SARTRE E A REALIDADE HUMANA ENQUANTO DESEJO-DE- SER Vinícius dos Santos Mestrado Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) Bolsista CAPES vsantos1985@gmail.com I A noção de desejo-de-sedefinição do Ser-Para-si em termos de nadificação. Trata-se ali de apontar que a aparece em O ser e o nada 70 intimamente ligada à nadificação encontra-se imbricada na origem da transcendência, esta concebida como a ligação essencial das duas regiões do Ser encontradas no estudo do fenômeno, o Para-si ao Em-si 71. Com efeito, o Para-si só pode relacionar-se com o Em-si, ou seja, sustentar a nadificação, determinando-se a si mesmo como falta de ser 72, isto é, fazendo-se determinar em seu ser como um ser que ele não é 73. De fato, a nadificação só pode ser entendida se considerarmos a relação do Para- e não- si com seu próprio ser em termos de falta. Dizer do Para-si que ele é-o-que-não-é é-o-que-é, ou seja, afirmá-lseu próprio ser. Isso se verifica, para Sartre, com a existência do desejo. Sinônimo de como liberdade, é, no fundo, dizer que falta ao Para-si o falta, porém, o desejo, ao contrário da necessidade, não se define em termos de uma ausência objetiva. Pelo contrário, o próprio do desejo é sua insatisfação permanente. Desejar é existir a si mesmo como falta, é ser assombrado (hanté) em seu ser mais íntimo pelo ser que ele deseja 74. De acordo com Sartre, a falta ontológica que origina o desejo deve ser pensada a partir de uma estrutura ternária: o que falta (ou faltante), aquele para quem falta (o existente) e uma totalidade que foi desagregada pela falta e seria restaurada pela 70 Doravante: EN. 71 Cf. EN, Introdução. 72 EN, p. 121. 73 EN, p. 122. 74 EN, p. 124. - 87 - PPG-Fil - UFSCar
síntese entre o faltante e o existente: o faltado (manqué) 75. Se o existente é a realidade humana, ou o Para-si enquanto fundamento de seu próprio nada, o que falta é aquilo que Sartre chama de si, ou a si mesmo como Em-si 76. Quer dizer, o desejo do Para-si é tornar-se Em-si, conservando ao mesmo tempo seu caráter de Para-si, isto é, Ser-Em-si- Para-si. O sentido da realidade humana reside, portanto, na busca do si-faltado ao modo da síntese ideal das regiões es do Ser ou valor 77. Dito de outra forma, o homem é o ser que tende a ser Deus (a outra denominação do Ser-Em-si-Para-si). Mas, radicalmente distintos, a síntese do Ser-Para-si e do Ser-Em-si é impossível e a consciência humana resume-se a uma consciência infeliz: o homem é uma paixão inútil 78. II A constatação dessa irremediável frustração, que é a fortuna do Para-si, nos sugere duas indagações, que tentaremos responder na seqüência: 1- se a síntese futura é impossível, se o Para-si nunca pode ser ao modo do Em-si, porque ele deveria permanecer engajado nesse projeto? 2- ademais, é possível falar em uma totalidade prévia a ser destotalizada, a, isto é, que estaria na base do desejo enquanto falta-de-ser, a partir de uma ontologia que cinde radicalmente o Reino do Ser? A primeira pergunta pode ser respondida assim: é apenas assombrado por essa síntese que a consciência pode ser consciência, ou seja, falta. Para Sartre, o único modo de existir da consciência é existir engajada nesse movimento que visa suprimir o desejo, assombrada por esse fantasma que é o Em-si-Para-si. Por isso, não há prioridade ontológica entre a consciência e esse ser: ambos surgem ao mesmo tempo, formando uma díade paradoxal, mas irreversível: é o ser que a consciência inevitavelmente tem de ser (enquanto falta-de-ser), mas que não pode sê-lo 79. Já a segunda questão remete à conclusão da obra, e nos encaminha para a última parte dessa apresentação. Assumindo a crítica bergsoniana à ideia de Nada 80, parece 75 EN, p. 122. 76 EN, p. 124. 77 Podemos agora determinar r com mais clareza o que é o ser do si: é o valor. (...). O valor é o si na medida em que ele assombra o íntimo do Para-si como aquilo para o qual o Para-si é. O valor supremo na direção do qual a consciência se ultrapassa a todo instante por seu próprio ser é o ser absoluto do si, com seus caracteres de identidade, de pureza, de permanência, etc., e enquanto ele é fundamento de si (EN, p. 129-30). 78 EN, p. 662. 79 Cf. EN, p. 127. 80 Cf. PRADO JR., 1989, pp. 27-69. - 88 - PPG-Fil - UFSCar
