CARTAS DE PAIS DE CRIANÇAS AUTISTAS AO JORNAL DO BRASIL NA DÉCADA DE 1980: EXPERIÊNCIA E MOBILIZAÇÃO



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Transcrição:

HISTÓRIA CULTURAL: ESCRITAS, CIRCULAÇÃO, LEITURAS E RECEPÇÕES Universidade de São Paulo USP São Paulo SP 10 e 14 de Novembro de 2014 CARTAS DE PAIS DE CRIANÇAS AUTISTAS AO JORNAL DO BRASIL NA DÉCADA DE 1980: EXPERIÊNCIA E MOBILIZAÇÃO Bruna Alves Lopes * As décadas de 1970-1980 no Brasil foram marcadas pelo processo de redemocratização. Esse contexto de lutas e reinvindicações, abrangendo vários setores da sociedade, favoreceram o fortalecimento e a mobilização da sociedade civil, além de proporcionar a reorganização dos movimentos sociais e o surgimento das organizações não governamentais (ONGs) (BECKER, 2010). Este cenário de efervescência no âmbito político e social colaborou para que determinados assuntos até então marginalizados, ou negligenciados, fossem incorporados às pautas de discussões de diversos grupos da sociedade. Podemos citar o autismo como um exemplo de tema que ganhou maior visibilidade nesse período, em especial no decorrer da década de 1980. Ao longo da década de 1980, pais de crianças diagnosticadas com autismo utilizaram a seção Cartas existente no periódico Jornal do Brasil como meio de tornar público suas experiências e dificuldades para proporcionar aos seus filhos melhores condições de vida. Tendo em vista tais questões, o objetivo deste trabalho é demonstrar os resultados da análise de 13 cartas, enviadas por pais de crianças diagnosticadas ao Jornal do Brasil, no decorrer das décadas de 1980. O acesso às fontes aqui analisadas foi realizado através do acervo digital da Hemeroteca Nacional Digital Página1 * Graduada em Licenciatura em História pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG) e Mestre em Ciências Sociais Aplicadas pela mesma instituição de ensino superior.

(http://hemerotecadigital.bn.br), por meio de uma busca geral, utilizando o termo autismo, foi possível encontrar as cartas utilizadas como fontes nesse trabalho. Santo e Dumont (2014) ao escreverem sobre o significado dos jornais, afirmam que os mesmos não podem ser vistos simplesmente como um espaço em que as informações são transmitidas para o público; sendo mais pertinente observa-los como um espaço que contribui para que o leitor, ao entrar em contato com o texto, possa a partir de seus conhecimentos e de seus valores, também criar novas informações e validar aquelas que já possuem. Além disso, vale ressaltar que os jornais colaboram também na elaboração da comunicação: seja entre o leitor e o jornal, seja entre eles e outros leitores através dos textos escritos e divulgados. Tal compreensão dos jornais levou as autoras a conceitua-los como um meio dialógico, mesmo que registre certo desequilíbrio entre as vozes que o constroem (p, 179), pois possibilitam o contato de pessoas com experiências e visões de mundos distintas, viabilizando a comunicação entre elas. A grande maioria dos jornais impressos possuem entre suas páginas uma seção destinada a publicar críticas, sugestões e comentários de seus leitores. A seção Cartas é um espaço em que o leitor se coloca não apenas como receptor do discurso produzido e divulgado pelo jornal, de modo passivo, mas também como um produtor de discursos. Se, para Orlandi (1994) não há discurso sem ideologia, é importante ressaltar que as enviadas aos jornais expressam os valores dos leitores que as escreveram. Além disso, Há que se considerar, ainda, que aqueles que escrevem representam uma população muito mais ampla que se possa dimensionar, porque, no fundo, são uma espécie de porta voz das queixas e observações de tantos/as outros/as que, por algum motivo, não enviam suas opiniões aos jornais (SANTO, DUMONT, 2014, p. 177). Tendo em vista tais questões, analisaremos 13 cartas publicadas no decorrer da década de 1980 na seção Cartas do Jornal do Brasil. São cartas escritas por pais de crianças diagnosticadas como autistas e que usam o espaço proporcionado pelo jornal para expressarem suas experiências, dúvidas e críticas à falta de apoio e assistência para seus filhos ou mesmo às publicações consideradas desrespeitosas ou incoerentes e que publicadas no próprio jornal. Expressam o desejo de comunicar seus pontos de visto sobre o diagnóstico do filho (a), os problemas enfrentados num país que passava por transformações profundas em seu cenário político e social. Página2

