27). A teologia do Novo Testamento não está dissociada da vida. Os cristãos 12 %

são obrigados a praticar a retidão. Seu relacionamento com as estruturas da sociedade e do governo acha-se subordinado à sua sujeição ao Senhor da igreja; assim sendo, os empregadores cristãos, os oficiais ou autoridades de qualquer espécie são obrigados a ouvir a lei de Deus e obedecê-la. No caso dessas estruturas serem do tipo explorador, eles devem levantar suas vozes contra a injustiça e tratar seus empregados ou subordinados com justiça. Só assim terão condições de demonstrar fidelidade a Deus e a veracidade de sua profissão de fé como cristãos e membros da igreja cujo Cabeça é Cristo.43 No caso da hermenêutica anterior mostrar-se estranhamente silenciosa com relação ao status quo opressivo/repressivo e nitidamente incapaz de modificá-lo,44 apenas o estado secular deve estar em vista e não a igreja local ou alguma denominação. Uma exposição profética da vontade divina para o estado secular não é incumbência do pregador da Palavra como acontecia em Israel. De outro modo, para ser consistente, o estado teria de ser tido falsamente como cristão e estar sob a égide de Cristo, o Rei justo. Do mesmo modo, o fato dos homens de Deus exporem com indignação os males das coletividades, econômicos ou políticos, toma por certo de que darão ouvidos, como de fato o verdadeiro cristão deve fazer. Por outro lado, não devemos fechar os olhos para o significado tipológico da lei de Deus revelada sob a velha aliança para o seu povo da nova aliança. O interesse de Deus pela justiça em toda a terra não é diminuído pela cruz, pela ressurreição e pela inauguração da nova era. Os cristãos continuam a viver no mundo embora sejam cidadãos do céu (Fp 1.27). Como membros constituintes da sociedade e de um estado político, eles devem exercer seus direitos e responsabilidades de modo a aperfeiçoar ambos. Farão bem em proclamar o mais ampla e enfaticamente que possam que a justiça exalta as nações, mas o pecado é o opróbrio dos povos (Pv 14.34). A primeira e principal mensagem a ser anunciada pela igreja ao estado e aos que dominam as estruturas perversas do mundo, é a exigência de Deus quanto ao arrependimento (cf. At 17.30). No momento em que os líderes se submeterem à soberania de Jesus Cristo, a quem Deus entronizou como Messias e Senhor do mundo (At 2.36), a questão da injustiça poderá ser resolvida, pois esta é primariamente um sintoma de um relacionamento rompido entre o homem e Deus. "... Não há autoridade que não proceda de Deus (Rm 13.1), só pode significar autoridade 13

legítima. Exemplos incontáveis do abuso do direito de reinar através de toda a história, tornam claro que seguir cegamente as ordens de um estado ou de um tirano pode significar a negação da soberania de Cristo. À esta luz, fica mais fácil entender porque Jesus dirigiu suas críticas contra os advogados e sacerdotes pela sua opressão injusta do povo comum (veja Mt 23, passim). Tanto João Batista como Jesus confrontaram a liderança da nação no papel de profetas do VT, pois o povo prestava obediência ao Sumo Sacerdote e ao Sinédrio como representantes divinamente indicados por Deus e intérpretes da sua vontade. Diante dos governadores romanos, nem João Batista, nem Jesus ou Paulo (e.g. Mt 27-llss e paralelos; Jo 18.28-19.6; At 24.1-26.32) tiveram algo a dizer quanto aos males do domínio romano sobre os judeus ou o resto do mundo, embora mais da metade da população do império fosse composta de escravos tomados à força nas terras conquistadas. Estevão dirigiu-se ao Sinédrio nestes termos: Homens de dura cerviz e incircuncisos de coração e de ouvidos, vós sempre resistis ao Espírito Santo! (At 7.51-53). Ele estaria deslocado caso repetisse esta condenação diante do Senado romano ou do imperador Tibério. A liderança do povo judeu alegava interpretar a vontade de Deus, mas o imperador e seus lacaios não pretextavam fazê-lo. Embora Deus odiasse a injustiça em Roma assim como em Israel, sua estratégia ao tratar desse mal estrutural é distinta. Toda perversidade deve ser exposta quando praticada na igreja, quer através de líderes cristãos falsos ou verdadeiros (cf. G1 2.1-21; 2 Pe 2; Judas e as sete cartas em Apocalipse). Mas sofrer pela justiça às mãos do poder secular é abençoado, conforme as palavras de Pedro: 14 Estando sempre preparados para responder a todo aquele que vos pedir razão da esperança que há em vós, fazendo-o, todavia, com mansidão e temor, com boa consciência, de modo que, naquilo em que falam contra vós outros, fiquem envergonhados os que difamam o vosso bom procedimento em Cristo, porque, se for da vontade de Deus, é melhor que sofrais por praticardes o que é bom, do que praticando o mal (l Pe 3.15-17). %