despropositado perguntar r por que há ser ao invés do nada. O mesmo, porém, não se aplica à interrogação por que há o Para-si e não apenas o Em-si?. Nesse sentido, devemos primeiramente notar que a relação do Para-si com o Em-si não é recíproca. O fenômeno do Em-si é uma abstração sem a consciência, pois só há mundo, fenômeno, com a aparição do Para-si. Contudo, o ser desse Em-si independe do Para-si para existir. Temos aqui uma complicação. É que, definido como acontecimento absoluto, o surgimento do Para-si escapa à ontologia, e sua elucidação se desenvolve no intricado chão (ou céu?) da metafísica, um domínio até então aparentemente ausente de EN. Bento Prado Júnior assinala que a passagem da ontologia à metafísica, em Sartre, é passagem do apodítico ao hipotético 81. Numa palavra, se cabe à ontologia descrever as estruturas do Ser (o Em-si como aquilo que é e o Para-si como projeto de autofundação), compete à metafísica formular hipóteses capazes de unificar os dados da ontologia 82, isto é, que possam esclarecer o acontecimento absoluto que vem coroar a aventura individual que é a existência do ser 83. Nesse sentido, a ontologia limita-se a alegar que tudo se passa como se o Em-si, em um projeto para fundamentar-se a si mesmo, se concedesse a modificação do Para-si 84. A metafísica, por sua vez, pensando o surgimento da negação, declara: Mas precisamente porque nos colocamos do ponto o de vista desse ser ideal [o ens causa sui, Em-si-Para-si V.S.] para julgar o ser real que chamamos ólon [i.e., o mundo após o bouleversment provocado pelo surgimento do Para-si V.S.], nós devemos constatar que o real é um esforço malogrado para atingir a dignidade da causa-de-si. Tudo se passa como se o mundo, o homem e o homem-no-mundo não chegassem a realizar senão um Deus malogrado. Tudo se passa, portanto, como se o Em-si em estado de desintegração em relação a uma síntese ideal 85 e o Para-si se apresentassemem. Se considerarmos o emprego do termo desintegração na passagem acima, nos parece permitido pensar em uma totalidade anterior à cisão do Ser, ainda que em termos ideais. Todavia, podemos explorar um pouco mais o tema. Para isso, recorremos à qualificada 81 PRADO JR, 2006, p. 33. 82 EN, p. 669. 83 EN, p. 669. 84 EN, p. 669. 85 EN, p. 671. - 89 - PPG-Fil - UFSCar
crítica de Renaud Barbaras as acerca da ontologia de EN 86, com o intuito ito de trazer novos elementos para nossa reflexão. III Para Barbaras, se por um lado, a intencionalidade em Sartre pode ser corretamente compreendida em termos de desejo, por outro, uma fenomenologia do desejo não poderia satisfazer-se com a ontologia de EN. É que esta fracassaria justamente em dar conta da realidade do faltado que o desejo reclama. Resumidamente, segundo Barbaras, o desejado (ou o faltado) deve caracterizar-se por um surcroît d être, ou seja, por uma superioridade ontológica 87 em relação aos demais membros da estrutura ternária do desejo, o que parece realmente impossível nos marcos de EN. A dura acusação de fracassoso repousa, com efeito, na constatação de que Sartre, sem conseguir desvencilhar-se e das amarras do dualismo Em-si e Para-si, situa a totalidade do lado do acontecimento [i.e., do Para-si V.S.] e não do lado do Ser, quando deveria situar a totalidade do lado do Ser [que nesse caso não poderia ser definido como Em-si V.S.] e a cisão do lado do acontecimento absoluto 88. É que para o autor de Vie et intentionnalité, o desejado não pode ser uma síntese impossível, mas uma totalidade afetada por uma cisão ou por uma negação 89. Desse modo, invertendondo a ontologia de Sartre, Barbaras sugere que a totalidade pertence ao Ser, enquanto a destotalização é um acontecimento. Numa palavra, a ausência própria ao desejado seria o efeito de uma cisão metafísica contingentente que é o sentido primeiro do Ser 90. Se, de fato, as observações de Barbaras parecem justas, também m é verdade que o próprio crítico pode nos auxiliar, valendo-se da letra sartriana, a encontrar um meio de superar o obstáculo por ele avistado. Barbaras lembra, nesse momento, que Sartre delimita (propositalmente, e, como tentaremos mostrar a seguir) o alcance da ontologia fenomenológica: apesar da assumida a adequação do problema, lemos em EN que a questão da totalidade não pertence ao setor da ontologia 91, pois, para esta, as únicas regiões que podem ser elucidadas são as do Em-si, do Para-si e da região ideal da causa 86 Sur l ontologie sartrienne. Désir et totalité. In: BARBARAS, 2003, pp. 55-63. 87 BARBARAS, op. cit., p. 59. 88 BARBARAS, op. cit., p. 62. 89 BARBARAS, op. cit., p. 62. 90 BARBARAS, op. cit., p. 62. 91 EN, p. 672. - 90 - PPG-Fil - UFSCar