Para analisar os dados coletados do decorrer da pesquisa, utilizamos a análise de discurso entendida por Orlandi (1994) como um ato social que produz sentido entre os interlocutores, sendo então importante ao analista verificar as condições históricas e sociais em que os enunciados são produzidos ou, em outras palavras, as condições de produção e recepção textual são elaboradas. CONCEITO DE AUTISMO Desde a década de 1940, com os estudos de Kanner e Asperger, o termo autismo começou a ser utilizado como a expressão de uma entidade nosológica diferenciada da esquizofrenia. Apesar das primeiras tentativas de diferenciação entre autismo e esquizofrenia terem partido do campo da psiquiatria área de origem dos dois pesquisadores anteriormente mencionados até a ascensão das chamadas neurociências na década de 1980, predominou nos estudos sobre o autismo a visão psicanalítica, influenciada, sobre tudo, pelos estudos de Bruno Bettelheim. Cavalcanti e Rocha (2001) ao falar sobre o autismo e os estudos realizados na perspectiva psicanalítica, argumenta que no período em que Kanner apresentou seu estudo crescia no meio psicanalítico o interesse pelos estudos sobre a relação mãe-bebê, o que pode ter contribuído para que a temática despertasse o interesse de psicanalistas no mundo todo. Em sua obra mais conhecida, A fortaleza vazia, Bettelheim (1987) ao contrário de Kanner - que apesar de falar da importância do meio no desenvolvimento do autismo, acreditava que este era algo inato a criança - definirá o autismo como uma resposta da criança à um ambiente hostil. Nesse sentido, a criança não seria autista, mas sim se tornava. Em suas palavras, as crianças [...] só se tornaram autistas quando sua busca de contatos levou ao que elas encararam como respostas destrutivas (BETTELHEIN, 1987, p. 36). Apesar de a perspectiva psicanalítica ter predominado durante décadas, Castela (2013) nos informa que no decorrer das décadas de 1970 e 1980, com a ascensão dos estudos na neurociência, o conceito de autismo para por uma ampliação. o conceito de autismo foi alargado, passando a ser englobado num conjunto de perturbações com características em comum, as Perturbações do Espetro do Autismo (PEA), com Lorna Wing e a inclusão da Síndrome de Asperger neste grupo de perturbações (Braga, Página3

2010). Fazem parte das PEA a Perturbação Autista, a Perturbação de Rett, a Perturbação Desintegrativa da Segunda Infância, a Perturbação de Asperger e a Perturbação Global do Desenvolvimento Sem Outra Especificação (Geraldes, 2005 apud CASTELA, 2013, p. 3). Tais questões colaboraram, na perspectiva da autora, para que o conceito de autismo deixasse de ser compreendido como uma perturbação afetiva para ser compreendido como um problema neurológico que afeta a comunicação, a interação social e a atividade imaginativa. Nesse sentido, a definição melhor aceita atualmente sobre o autismo define-o como uma síndrome que engloba etiologias múltiplas e de diferentes níveis de severidade que compromete o processo de desenvolvimento infantil (CASTELA, 2013, p. 3); fala-se, portanto em Transtorno do Espectro Autista. Entretanto, cabe ressaltar assim como fazem Castela (2013) e Cavalcanti e Rocha (2001) que o autismo até os dias atuais pode ser caracterizado como um conceito complexo e envolto em debates: seja em relação a sua etiologia, as formas de diagnósticas e aos possíveis tratamentos (isso quando se parte do principio de que o autismo é algo que deva ser tratado, o que não é o caso daqueles que defendem a neurodiversidade). Ao analisarmos as cartas enviadas pelos pais ao longo da década de 1980 ao jornal do Brasil, observamos que tais debates em torno do conceito do autismo não ficaram restritos ao âmbito acadêmico, havendo divergência entre os pais sobre o que seria o autismo. Nesse sentido, apresentamos a definição realizada por uma mãe e publicada na seção cartas em 1989. Para ela, o autismo era uma doença de etimologia desconhecida, mas de natureza comprovadamente orgânica (JORNAL DO BRASIL, 25 de Agosto de 1989). Tal definição foi compartilhada pela grande maioria dos pais ao longo da década de 1980, sendo importante ressaltar que muitos pais utilizaram expressões como doença, enfermidade, grave doença e obscuro distúrbio para descrever o que compreendiam como sendo o autismo. Entretanto, tal visão não era compartilhada por todos, como expressa a carta enviada por um pai em 1988. Tal carta é escrita após esse pai ter lido uma matéria apresentada no Jornal do Brasil discutindo o autismo. Nesta matéria, o jornal descreveu o autismo como uma síndrome, o que motivou o pai de uma criança autista escrever dizendo que o autismo é um sintoma de uma doença chamada esquizofrenia infantil (...) como é a febre, a dor de cabeça, etc.; e que a doença que mais comumente o apresenta é a esquizofrenia infantil (JORNAL DO BRASIL, 03 de Novembro de 1988). Página4