Tais declarações não são excepcionais no NT. Elas, com certeza, se inspiram na atitude de Jesus quando os ativistas procuraram fazer com que se comprometesse com a causa deles.45 O povo de Deus deveria pagar os impostos, desculpando e apoiando assim a injustiça da opressão romana? Ou deveriam os cristãos praticar a desobediência civil, ativa ou passivamente, proclamando desse modo ao mundo como Deus se identificou com os hqmens dispostos a arriscar suas vidas para lutar contra a estrutura política e econômica do mal? As exortações do NT favorecem o pagamento de impostos e submissão à autoridade dos governantes, embora o estado seja grandemente injusto (Mt 22.15-22 e paralelos). Uma situação comparável pode ser observada na denúncia profética de Israel e Judá, de modo diferente de sua condenação das nações pagãs e seu tratamento injusto do povo de Deus indefeso. Os oprimidos do mundo estão fora do alcance da mensagem do profeta. Milhões de vítimas da desumanidade ocuparam o Oriente Próximo; sua difícil situação era pefeitamente conhecida por Deus, todavia não existe mandamento divino advertindo os governantes pagãos a não oprimirem seus próprios súditos.46 Os sofredores que podem confiar em Deus como seu defensor estão limitados àqueles que o tem como seu Deus, unidos a ele mediante sua misericórdia e eleição, selados na aliança. Quem lhes tocar estará tocando na menina dos olhos de Deus. Não vemos aqui diferença entre o VT e o NT. A perseguição aos cristãos (uma forma aberta de injustiça) trará sobre os seus perpetradores a ira certa de Deus (Fp 1.28; 1 Ts 1.5,6; Ap. passim). Será vão examinar o NT tentando encontrar a esperança expressa de que a igreja crescerá o suficiente para tornar-se uma maioria no estado, apossar-se do poder e instalar um governo que possa impor a justiça à sociedade. Quando no decorrer dos séculos a Igreja de Constantino alcançou realmente o domínio, a história raramente concedeu ao seu goyerno cristão boas notas pela prática da justiça.47 Quer o domínio sobre o estado tenha sido entregue ao Sumo Sacerdote, ao Sinédrio ou ao governador romano, as autoridades (hoi archontes) ignoram as implicações a longo termo de suas decisões (1 Co 2.8). Paulo declara que as autoridades servem a Deus (cf. 1 Ts 2.1ss; Tt 3.1; 1 Pe 2.13ss; Rm 13.4), autorizadas por ele a manter justiça, castigando o culpado, absolvendo o inocente e recompensando os que têm merecimento. Porém, quando o mesmo estado, Roma, foi, pelo menos 15

parcialmente, identificado com a Besta perseguidora em Apocalipse, João profetiza a retribuição divina (e sobre o futuro anticristo satânico) em termos semelhantes aos dos profetas que anunciaram a destruição da Babilónia ou qualquer outra nação que ousasse oprimir o povo de Deus. Nero encerrou três de'cadas de coexistência pacífica com os cristãos, protegidos sob as provisões da cláusula religio licita concedida ao judaísmo, e incendiou um fogo destruidor no coração de Roma. O mesmo se aplica hoje quando governos perseguidores e opressores, sejam da direita ou esquerda, oprimem a igreja. Toda injustiça será vingada por Deus no curso da história e além dela, e não só aquela perpetrada contra o povo de Deus. Sua ira se revela do céu contra toda impiedade e perversão dos homens, tanto pessoais como institucionais (Rm 1.18). Talvez seja certo assegurar que esta ira é derramada historicamente em diversas partes do mundo quando os governos são derrubados, as cabeças rolam, os governantes são depostos e homens sem poder tornam-se momentaneamente fortes (Lc 1.52), apenas para cair por sua vez caso não pratiquem a justiça. Todavia, limitar toda a visitação da ira de Deus à queda e ascensão do poder seria dificilmente justificável. Haverá um dia no futuro, declara a Bíblia, em que toda injustiça será vingada e todo mal corrigido. Jesus Cristo, o justo juiz, passará então sentença sobre todos os homens (Hb 9.27; Tg 4.12; Ap 18.11-13, onde a escravidão é indicada como uma das causas principais da destruição da meretriz; 19.5,20s; 20.13s).48 Não é incomum ouvir a frase de que a história da igreja e do mundo é uma só, de modo que a igreja é o exemplo vivo do significado único da história.49 Seja como for, seus destinos são totalmente diversos. Os verdadeiros filhos do reino podem ser despojo para os impiedosos (Hb 10.32-34), mão-de-obra explorada e oprimida pelos senhores (Tg 5.4), ou mártires inocentes assassinados por aqueles que vivem na dissipação e prazer (Tg 5.6), mas seus atormentadores enfrentarão um temível dia de acerto de contas. Os que, como Lázaro, sofrem em Cristo durante esta vida, serão confortados no porvir, enquanto aqueles que vivem egoisticamente como o homem rico, ignorando o clamor dos aflitos, experimentarão apenas agonia na segunda morte na era vindoura (cf. Lc 16.23s, 25). As epístolas de Paulo demonstram a mesma pressuposição quando se dirige ao escravo cristão. Ele está sob a obrigação de servir seu 16 %