de si 92. É verdade que Sartre afirma termos uma consciência exaustiva da totalidade, mas apenas para fazer entrever que, com ela, deixamos a apodicidade da ontologia em direção ao hipotético campo da metafísica. De acordo com Barbaras, essa perspectiva é a de um sujeito que está engajado no ser, inscrito na totalidade, e tenta explicitar as regiões do ser 93. Por isso, desse ponto de vista, as indicações que podem auxiliar a metafísica não têm um valor definitivo 94, e se formulam em termos hipotéticos (o famoso tudo se passa como se ). Isso explica que Sartre, logo após eliminar o problema da totalidade dos domínios de sua ontologia, acrescente o seguinte parágrafo, que pode abrir uma via para a resolução dos problemas indicados por Barbaras (o que, diga-se de passagem, é assumido pelo próprio): Cabe à metafísica decidir se será mais proveitoso o ao conhecimento (em particular à psicologia fenomenológica, à antropologia, a, etc.) tratar de um ser que denominaremos o fenômeno, e que seria provido de duas dimensões de ser, a dimensão Em-si e a dimensão Para-si (desse ponto de vista haveria apenas um fenômeno: o mundo), do mesmo modo como, na física einsteniana, considerou-sese vantajoso falar de um acontecimento concebido como dotado de dimensões espaciais e uma dimensão temporal e localizado em um espaçotempo determinado; ou se será preferível, a despeito de tudo, conservar a antiga dualidade consciência-ser 95. Para terminar, e não obstante essa possível saída para os obstáculos sugeridos por Barbaras, não há como o contestá-lo quando ele denuncia certo enigma das relações entre ontologia e metafísica em Sartre. Se não nos cabe decifrá-lo, podemos ao menos arriscar um motivo para a descontinuidade evidente entre ambas as disciplinas. Como dissemos acima, a ontologia fenomenológica pretende-se uma descrição apodítica da realidade humana, cujo ponto de partida necessário é a interioridade do cogito. Em outros termos, a filosofia tem como princípio o homem engajado na totalidade, o ser-no-mundo. A nosso ver, com a adoção desse ponto de partida, Sartre parece insinuar que toda teoria que se ocupe da totalidade (i.e., toda metafísica) irá esbarrar nesse engajamentonto e, consequentemente, numa finitude diante da qual o tema 92 EN, p. 672. 93 BARBARAS, op. cit., p. 63. 94 A constatação é de Barbaras. 95 EN, p. 673. - 91 - PPG-Fil - UFSCar
não poderia ser tratado senão de maneira hipotética. Apenas um ser capaz de superar sua própria sina e realizar r o Em-si-Para-si poderia tratar o todo da mesma forma que a ontologia pode descrever r as regiões do Ser. Polêmicas à parte, o fato é que, se nossa impressão se confirma, podemos igualmente declarar que essa concepção de Sartre não é de forma alguma casual: al: afinal, além da fenomenologia, EN também se inscreve na perspectiva filosófica inaugurada por Kierkegaard, fato, aliás, ao qual Barbaras parece não dar a devida importância. Nesse caso, é preciso considerar algumas das característicass das chamadas filosofias da existência. Primeiramente, o desdobramento por dentro 96 dos problemas concernentes à existência ia humana, que privilegia a subjetividade e (individual) em oposição a um ponto de vista sistêmico e exterior do Todo. Se compartilham de uma união profunda do existencial e do ontológico, como lembra Jean Wahl, essas filosofias são ontologias faltadas (manquées) e que se sabem faltadas, as, que se pensam necessariamente faltadas, pois, com elas, não podemos atingir (atteindre) o ser 97. Some-se a isso o fato de que, sendo o homem um ser irremediavelmente finito, o existencialismo pensa que [esse] homem persegue um fim inacessível 9 A nosso ver, isso se harmoniza, em Sartre, justamente com uma nova