Tal percepção do autismo, apesar de ser minoria e de ter recebido duras críticas de outras pais que escreveram ao jornal para questionar tal posicionamento, deve ser observada com muita atenção. Cabe lembrarmos que Kanner já na década de 1940 havia estabelecido a distinção entre autismo e esquizofrenia. Desta forma, qual seria a motivação desse pai em apresentar o primeiro como um sintoma do segundo? A resposta é apresentada pelo próprio pai em sua carta publicada no dia 03 de novembro de 1988. Em suas palavras as crianças etiquetadas de autistas ficam sem qualquer solução terapêutica (JORNAL DO BRASIL, 03 de Novembro de 1988). Na perspectiva desse pai, quando uma criança era diagnosticada como autista acabavam não sendo assistidas por nenhuma medida terapêutica, situação diferente daquelas que eram diagnosticadas como esquizofrênicas. Nesse sentido, o que fica nas entrelinhas do discurso desse pai é a preocupação com a qualidade de vida e com o desenvolvimento da criança que, em sua percepção, estariam melhor amparadas quando diagnosticadas como esquizofrênicas. MOBILIZAÇÃO Marfinati (2012) ao escrever sobre as práticas clínicas, embasadas nas teorias psicanalíticas, com crianças autistas no Brasil, irá nos informar que tais trabalhos ganharam ênfase apenas a partir da década de 1990; antes disso o que existia no Brasil eram medidas pontuais. Ao analisarmos as cartas escritas na década de 1980, observamos que o número insuficiente de instituições voltadas para o atendimento de crianças autistas e suas famílias geraram grandes problemas para essa população. A escassez de instituições e de profissionais especializados no atendimento deste público gerou dificuldades para realização dos diagnósticos das crianças autistas e, uma vez diagnosticadas, encontrar instituições e profissionais para atender tais crianças. Situação que pode ter contribuído para que o pai que escreveu a carta anteriormente citada, conceituasse o autismo como um sintoma da esquizofrenia. As poucas instituições existentes e gratuitas não eram suficientes para atender a demanda daquele momento e, os valores cobrados pelas instituições particulares impossibilitava que uma parcela significativa da população pudesse utilizar tais serviços. Tal situação motivou muitos pais a se mobilizarem para organizar associais de pais com o objetivo de trocarem conhecimentos sobre o autismo e proporcionassem, na medida do possível, melhor qualidade de vida para seus filhos. Página5