senhor, prestando-lhe serviço obediente e respeitoso (Ef 6.5s). Os escravos não são encorajados a se rebelarem nem fugirem, mas a submeter-se humildemente aos seus donos, pois Cristo é o verdadeiro Mestre deles. Ele é quem irá devolver-lhes tudo o que lhes e' de direito (Ef 6.8). Os homens livres também receberão sua justa recompensa no caso de terem sido defraudados (Ef 6.8). Paulo não condena os proprietários de escravos por possuírem servos, mas os adverte de que terão de prestar contas pela maneira como tratarem seus escravos (Ef 6.9; Fm 14-16). As esposas cristãs são instadas a submeter-se a seus maridos incrédulos (1 Pe 3.1, note que o termo igualmente refere-se à maneira em que os escravos devem submeter-se). A mulher em Cristo foi libertada mediante sua inclusão na família e sua participação na nova era (cf. 1 Tm 2.15). A ligação com o marido incrédulo pertence à vida antiga ; sendo, portanto, considerada como provisória e importante apenas por oferecer oportunidade para convencê-lo a ter fé em Cristo (1 Pe 3.1-6). Paulo não encoraja absolutamente os cristãos a formarem um grupo de pressão, obtendo assim respeito ou melhores condições. Pelo contrário, o apóstolo dá às igrejas um exemplo em sua aceitação do sofrimento, preenchendo assim o que resta das aflições de Cristo (Cl 1.24). As dificuldades nesta vida não são de forma alguma comparáveis ao futuro peso de glória (2 Co 4.17; cf. 5.10). Avaliar a injustiça no mundo como um mal absoluto, indica que o intérprete perdeu de vista a relevância bíblica fundamental da fé em oposição àquilo que se vê. O ponto de vista central ou hermenêutico do NT é a eternidade em duas dimensões.51 Provocar sofrimento nos homens, seja pela perseguição ou mantendo as estruturas injustas da sociedade é invariavelmente perverso e digno de condenação. Mas os cristãos não devem retribuir o mal senão com o bem (Rm 12.17,21 ;Mt 7.12).52 Jesus praticou exatamente essa forma de política durante sua vida terrena. Ele não expressou qualquer interesse em comandar um exército para conquistar Roma e estabelecer a justiça no império, nem tentou substituir as autoridades judias. Insistiu porém em que os homens se arrependessem e escapassem da ira vindoura (Lc 21.34-36). Torna-se difícil confirmar a declaração de Jon Sobrino no sentido de que Jesus adota uma posição arraigada nos pobres e com o intuito de beneficiá4os... Nesse particular o primeiro princípio para a concretização dos valores morais nada mais é do que o primeiro princípio da 17