démarche metafísica, contrária à da tradição: em linhas gerais, reabilita-se o metafísico, mas apenas na medida em que esse metafísico exprima a conexão viva com o mundo 99. Assim, não é de se estranhar a opção sartriana de definir o homem comoo paixão inútil ; tampouco a de tomar como ponto de partida de sua filosofia o existente engajado na totalidade, limitando a ontologia fenomenológica a descrever as relações do homem com o mundo circundante, e imputando à metafísica um caráter apenas regulador 100. Trata-se para Sartre, afinal, de privilegiar a experiência vivida, o homem concreto e ontologicamente livre, nisto conciliando Husserl (o método fenomenológico e uma consequente ontologia) e Kierkegaard (o eixo temático do existencialismo) 101. 98. 96 Cf. MOUNIER, 1963, p. 40. 97 WAHL, op. cit., p. 65. 98 MOUNIER, 1963, p. 74. 99 ARANTES, Paulo. Bento Prado Jr. e a filosofia uspiana da literatura dos anos 60. In: PRADO JR., 2000, pp. 249-50 [posfácio]. 100 Cf. PRADO JR., op. cit., p. 33: A metafísica aparece como regulação, na sua oposição à constituição ontológica. 101 Há três planos de análise que operam em EN: um existencial (das atitudes concretas), um ontológico (dos seres transfenomenais que sustentam o aparecimento do fenômeno) e um metafísico (funcionando como uma espécie de marco regulatório). O privilégio conferido aos dois primeiros planos dá-se - 92 - PPG-Fil - UFSCar
Terminamos, porém, com as palavras de outro filósofo. É que muito antes de Kierkegaard, ou de Sartre, encontramos em Pascal aquilo que, transposto para o cenário existencialista, descreveríamos como a condição paradoxal e dramática do homem que deseja, em vão, um fundamento para sua existência, mote privilegiado da filosofia sartriana, cujo núcleo (o desejo-de-ser) buscamos expor: Ardemos no desejo de encontrar uma plataforma a firme e uma base última e permanente para sobre ela construir uma torre que se erga até o infinito; mas os alicerces desmoronam e a terra se abre até o abismo 102. BIBLIOGRAFIA 1. BARBARAS, Renaud. (2003). Vie et intentionnalité é recherches phénoménologiques. Paris : Librairie Philosophique J. Vrin. 2. CLAIR, André. (1997). Kierkegaard existence et éthique. Paris: Presses Universitaires de France. 3. COOREBYTER, Vincent de. (2005). Les paradoxes du désir dans L être et le néant. In : BARBARAS, Renaud (org.). Sartre. Désir et liberté. Paris : Presses Universitaires de France. 4. DESCARTES, René. (1973). Meditações. In: Col. Os Pensadores. 1ª edição. Trad. J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. Notas de Gérard Lebrun. São Paulo : Ed. Abril Cultural. 5. LEBRUN, Gérard. (1983). Blaise Pascal voltas, desvios, reviravoltas. In: Col. Encanto radical.. Trad. Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo: Editora Brasiliense. 6. MOUNIER, Emmanuel. (1963). Introdução aos existencialismos. Trad. João Bénard da Costa. São Paulo: Livraria Duas Cidades. 7. PASCAL, Blaise. (1999). Pensamentos. In : Col. Os Pensadores. Trad. Olívia Bauduh. São Paulo : Ed. Nova Cultural. 8. PRADO JR., Bento. (2000). Alguns ensaios filosofia, literatura, psicanálise. 2ª edição revista e ampliada. São Paulo: Editora Paz e Terra. principalmente por conta de duas das vertentes da herança sartriana: de um lado, a fenomenologia (que, na esteira de Heidegger, é primeiramente ontologia), e, do outro, a abordagem temática existencialista. 102 PASCAL, 1999, p. 47 (fr. 72 Desproporção do homem). - 93 - PPG-Fil - UFSCar
9... (2006). O circuito da ipseidade e seu lugar em O ser e o nada. In: Revista a Dois Pontos: Sartre, v. 03, n. 02. 10... (1989). Presença e campo transcendental al consciência e negatividade na filosofia de Bergson. São Paulo: EDUSP. 11. SARTRE, Jean-Paul. (1994). Consciência de si e conhecimento de si. In : A transcendência do ego. Trad. Pedro M. S. Alves. Lisboa : Edições Colibri. 12.. (2007). L Être et le Néant essai d ontologie phénoménologique.. Édition corrigée avec index par Arlette Elkaïm-Sartre. Collection Tel. Paris: Gallimard. [(2003). O Ser e o Nada. 12ª edição. Trad. Paulo Perdigão. Petrópolis: Editora Vozes]. 13. WAHL, Jean. (1954). Les philosophies de l existence. Paris : Librarie Armand Colin. - 94 - PPG-Fil - UFSCar