Infelizmente, as instituições brasileiras para crianças excepcionais primam pelo total desprezo à especialização e misturam anarquicamente todos os tipos de males, como oligofrenia, mongolismo, esquizofrenia, autismo, etc. quando são problemas distintos e que exigem terapias diversificadas. [...] Inexiste porém qualquer organização voltada para o autista, que pode apresentar bom índice de recuperação quando adequadamente tratado. O meu propósito ao escrever esta carta é conclamar a todos os pais que sofrem este mesmo angustiante problema em suas famílias, a me contactarem, para reunirmos esforços e conseguirmos criar uma instituição voltada para a pesquisa e tratamento do autismo, para o bem de nossos filhos (JORNAL DO BRASIL, 31 de outubro de 1983). Vale ressaltar que num país onde a internet, e até mesmo a televisão, não era realidade para a grande maioria da população, o rádio e os jornais impressos colocavamse como um dos principais meios para o estabelecimento de contatos, além de ser uma das principais formas de obtenção de informação. Percebendo tais possibilidades, muitos pais escreveram cartas ao Jornal do Brasil pedindo ao periódico que publicassem matérias sobre o autismo ou mesmo que divulgassem a realização de congressos sobre a temática oferecidos pelas associações. Em uma carta publicada em 1989 uma mãe escreve que: [...] não é admissível que ao final do Século XX a sociedade ainda discrimine os excepcionais, mais surpreendida fico quando deparo com o total descaso das autoridades com relação à pessoa deficiente, e em especial ao autista, pois no Brasil muito pouco ou quase nada se sabe sobre esta doença, e o pior, nada é feito por essas pessoas (JORNAL DO BRASIL, 25 de Agosto de 1989). Escrever aos jornais e ligar para os rádios eram uma das poucas ferramentas que esses pais possuíam para tornar o tema autismo público e, consequentemente, cobrar das autoridades ações visando a melhoria de vida de seus filhos, o reconhecimento de direitos e, principalmente acabar com os preconceitos decorrentes da falta de conhecimento sobre a questão. A mãe autora da carta acima mencionada escreveu também que, sempre que havia a possibilidade, ela utilizava jornais e rádios para explicar as pessoas o que é o autismo numa tentativa de conscientizar a população. Ao que diz respeito às características das pessoas que assinam as cartas, observamos que das 13 cartas enviadas ao longo da década de 1980 para o Jornal do Brasil, oito possuem autoria feminina. A grande maioria das mulheres identificam-se como mãe de crianças diagnosticadas como autistas; já entre os homens, exceto numa carta, todos se apresentam como presidentes ou membros de algum grupo ou associação Página6

de pais de crianças autistas. Nesse sentido, é significativo observarmos o trecho de uma carta publicada no Jornal do Brasil 02 de Janeiro de 1984. Esta carta é um desabafo de uma mãe que possui um filho diagnosticado com o ainda obscuro distúrbio denominado autismo. No meu caso, um autismo secundário, onde as possibilidades de uma parcial, ou mesmo total, recuperação são maiores (...) fui informada de que a LBA não está aceitando casos como o do meu filho por não verem perspectivas de melhoras e cura. A mãe que escreve esta carta o faz com o objetivo de questionar e tornar público a recusa e as dificuldades em conseguir atendimento para o seu filho. Neste, assim como em outros casos, colocar-se como mãe significa utilizar a experiência como elemento para embasar suas dúvidas e posicionamentos. Ao descrever o autismo de seu filho como secundário, argumentando que vários especialistas confirmaram tal situação, ou ainda dizer que quando morava em Minas Gerais seu filho foi atendido na LBA - o que colaborou para que o período fosse descrito como um período de êxitos e melhoras (JORNAL DO BRASIL, 02 de Janeiro de 1984) esta mãe utiliza sua experiência cotidiana em relação aos cuidados com o filho ( conversa com especialistas, procura de instituições para assistir a criança, busca de informações sobre o que vem a ser o autismo, etc.) para questionar a recusa de atendimento para o seu filho da LBA do Rio de Janeiro. Esta carta, como veremos posteriormente, obterá uma resposta da LBA do Rio de Janeiro explicando os motivos pelos quais não foi possível atender a criança mencionada na carta (sendo um dos principais motivos alegados a falta de recursos). Entretanto, na carta resposta publicada no Jornal do Brasil no dia 06 de Janeiro de 1984 a presidente da LBA comprometeu-se em buscar alternativas para ajudar mãe e filho mencionados na carta anterior, o que demonstra que escrever para o jornal não foi para muitos pais uma perca de tempo. CONSIDERAÇÕES FINAIS As cartas enviadas pelos pais de crianças autistas e publicadas no Jornal do Brasil ao longo da década de 1980 poderiam, num primeiro momento, serem compreendidas como uma espécie de desabafo dos pais devido às dificuldades existentes em relação à assistência a criança autista naquele momento. Entretanto, observamos que, para além de expressarem um simples desabafo, as fontes oportunizam ao pesquisador refletir sobre as Página7