própria Cristologia: i.e.,aencamação.53 De modo algum, os pobres foram considerados salvos pelos seus sofrimentos de modo distinto dos opressores que os dominavam. As palavras de Jesus são estas: Portanto, qualquer que fizer a vontade de Deus, esse é meu irmão, irmã e mãe (Mc 3.35). O pensamento de Jesus parece ser que os pobres são abençoados (Lc 6.20), assim como os famintos (v. 21), não pelo fato da miséria e privação serem idealizadas,54 mas em vista das pessoas que Jesus tem em mente serem súditos do Rei ( Porque vosso é o reino de Deus, Lc 6.20). Deus se opõe ao orgulho e egoísmo humano que produzem rivalidade, ódio, inveja e violência. Jesus não instituiu uma sociedade comunitária permanente em que todos os membros deviam desfazer-se de seus bens. John Yoder talvez esteja certo em atribuir as exigências de Jesus a uma celebração especial do Jubileu.55 Ele não pediu a seus seguidores que fizessem voto de pobreza ou se tornassem escravos. As boas novas que pregou foram dirigidas aos pobres (Lc 4.18s; 7.22), em vista dos fracos e humildes terem menos dificuldade para entrar pela porta estreita do reino (Mt 7.13s). A maioria dos homens prefere a entrada larga e o caminho espaçoso, nem sempre por serem exploradores opulentos ou governantes opressores, mas devido ao seu egocentrismo, auto-suficiência e orgulho (cf. 1 Tm 6.17).56 A inclusão no reino não depende de distinção de classe, mas exige o recebimento do domínio de Deus sobre a vida da pessoa como uma criança (Mc 10.15; Mt 18.3). A conversão é uma experiência desse tipo concedida por Deus aos que estão dispostos a tornar-se como uma criancinha. Nicodemos teve necessidade de nascer de novo e humilhai-se o suficiente para reaprender a sabedoria de Deus (Jo 3.3,5). Jesus rejeitou a entrada dos ricos e poderosos no reino, não por alguma parcialidade exclusiva em relação aos pobres, mas devido às suas exigências totais. Todos os homens estão convidados para participar do banquete messiânico, mas no momento crucial os prósperos mostraram-se demasiado ocupados em examinar sua propriedade recém-adquirida para aceitar o convite (Lc 14.18; Mt 22.5); um outro precisava experimentar suas juntas de bois, essencial para o seu programa de expansão agrícola (Lc 14.19). Enquanto os ricos tiverem certeza de ocupar os lugares de honra na festa das bodas (Lc 14.7,8) eles condescenderão em comparecer. Os sacrifícios extraordinários exigidos dos candidatos, tais como vender todos os seus bens, tomam impossível para tais indivíduos 18 %

a entrada no reino (Lc 14.33; Mc 10.27). Os pobres, porém, devem pagar igualmente um preço: odiar pai e mãe, esposa e filhos, e carregar a cruz de Cristo (Lc 14.26s). O discípulo só pode servir a um senhor, e não a Cristo e às riquezas ao mesmo tempo (Mt 6.24).57 Até o camelo pode passar através do olho de uma agulha mais facilmente do que o rico entrar no reino (Mc 10.25). Não são, no entanto, apenas os gananciosos que ficam do lado de fora por terem sido sufocados com os cuidados, riquezas e deleites da vida (Lc 8.14), mas também o beato ambicioso.58 Por buscar a glória em seus companheiros na igreja, ele deixa de buscar a glória que vem de Deus (Jo 5.44), tornando impossível crer (i.e., ser salvo). Zaqueu era rico e poderoso, todavia, devido a uma mudança profunda em seu coração, ele ouviu as palavras jubilosas de Jesus anunciando que a salvação viera à sua casa. Os principais sacerdotes e escribas foram barrados (Lc 19.9,10), o publicano arrependido justificado (Lc 18.14). Paulo afirma claramente que os avarentos e trapaceiros não herdarão o reino (1 Co 6.10), não simplesmente por terem pervertido a justiça, mas em vista de seus valores estarem limitados a esta era. O reino deve ser buscado em primeiro lugar, disse Jesus (Mt 6.33). Um exemplo dessa busca é o coração que acumula tesouros no céu por amor a Deus (Mt 6.20,21). Jesus explica na parábola do Administrador Injusto o significado de suas palavras. Ao fazer amigos através de sua contribuição generosa ( mediante o deus da injustiça ) aos necessitados, os cristãos desprendidos asseguram a boa acolhida por parte desses amigos nas moradas eternas.59 Mas os cristãos podem cair no laço, como o pássaro na armadilha, pelo desejo das riquezas que os conduzem à concupiscência, arruinando-os (1 Tm 6.9). O amor ao dinheiro é a raiz de todos os males, sendo o pior deles o se desviarem da fé (v. 10). Em resumo,podemos fazer as seguintes observações. Primeiro, a chave para a interpretação da Bíblia encontra-se na natureza moral de Deus, na criação do homem à sua imagem, no individualismo egoísta do homem decaído. Segundo, Deus inaugurou graciosamente a nova era através da vida, morte e exaltação de seu Filho, Jesus Cristo, para que a nova e a velha eras possam co-existir. Terceiro, Deus não pretendeu que o povo da nova aliança formasse uma nação nem que buscassem poder político ou econômico a fim de mudar o mundo. Pelo contrário, eles devem preferir voluntariamente a fraqueza e a miséria para refletirem 19