experiências desses pais. Nesse sentido, as cartas nos permitem dizer que ser pai de uma criança autista na década de 1980 significava passar por diversas dificuldades, a começar pelo diagnóstico da síndrome. Após o diagnóstico, começava uma nova e longa etapa em busca de instituições e profissionais que pudessem atender seus filhos, preferencialmente de forma gratuita. Na década em que aumentou significativamente o número de ONGs e Associações no Brasil, muitos pais de crianças autistas viram na elaboração de uma associação uma alternativa para, juntos com outros pais, unirem esforços e juntos conseguirem garantir assistência aos seus filhos. Aqueles que seguiram esse caminho, também tiveram que enfrentar as dificuldades em manter tais instituições funcionando. Além da mobilização dessas famílias na tentativa de proporcionar aquilo que compreendiam como uma melhor qualidade de vida para seus filhos, esses pais enfrentavam também a falta de informações sobre o que seria o autismo. Tendo em vista isso, muitos pais escreviam para o Jornal do Brasil em busca de contato com outros pais para que pudessem trocar informações e conhecimentos sobre a síndrome, além de aproveitar a oportunidade para solicitar ao periódico que publicasse mais matérias sobre a temática. A falta de conhecimento sobre o que é o autismo, além de dificultar o diagnostico colabora para a elaboração de outro desafio enfrentado por crianças autistas e seus pais: o preconceito. Por isso, escrever para o jornal representava uma estratégia dos pais para tornar o autismo um tema debatido publicamente e acabar, na medida do possível, com o preconceito gerado pela falta de conhecimento do público em relação à síndrome. Entretanto, assim como no âmbito acadêmico em que o conceito de autismo sempre esteve longe de obter qualquer consenso, as cartas demonstram as divergências e conflitos em torno do conceito e do diagnóstico (e como essa determinada forma de entender o autismo influenciava em suas reinvindicações). Ao que se refere às assinaturas das cartas, observamos que a grande maioria das mulheres que enviaram cartas que foram publicadas apresenta-se como mães de crianças autistas e os homens assinam como membro de associações, embora uma pesquisa do google nos permita saber que estes também eram pais de crianças diagnosticas autistas. Acreditamos que, ao apresentar-se como mãe, era uma estratégia utilizada por essas mulheres para não apenas sensibilizar o público leitor do jornal, mas também como forma de embasar, através da experiência, seus argumentos e críticas. Nesse sentido, sempre que uma mãe dizia que não havia instituições para atender seu filho (a) ou que era grande o Página8

preconceito contra as crianças autistas, sua experiência servia de apoio uma vez que tecia sua crítica a partir daquilo que vivenciava no seu cotidiano. O que não significa dizer, obviamente, que tais mães utilizavam-se apenas do senso comum (no mau sentido do termo). Independentemente da estratégia utilizada por esses pais, e os resultados imediatos que obtiveram, as cartas nos permitem afirmar que ao longo da década de 1980 faltavam no país subsídios teóricos, clínicos e educacionais para a assistência da criança autista e sua família. Essa falta de subsídio tinha como um dos resultados a escassez de profissionais e instituições voltados para o atendimento desse público o que interferia tanto na elaboração de um diagnostico da síndrome, como na assistência às crianças diagnosticadas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFIAS BECKER, Maria Lucia. Sociedade civil, esfera pública e mídia: confrontos e convergências entre diferentes concepções. In: LUIZ, Danuta E. Cantoia (org.). Sociedade civil e democracia: expressões contemporâneas. São Paulo: Veras Editora, 2010. p. 87-108. BETTELHEIM, Bruno. A Fortaleza Vazia. Martins Fontes, 1987. CASTELA, Catarina Andrade. Representações sociais e atitudes face ao autismo. Dissertação Mestrado em Psicologia da Educação. Universidade do Algarve. Portugal, 2013. CAVALCANTI, Ana Elizabeth; ROCHA, Paulina Schmidtbauer. Autismo: Construções e Desconstruções. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001. MARFINATI, Anahi Canguçu. Um estudo histórico sobre as práticas psicanalistas institucionais com crianças autistas no Brasil. Dissertação de Mestrado Faculdade de Ciências e Letras de Assis, Universidade Estadual Paulista, 2012. 175 p. ORLANDI, Eni Puccienelli. Discurso, imaginário social e conhecimento. Revista Em Aberto, ano 14, n.61, jan./mar, 1994. SANTO, Patrícia Espírito; DUMONT, Lígia Maria Moreira. As cartas de leitores e leitoras enviadas a jornais impressos: o que querem informar os assinantes do jornal Estado de Minas. Perspectivas em Ciência da Informação, v.19, n.2, p.174-190, abr./jun. 2014. Página9