a sabedoria de Deus demonstrada na morte de Jesus na cruz. Quarto, a igreja deve refletir a preocupação divina com a justiça, reconhecendo-a e impondo-a, sem violência, (somente o estado tem a autorização divina para brandir a espada), mas vivendo-a, acima de tudo em suas próprias fileiras. Os interesses do reino sobrepõem-se a todas as ambições temporais. Assim sendo, a riqueza e os bens terrenos devem ser considerados como secundários e partilhados com os carentes, acima de tudo com os da família de Deus (Rm 12.13). Quinto, o. cristão tem uma dupla cidadania, celestial e terrena. Embora a celestial tenha prioridade, ele é obrigado a cumprir seus deveres terrenos para com o estado, escolhendo o melhor caminho à sua frente, o qual favoreça a justiça e a moral. A Hermenêutica da Teologia da Libertação Desde que Deus condena os pecados sociais tão clara e freqüentemente quanto os particulares,60 os evangélicos não se mostram consistentes quando se apegam a um nível elevado de compromisso com a veracidade da Bíblia, mas negligenciam os interesses da justiça social. Os proponentes da teologia da libertação, cuja maioria é formada de latino-americanos, lançaram na arena a sua luva tanto aos católico-romanos conservadores como aos protestantes, desafiando-os a exercitar-se no esforço de eliminar a injustiça. Segundo dizem, a apatia e o não-envolvimento no conflito contra a injustiça em face da intolerável opressão praticada em grande parte do terceiro mundo não bastam, nem as justificações irão diminuir a responsabilidade da igreja em relação aos males sociais. Os liberais seguiram inicialmente a teologia existencial e sua ênfase na situação presente, mas desviaram-se bastante para a esquerda. Em lugar da salvação e santificação individual, a realidade social representa o ponto de partida válido para a reflexão teológica.61 Raízes profundas avançam até a transformação radical do espírito de Hegel, em antropologia, por parte de Feuerbach. Ele acreditava que a filosofia deve transformar-se tanto em religião como em política, tendo algo final pelo que esperar. De Feuerbach a Marx foi necessário apenas um pequeno 20 %

passo, embora importante, a saber, da teoria à prática e da observação à ação galvanizante. A contribuição de Karl Marx foi chamar à união o proletariado oprimido, a fim de derrubar o sistema capitalista explorador e criar o Novo Homem, uma irmandade universal.62 O sucesso de Marx não pode ser explicado pela sua explanação inadequada das causas da desigualdade e injustiça, mas pelo seu apelo emocional. A culpa é invariavelmente atribuída a outros e não a qualquer falha das classes baixas e nem ao juízo de Deus.63 A teologia da libertação, embora seja uma invenção latino-americana do início dos anos 60, apoiou-se grandemente nos pensadores alemães liberais, tais como E. Bloch, J.B. Metz e J. Moltmann. Tradicionalmente, os membros católico-romanos da elite, inclusive a hierarquia, apoiaram os ricos proprietários de terras e industriais que estratificaram a sociedade em classes, sociais em extremos opostos: ricos e pobres. Antes da análise marxista feita por homens como G. Gutierrez, do Peru; H. Assmann, do Brasil e J. Miranda, do México; entre muitos outros,64 a esperança de uma sociedade mais justa fundamentava-se no desenvolvimento econômico. Foram necessárias menos de duas décadas depois da Segunda Guerra Mundial para esfacelar o sonho de melhorar a sorte dos pobres através da industrialização. Os necessitados continuaram sendo abusados nas cidades como o eram no campo, tornando então urgente a liberação autêntica.65 Desde que Deus é um Deus que liberta e a Bíblia é o relato da luta do homem contra a opressão, somos informados que uma teologia da libertação deve associar-se ao ímpeto para a transformação do mundo em uma sociedade justa. A hermenêutica sofreu uma completa reviravolta devido a esta nova forma de fazer teologia. A Escritura Sagrada não é mais a fonte. Ela oferece pouca base para promover a revolução de classes.66 Mas o sofrimento das massas anônimas, com quem Jesus se identificou e a quem Deus ama especialmente, fornece o ponto de partida ideal. Ela é assim chamada teologia em lugar de ideologia. Hugo Assmann afirma: A Bíblia, só conheço uma Bíblia; a Bíblia sociológica de fatos e acontecimentos aqui e agora como cristão.67 Existe um círculo hermenêutico, alega Juan Segundo, e a maioria dos liberacionistas concordaria.68 Em primeiro lugar, a consciência cristã deve ser despertada a ponto de sentir profunda insatisfação com o status quo.69 Não deve ser permitido a cristão algum aceitar irresponsavelmente 21